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Capítulo III Dead Poets Society – Intemporalidade do Man Thinking

2. Dead Poets Society – A Verse to Contribute

2.1. Missiva ao Cidadão do Século XXI

O neoliberalismo em que as democracias ocidentais mergulharam mais ou menos profundamente nas últimas décadas do século passado, as contradições, conflitos e problemáticas que lhe estão subjacentes, levaram-nos a reflectir sobre o papel do indivíduo na sociedade e na cultura da actualidade e, em especial, sobre o primado do cidadão enquanto garante dos valores da igualdade, fraternidade e liberdade, no direito à sua realização pessoal e ao pensamento reflexivo e, ao mesmo tempo, no respeito pelos outros membros da sociedade. Esta nova era liberal tem desvirtuado e procurado destruir estes princípios em favor dos benefícios de apenas alguns indivíduos. Deste modo, têm sido criadas assimetrias gritantes e exclusões cada vez maiores, pondo em perigo o exercício da cidadania, sobretudo, devido ao industrialismo avançado, a uma cultura consumista e ao poder económico centralizado numa pequena minoria.

O ser humano, indivíduo autónomo, com toda a liberdade de exercer as suas competências individuais, sob o mínimo de interferência possível, foi apropriado e deturpado pelo neoliberalismo, de tal forma que se tem assistido a uma desregulação da vida económica, social e política no mundo ocidental. Esta problemática encerra a urgência de repor o primado do cidadão de forma a enfatizar os sentimentos intuitivos, a inspiração e a emoção individuais numa perspectiva de responder aos problemas da sociedade, em geral, e de cada um dos seus membros, em particular. Numa postura de vida democrática, os seres humanos têm o direito de dar sentido às suas vidas, buscando novos conhecimentos, trilhando os seus próprios caminhos, tal como o fizeram os alunos da Welton Academy, uma vez alertados para a sua condição de cidadãos enquanto indivíduos inseridos numa sociedade de tradição democrática, cuja Bill of Rights reflecte o projecto sócio-cultural da modernidade construído, no mundo ocidental,

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a partir do século XVI.208 Todavia, ao longo da História do mundo ocidental, constatamos que a concepção de cidadania sofreu transformações profundas que a apresentam significativamente diferente do seu conceito inicial que nos remete para a Grécia Antiga209.

Na época que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, assistiu-se ao desenvolvimento e consolidação da classe média que foi o sustentáculo sócio- económico de uma mudança de valores irreversível, que abalaria toda a estrutura social vigente, a cultura da sociedade democrática ocidental, em geral e a sociedade americana, em particular. Esta modificação teve por base a centralização no indivíduo, na sua realização pessoal e nos seus projectos de vida. O liberalismo social passou a ser a teoria dominante. Esta teoria assenta no pressuposto da igualdade e cidadania plena para todos os cidadãos nascidos dentro de um determinado estado. Os indivíduos, membros de uma sociedade são iguais e possuem direitos análogos. O aparecimento dos direitos civis e liberdades consagradas marcam a transição da dependência para a independência do indivíduo. Na década de 1960, as forças sociais desafiaram o poder político moderno e reivindicaram o direito à igualdade e à individualidade e cimentaram o conceito de cidadania tal como o concebemos actualmente. Conceição Nogueira e Isabel Silva, especialiastas em psicologia social, reiteram esta nossa afirmação na seguinte citação:

208 A partir do século XVI até ao século XVIII construiu-se o projecto sócio-cultural da

modernidade, coincidindo este com o aparecimento do capitalismo. O segundo período da modernidade iniciou-se no final do século XIX e atingiu pleno desenvolvimento na época que decorreu entre as duas guerras mundiais. Neste período houve uma tentativa de serem cumpridas as promessas feitas quando surgiu o Welfare State, cuja noção implicava a necessidade de protecção dos cidadãos por parte do Estado. O terceiro período surgiu nos finais dos anos 1960, tendo-se assistido a uma prática capitalista que traria problemas complexos nas décadas seguintes.

209 A partir das ideias de Aristóteles, filósofo, fundador da democracia ateniense entre os séculos V

e IV a.C., surgiu o conceito de cidadania. Na acepção deste filósofo cidadania significava participar na comunidade política onde residia o cerne da liberdade. O Homem era um animal político que vivia e ansiava viver entre os restantes membros da comunidade, na qual todos perfilhavam interesses similares e todos aspiravam ao bem-estar individual e colectivo. Todavia, este conceito revelou-se excluso e desigual, pois aos pobres, escravos e mulheres era vedado o acesso ao direito de cidadania.

