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Os MISes e suas múltiplas questões

No documento Tese Tânia Mara Quinta Aguiar de Mendonça (páginas 145-150)

CAPÍTULO 3: OS MUSEUS DA IMAGEM E DO SOM NO CONTEXTO DA

3.1. Os MISes e suas múltiplas questões

“(...) Ah, que coisa interessante, mas o que é isso governador?”

Quem testemunhou esse momento de espanto do secretário de turismo da Guanabara Enaldo Cravo Peixoto.117 foi o ex-diretor do MIS Rio Ricardo Cravo Albin. Eles estavam no mesmo carro do governador Carlos Lacerda, na tarde do dia 03 de setembro de 1965, quando chegaram ao Museu para a tão aguardada festa de inauguração.

Decorridas quase cinco décadas daquele grande acontecimento, a pergunta do secretário de turismo Enaldo Cravo Peixoto continua atual, no caso dos MISes, embora a museologia contemporânea tenha avançado e provocado reflexões e algumas transformações nos museus tradicionais.

Figura 4. Governador Carlos Lacerda visita a primeira exposição do MIS Rio de Janeiro. Fonte: Jornal do Brasil

(1999, junho 2), Caderno B, p. 2. Arquivo Sérgio Cabral Santos.

“Isso” pode ser um museu? Que museu é esse? Museu que não tem estátua de pedra ou de bronze, não tem taças de cristal da Bohemia, não tem porcelana da Índia, não tem roupas ou sapatos de reis e rainhas emoldurados em vitrines? É mesmo intrigante! E

117

A pergunta foi feita pelo secretário de turismo do governo da Guanabara, Enaldo Cravo Peixoto, no dia 03 de outubro de 1965, durante a solenidade de inauguração do MIS Rio de Janeiro. Fonte: Albin, 1995, setembro 28. Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Núcleo de História Oral. (Produtor). Seminário Memória MIS 30 Anos. [Filme-vídeo]. [cópia em DVD]. Rio de Janeiro: MIS Rio de Janeiro.

imaginem “isso” no Brasil em 1965, quando os museus eram unicamente espaços reservados para objetos sagrados?

Afinal, os MISes são museus? ou são centros culturais? O que é “isso” mesmo? Os novos conceitos de museus nos permite responder que os MISes são museus sob diversos aspectos: primeiro porque “os museus são conceitos e práticas em metamorfose” (IBRAM, 2012)118, e, como os Museus da Imagem e do Som musealizam acervos do patrimônio imaterial, manifestações do homem e da natureza em constante mudança, eles são museus por excelência.

Os MISes também são museus porque são instituições que se enquadram na definição de museu adotada pelo IBRAM, conforme descrita a seguir:

“O museu é uma instituição com personalidade jurídica própria ou vinculada a outra instituição com personalidade jurídica, aberta ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e que apresenta as seguintes características:

I – o trabalho permanente com o patrimônio cultural, em suas diversas manifestações; II – a presença de acervos e exposições colocados a serviço da sociedade com o objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção identitária, a percepção crítica da realidade, a produção de conhecimentos e oportunidades de lazer; III – a utilização do patrimônio cultural como recurso educacional, turístico e de inclusão social; IV – a vocação para a comunicação, a exposição, a documentação, a investigação, a interpretação e a preservação de bens culturais em suas diversas manifestações; V – a democratização do acesso, uso e produção de bens culturais para a promoção da dignidade da pessoa humana; VI – a constituição de espaços democráticos e diversificados de relação e mediação cultural, sejam eles físicos ou virtuais. Sendo assim, são considerados museus, independentemente de sua denominação, as instituições ou processos museológicos que apresentem as características acima indicadas e cumpram as funções museológicas.” (IBRAM, 2012).119

Os MISes são ainda confundidos com museu histórico. Ou serão museus históricos? Em algumas cidades brasileiras, os Museus da Imagem e do Som são os únicos espaços onde estão reunidas as mais diversas tipologias de acervo além de imagem e som, tais como, arqueologia, etnografia, artes visuais, ciências naturais e história natural, dentre outras coleções representativas da história e da memória das comunidades. Com essas características híbridas, estão cadastradas no IBRAM 753 instituições.120

118

Fonte: Página do sítio eletrônico do IBRAM que trata dos diversos conceitos de museu. Acedido a 13 de maio, 2012 em: http://www.museus.gov.br/a-instituicao.

119

Fonte: Definição de museu pelo Departamento de Museus e Centros Culturais – IPHAN/MinC – outubro 2005: Página do sítio eletrônico do IBRAM. Acedido a 13 de maio, 2012 em http://www.museus.gov.br/museu/.

120

Fonte: Cadastro Nacional de Museus. Versão digital atualizada em 2010. Acedido 10 de setembro 2012 em: http://www.museus.gov.br/.