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É indiscutível o papel dos movimentos e forças sociais para a extensão da cidadania. Esses movimentos incluíram as questões das mulheres, das minorias étnicas, dos deficientes, das minorias sexuais, assim como as próprias classes sociais. (Nogueira 2001:33)

A construção do conceito de cidadania moderna deve-se, em grande parte, à importância das lutas sociais levadas a cabo para a obtenção de direitos individuais e do respeito pelas diferenças e minorias.

Na actualidade o individualismo levado ao extremo, egocêntrico e egoísta, sobrepõe os interesses de pequenas minorias poderosas detentoras de monopólios financeiros nacionais e multinacionais. Esta situação coloca em crise os direitos pessoais e sociais dos cidadãos, desprestigiando e adulterando o conceito de individualismo assente no princípio da igualdade e da liberdade de todos os cidadãos, privilegiando apenas uma ínfima parte do tecido social.

A liberdade, igualdade e fraternidade preconizadas pela Revolução Francesa, que influenciaram o pensamento moderno e as estruturas sociais e de poder, que deram corpo aos ideais da sociedade democrática ocidental e prevalecem no cerne dos conceitos de democracia de que tanto se orgulham os Estados Unidos, foram adulterados. O neoliberalismo apropriou-se destes conceitos e esvaziou-os de conteúdo, utilizando-os em benefício dos seus objectivos de lucro. Com efeito, esta corrente neoliberal parece esquecer os elementos mais inclusivos da Revolução Francesa e demonstra ter sabido tirar partido das convulsões sociais e políticas resultantes, em particular, de dois conflitos bélicos à escala mundial que assolaram o planeta e continuam a devastar e a corroer as sociedades e a civilização ocidental pois, segundo Conceição Nogueira e Isabel Silva:

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A Revolução Francesa foi o evento chave que uniu a ideia cultural de nacionalidade com o estatuto político de cidadão. As pressões da guerra e as convulsões revolucionárias levaram ao abandono dos elementos mais inclusivos da Revolução Francesa, expressos na defesa dos direitos universais.” (85).

Estes acontecimentos acabariam por limitar os direitos dos cidadãos e são, em parte, responsáveis pelo neoliberalismo actual que está na base da globalização do pensamento e da economia mundial e das políticas intervencionistas de potências hegemónicas, como é o caso dos Estados Unidos.

Nos anos 1950 verificou-se um retrocesso dos direitos dos cidadãos. Na década de 1980, nos Estados Unidos, três décadas passadas sobre estas questões, assistiu-se ao discurso repetido da importância da mulher na família, no seu papel de mãe, garante da coesão social, todavia, sem relevância na sociedade, para contrapor a desestruturação familiar que passou a afectar a estrutura da família nuclear vigente. Esta atitude representa um enorme recuo, que relembra os anos 1950, nos Estados Unidos, em que a mulher tinha um papel secundário e insignificante e aos cidadãos era limitada a liberdade. Estes períodos históricos estão marcados por tentativas de impor aos cidadãos valores conservadores que são atentatórios da Carta dos Direitos do Homem, bastião do mundo democrático ocidental. Na actualidade somos confrontados com o mesmo problema, apesar dos princípios democráticos por que se rege o mundo ocidental. Os governos neoliberais da actualidade têm procurado restringir os direitos dos cidadãos, impondo e reprimindo ideologias, comportamentos e atitudes.

Nas palavras de Conceição Nogueira e Isabel Silva:

Na modernidade a natureza da cidadania foi determinada por um paradoxo: sendo os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade associados à Revolução Francesa, que, ao mesmo tempo, fundiu as

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noções de Estado e de nação, esta associação acabou por limitar os ideais liberais de igualdade e universalidade. (85).

Assistimos, assim, à diluição do Estado, considerado único agente institucional capaz de promover a democraticidade, o que cria as condições para estados extremos de exclusão e dependência. “Cada vez mais as elites políticas privilegiam os interesses da economia sobre os interesses da cidadania.” (35)

Por esta razão é urgente criar alternativas e garantir que a cidadania, na essência do seus princípios e valores, sobretudo, de carácter social, se mantenham ao serviço do cidadão enquanto indivíduo inserido numa sociedade na qual todos os seus membros têm iguais direitos e liberdades e se preserve a tradição humanista ocidental que nos orienta e nos mantém responsáveis, vivos e realizados.

As sociedades ocidentais fizeram um percurso de transformações, no que concerne o conceito de cidadania, que culminou numa acepção e numa prática que importa preservar, sob pena da civilização ocidental, assente nos seus valores e princípios, se perder sem ter dado lugar a uma outra que continue a colocar o ser humano no lugar cimeiro e inultrapassável por um qualquer poder absoluto, quer seja político ou económico, que o ameace de “escravidão”.

Embora de forma dissemelhante, no filme Dead Poets Society, os caminhos que os alunos da Welton Academy percorrem, evocam os que foram trilhados por uma civilização à qual pertencemos, que defendemos e da qual nos orgulhamos. Com efeito, as conversas entre os diferentes professores do colégio, em especial, John Keating e McAllister, transportam-nos para a necessidade de diálogo e participação no debate de ideias que o direito à cidadania promove, para partilhar ideias, por vezes divergentes, todavia, todas elas em prol do bem-estar e do sucesso dos seus alunos. Deles destaca-se o professor Keating pelo papel activo e interventivo que desempenha. O colégio sugere um fórum grego de

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discussão em que apenas os homens participam, pois o debate de ideias não era permitido aos jovens da Welton Academy.

De um outro modo, a Igreja da qual a vida da instituição escolar nunca se alheia, quer pelas práticas religiosas a que os alunos e professores estão sujeitos, quer pelos valores e preceitos que dela emanam e que limitam a livre participação dos seus membros, deixam no ar um cheiro medieval de intervenção social e individual, em muito similares a esses tempos remotos da nossa História210. Todavia, à revelia dos seus espartilhos, a vida no colégio transfigura-se e transforma-se pela acção dos seus mais jovens membros e elevando a voz à luz da prática ateniense, evocam Veneza ou Florença211.

O apelo à revolta contra a ordem estabelecida no colégio, advogando o direito à igualdade, a uma vivência democrática participada, vai ao encontro das ideias preconizadas por John Locke,212 defensor do parlamentarismo em oposição ao absolutismo da época. Keating, de igual modo, invoca os princípios deste filósofo, ao apelar para uma vivência semelhante, de igual modo oposta ao abolutismo veiculado no colégio, pelo reitor, Mr. Nolan. Keating defende, em nossa opinião, os mesmos princípios de igualdade, independência e liberdade de Locke.

A “revolução” que se opera no seio da turma de Keating, trouxe consequências trágicas como o suicídio de Neil Perry, o afastamento do professor Keating, a punição dos alunos participantes activos na “aventura” democrática na instituição escolar. A violência destes acontecimentos pode reportar-nos para as

210 Na Idade Média o exercício da cidadania foi substituído pela busca da salvação individual.

Deste modo, Igreja substituiu a comunidade política grega.

211 Em Florença e Veneza, à revelia da prática medieval, foi incluída uma ética de participação à

semelhança dos gregos, construindo-se, assim, as bases da cidadania moderna que estão intimamente ligadas ao desenvolvimento do Estado liberal cujas funções foram definidas no final do século XVI

212 John Locke, no século XVII introduziu, ao conceito de cidadania, a noção de igualdade na

relação entre Estado e indivíduo. Este filósofo advogava que a soberania se devia estabelecer num Parlamento, numa atitude clara de oposição ao Absolutismo monárquico da época, sustentando a ideia de independência individual. Segundo Hobbes e Locke constituía tarefa primordial do Estado proteger os interesses fundamentais dos cidadãos, iguais, independentes e livres, pois existia entre ambos condições para estabelecer contratos com vista à formação da sociedade.

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convulsões que têm assolado a humanidade ao longo dos tempos, que persiste até aos dias de hoje e devora, com frequência, os seus mais destacados intervenientes.

Todd Anderson, por seu turno, transporta-nos para os trilhos preconizados por Thomas Hobbes213que atribui ao cidadão, o direito de se revoltar contra a ordem social instituída. A cena final deste filme, encerra, também, as perspectivas dos teóricos do século XX, Thomas Marshall e John Rawls214 que assentam no direito à liberdade de expressão, num conceito de cidadania que se revê no direito universal à igualdade, liberdade e individualidade.