Mas os MISes são também centros culturais, pois reúnem uma multidisciplinaridade de linguagens artísticas num mesmo espaço museal. Os MISes são [ou foram e desejam voltar a ser] um espaço de cinema, teatro, rádio, televisão, galeria de artes, biblioteca, dentre outros. O exemplo mais expressivo é o Museu da Imagem e do Som de São Paulo, reinaugurado em 2008 com uma proposta contemporânea de investimento nas novas mídias tecnológicas. Nessa nova fase, o MIS São Paulo é concebido como centro cultural, onde as programações abrangem as diversas áreas artísticas, com curadorias próprias ou de convidados, que ocupam todos os espaços expositivos do museu, além de eventos de cinema, vídeo e música.

“Seguindo o desenvolvimento da arte contemporânea e preocupado com uma visão crítica sobre essa nova produção, o Museu da Imagem e do Som, lançou-se no desafio de adequar seu conceito institucional e sua estrutura física, sempre buscando integrar memória e contemporaneidade. O MIS reabriu em agosto de 2008 inteiramente renovado para ser um museu público pronto para dialogar com a arte do século 21, sem deixar de lado a rica história acumulada desde os anos 1970.” (MIS São Paulo, 2012).121

O MIS Rio de Janeiro também se organiza para dialogar com as novas mídias. A proposta é a construção de um centro cultural ousado e inovador, com salões de exposições interativas e investimento maciço em tecnologia. Além das salas de exposições, o Novo MIS, que está sendo construído no bairro de Copacabana, terá espaços para cinema, teatro, bares, restaurantes e até boate. O conceito de centro cultural é definido pela própria Instituição, conforme o folheto de divulgação distribuído na sala de visitação instalada no canteiro de obras do Museu:

“O Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, que ganhará nova sede no bairro de Copacabana em 2013, vai propor ao visitante um passeio pela história cultural dessa cidade conhecida e cantada no mundo inteiro por meio do seu carnaval, de sambas, choros, canções e bossa nova. (...) Ele será um espaço de produção e difusão da cultura, atuando também como centro cultural122.” (MIS Rio de Janeiro, 2012).123

Nessa perspectiva de centros culturais, como e onde ficam os acervos? Em que contextos eles são inseridos? Esse é o desafio enfrentado por esses museus. No caso do MIS São Paulo, a solução encontrada foi mantê-los no mesmo edifício [a reforma de 2008 contemplou a instalação de uma reserva técnica que ainda está em fase de organização], e

121

Fonte: MIS: Novos Diálogos. Página do sítio eletrônico do MIS São Paulo. Acedido a 07 de outubro, 2011 em: http://www.mis-sp.org.br/.

122

Grifo nosso.

123

Fonte: Trecho do texto de apresentação impresso no folheto distribuído desde abril de 2012 aos visitantes no canteiro de obras do Novo MIS, no bairro de Copacabana. Fonte: Arquivo da Autora.

acelerar a digitalização dos registros originais de forma que sejam geradas cópias digitais de filmes, fotografias, vídeos e fitas sonoras para serem musealizadas.

A digitalização exige recursos expressivos, pois o volume de acervos é muito grande - são mais de 200 mil itens. O processo envolve inicialmente as ações de conservação - higienização, acondicionamento e catalogação em banco de dados informatizado - que antecedem a digitalização. Portanto, é uma ação de longo prazo. Enquanto isso, os acervos encontram-se nas reservas, grande parte somente no original, não duplicados e indisponíveis para consulta.

Os poucos itens dos acervos já digitalizados estão disponíveis na midiateca que é o espaço de consulta do museu. Dentro das quatro linhas de atuação do MIS São Paulo [Programação, Acervo, Capacitação e MIS Fora do MIS] estabelecidas em 2010, pela gestão do cineasta André Sturm, os acervos estão contemplados em programações fixas como a mostra Acervo Vivo, que reúne registros representativos das coleções do museu e o programa Cinematographo, que consiste na projeção de filmes mudos sonorizados ao vivo por músicos convidados.

No caso do MIS Rio de Janeiro, os acervos estão sendo submetidos aos processos de catalogação e digitalização e deverão ser musealizados em todos os espaços do Novo MIS, em Copacabana, seja através das salas de exposição com mostras do Rio antigo, seja através de audições e consultas ao banco de dados, nas salas de audição e de pesquisa.