Os ensinamentos de Keating enquandram-se, de modo análogo, no pensamento dos filósofos Kant, Marx e John Stuart Miller215, na medida em que todos eles advogam a intitucionalização da democracia parlamentar. As cenas que decorrem na antiga gruta são prova disso. Esta representa um parlamento em actividade democrática, um espaço de vivência social plena de cidadania no qual o direito à livre expressão, à participação, à cultura, à poesia e ao sonho são uma realidade almejada pela civilização ocidental representada neste minúsculo espaço, santuário do sonho e da liberdade, escola de cidadania, caverna de Platão. Através da Alegoria da Caverna, este filósofo, procura demonstrar que é urgente vislumbrar para além das aparências, das sombras e compreender as realidades concretas, seguindo os nossos raciocínios e não pensarmos como terceiros pretendem que o façamos. Para isso, é necessário sair da caverna, da

213 Thomas Hobbes, filósofo do século XVII, concebiam as acções humanas motivadas por auto-

interesse, mesmo a moralidade. Para este pensador a condição natural do homem era um estado de guerra permanente com os outros homens. Por esta razão, defendia que só através de contratos se podia estabelecer a paz, pois o homem é egoísta e individualista por natureza. Contudo, todos os indivíduos, no seu ponto de vista, tinham capacidade e poderes para se revoltarem contra a ordem social uma vez que todos os membros da sociedade eram detentores dos mesmos direitos.

214 Na perspectiva de Thomas Marshall e John Rawls, no século XX, o termo cidadania implica

liberdade de voto e de expressão, benefícios sociais, o pagamento de impostos e o serviço militar. Para estes pensadores, os indivíduos devem ter toda a liberdade de exercer os seus direitos civis, políticos e sociais, passando o conceito de cidadania a ter um estatuto universal e igualitário. No século XX o conceito de cidadania política deu lugar à ideia de cidadania social que tomou forma e subsiste até à actualidade.

215No século XIX, pensadores como Kant, Hegel, Marx, John Stuart Miller desenvolveram o

conceito de cidadania política através da institucionalização da democracia parlamentar moderna, que assenta no direito de participar no exercício do poder político.

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mediocridade, da ignorância e procurar a luz, a sabedoria a cultura. À semelhança da Alegoria da Caverna de Platão, Peter Weir, através de Dead Poets Society convida-nos a compreender as realidades concretas, a acordar, a agir, a pensar por nós mesmos, para que possamos descobrir o que de maravilhoso há em nós e no mundo que quisermos descobrir, mostrando-nos como o fizeram os alunos de Keating.

Neste filme estão, também, presentes as promessas, os anseios contidos no projecto da modernidade, no plano do papel social dos cidadãos enquanto indivíduos, na sua convivência e partilha, no respeito por si próprios e pelos restantes membros do grupo. Porém, do mesmo modo, ao projecto da modernidade que viu adulterados os seus propósitos e quase sucumbe à pressão da globalização, os alunos do colégio, vêem gorados os seus anseios e são alvo de atitudes persecutórias, lembrando acontecimentos históricos como a repressão de que foi alvo a ascensão do Renascimento, o Fascismo dos anos 1940, o McCartismo dos anos 1950, o Reaganismo dos anos 1980, a globalização da era actual, cujas formas de repressão se refinaram e camuflaram, sendo a ideologia do pensamento único veiculada por alguns meios de comunicação social. Embora através destes meios de comunicação e informação haja a possibilidade de acesso a enormes e dissemelhantes fontes de informação, parecendo facilitar o livre arbítrio, estes meios de comunicação servem, de forma análoga, interesses económicos e políticos e veiculam os seus objectivos e propósitos, exercendo uma enorme influência na opinião pública.

Deste modo, à luz do que foi referido, Dead Poets Society constitui um sinal de alerta para os perigos da modernidade do século XXI, naquilo que tem de mais negativo, isto é, uma globalização que endeusa um individualismo levado ao extremo, que prejudica os cidadãos e favorece apenas alguns egocentristas e egoístas. Esta obra faz-nos reflectir sobre o que nos rodeia, o que faz sentido, o que é urgente mudar, para que se altere o estado de letargia em que o neoliberalismo, preconizador do pensamento único, nos quer colocar. Este filme

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prova-nos que é possível reacender a chama que nos traz de volta a essência da nossa civilização, que está longe de se ter perdido, mas que corre riscos que é urgente minimizar.

A chama de uma vela acesa que surge no início do filme, que se propaga nas mãos de jovens alunos do colégio, the light of knowledge, segundo Mr. Nolan, pode representar não o conhecimento tradicional e conservador que se pretendia veicular na instituição escolar, mas a verdadeira luz do conhecimento consciente que cada um pode ter de si próprio e da sociedade em que se insere. A luz do conhecimento que pode difundir a sabedoria, contribuindo para uma sociedade esclarecida, activa e humanista que se quer nos dias de hoje e que constitui um dos baluartes mais significativos da história do mundo ocidental e da sua civilização.