Quanto ao acondicionamento e guarda, a questão ainda está em estudo, mas uma coisa é certa: os acervos não vão para o novo prédio em Copacabana. Segundo a presidente do MIS Rio de Janeiro Rosa Maria Barboza de Araújo (2011), o local de guarda será equipado com instrumentais e equipamentos de segurança e climatização:

“(...) os originais não vão para Copacabana. Eles vão para um grande armazém. Quer dizer, nem é grande porque o acervo em quantidade, porque o MIS se chama museu, mas ele é um misto de centro cultural e de centro de documentação. (...) Então, nós vamos botar num depósito que provavelmente vai ser no novo prédio do Arquivo do Estado, o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro que está sendo construído no Estácio, no centro da cidade, e ali, nós devemos botar os originais, o acervo analógico do MIS e esperamos que tudo já esteja digitalizado. E o que for chegando, a gente vai digitalizando e depois vai passando para o centro de pesquisa e documentação. E, estamos ainda resolvendo, estudando a parte de figurino. Quer dizer, o Museu Carmen Miranda tem um acervo que ocupa pouco espaço, mas é muito importante, muito peculiar porque tem cinco trajes da Carmen Miranda, tem as bijuterias dela e mais fotografias, filmes, desenhos e isso, com facilidade, absorvido pelo Arquivo do Estado. Nós estamos estudando ainda se nós vamos abrigar uma parte, essa parte tridimensional no Arquivo Público do Estado ou se nós vamos

botar num outro espaço.” (R.M.B. de Araújo, entrevista pessoal, 2011, outubro 10).

Entre a reserva técnica, a midiateca e as programações Acervo Vivo e Cinematographo do MIS São Paulo, e o “armazém” e as salas de pesquisa e de exposição do MIS Rio, perpassa um único fator que define o campo de atuação das instituições públicas: a política institucional. No contexto dessa ação política, é necessário ressaltar a postura dos gestores das instituições museológicas incumbidos de autonomia de gestão.

Para além dos grupos políticos que traçam os planos de governo, são esses gestores que intermediam o diálogo entre os governos e os técnicos dos museus e procedem a construção da ação política, dando o formato e a dimensão operacional, administrando as contradições e os equívocos e buscando o equilíbrio de forma que os conflitos não causem a descrença, a desconfiança e a descontinuidade das ações museológicas e das conquistas alcançadas.

Analisando a política dos MISes do Rio de Janeiro e de São Paulo, percebemos os seguintes pontos em comum: a digitalização como premissa preponderante de preservação, e a consolidação desses espaços como centros culturais. E, é claro, como espaços museológicos.

Esse hibridismo entre centro cultural e museu vem de encontro com a museologia contemporânea, que entende o museu como espaço multidisciplinar, mas ao mesmo tempo, exige das instituições mais abrangência e eficiência das ações museológicas, de forma a aperfeiçoar cada uma das áreas de atuação. Exige a prática da interdisciplinaridade e o entendimento da instituição ‘museu’, conforme o anunciado na declaração de Santiago, em 1972, e no Seminário de Quebec, em 1984. Nos dois documentos citados por M. C. T. M. Santos (1996b), o museu se constitui em “práticas comuns, podendo assumir formas diversas” em função dos contextos onde são exercitadas - seja no contexto de museu, seja no de centro cultural.

“A Museologia atua com vista a uma evolução democrática das sociedades; a intervenção dos museus no quadro desta evolução passa por um reconhecimento e uma valorização das identidades e das culturas de todos os grupos humanos inseridos no seu meio ambiente, no quadro da realidade global do mundo, por uma participação ativa desses grupos no trabalho museológico; existe um movimento caracterizado por práticas comuns, podendo assumir formas diversas, em função dos países e dos contextos, que deverão conduzir à emergência de um novo tipo de museu correspondente a estas novas perspectivas.” (M. C. T. M. Santos, 1996b, p. 111).

Compreendendo a museologia como prática social e compreendendo que essa prática é exercitada em diversos contextos e diversos espaços, entendemos que os MISes são locais

onde o hibridismo acontece. E quando acontece, é porque foi essa a opção delineada nos princípios do museu, ou seja, são reflexos de sua política institucional.

O desafio dos MISes como museus híbridos é manter o equilíbrio entre as ações de musealização dos acervos e os eventos culturais diversos, de forma que se dê ênfase às exposições e outras manifestações culturais da comunidade, mas que ao mesmo tempo, se intensifique a pesquisa, a preservação e a comunicação dos acervos.

É nesse contexto, que identificamos a importância do papel do museólogo, a sua função social e a sua formação nesse sentido. Essa formação, segundo os preceitos da Nova Museologia são norteados pelos seguintes referenciais, resumidos por M. C. T. M. Santos (1996b):

“(...) reconhecimento das identidades e das culturas de todos os grupos humanos; socialização da função de preservação; interpretação da relação entre o homem e o seu meio ambiente, e da influência da herança cultural e natural na identidade dos indivíduos e dos grupos sociais; ação comunicativa dos técnicos e dos grupos comunitários, objetivando o entendimento.” (M. C. T. M. Santos, 1996b, p. 112).

Introduzimos essa abordagem sobre o perfil institucional dos MISes, porque consideramos que é fundamental para o exercício de contextualização deles na política cultural brasileira, que pretendemos realizar a partir de agora.

No documento Tese Tânia Mara Quinta Aguiar de Mendonça (páginas 145-150)