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A mitologia e a filosofia indianas

Para tratar da origem do hinduísmo, há distintas versões em relação à datação das escrituras védicas; há divergências e incertezas quanto ao processo de formação esse grupo de religiosidades que formam o hinduísmo. No entanto, há um ponto de origem que é comum a todos os pesquisadores com que tive contato: esta religião tem como base a hospitalidade e a facilidade de absorver o que está a seu redor.

158 Ver Introdução do texto de Rogério Duarte (Bhagavad Gita: Canção do Divino Mestre, p. 25).

159 A Vedanta como um todo é constituída de três grandes vertentes: Dvaita Vedanta (Vedanta dualista)

representada pelo Acharya Madhva; Vishista-advaita Vedanta (Vedanta do não-dualismo qualificado) representada pelo Acharya Ramanuja; e por fim a Advaita (monismo) que tem seu maior representante o Acharya Shankara. O 3 pontos em comum das vertentes vedanticas são: 1) a crença em Deus, 2) a crença na autoridade dos Vedas; 3) a crença nos ciclos cósmicos.

De acordo com Selma Vieira Velho, “esta qualidade de absorver em si tudo o que encontrava à sua volta deu ao hinduísmo uma coesão e vitalidade extraordinárias, e foi através delas que o hinduísmo conseguiu sobreviver milhares de anos de experiência intelectual e espiritual.”160 Esse traço de abrangência do hinduísmo foi também pontuado por Octávio Paz:

É claro que o islamismo conheceu e conhece divisões, mas não são tão profundas e nem tão numerosas quanto as do hinduísmo. Este último não só aceita a pluralidade de deuses como também de doutrinas (darsanas), seitas e congregações de fiéis. Algumas dessas irmandades de crentes − verdadeiras religiões dentro da grande religião pluralista que é o hinduísmo − se acercam do monoteísmo cristão, como a dos adeptos de Krishna.161

Em seu texto, Octávio Paz traz a preocupação de situar o islamismo em relação ao hinduísmo em meados do século XX e é categórico ao afirmar que “entre o islamismo e o hinduísmo não só há oposição, mas também incompatibilidade”162. Faz-se relevante mencionar que o islamismo, apesar de ser parte integrante da sociedade indiana e ter grande importância na formação cultural da Índia, não entrará nas discussões aqui propostas pois, no que se refere à linhagem religiosa, ambos são, como disse Paz, incompatíveis.163 O islamismo está dentro do que ficou conhecido como “monoteísmo semítico”,164 que compreende o judaísmo, cristianismo e islamismo, e a base dessas três grandes religiões é a ideia do deus único, que existe, mas é distinta no hinduísmo. Essa característica de hospitalidade, de abrangência e flexibilidade do hinduísmo também foi pontuada por Georg Feuerstein:

o Hinduísmo deu mostras de uma incrível capacidade de assimilar dentro de si até as coisas mais radicalmente opostas. Numa extremidade do espectro, por exemplo, encontramos a escola do não dualismo radical de Shankara; na outra extremidade, o rígido dualismo do Sâmkhya clássico, o qual, apesar de seu ateísmo, ainda é contado como um dos seis principais sistemas filosóficos (darshana, “ponto de vista”) do Hinduísmo.165

Tal característica de hospitalidade marcante pode ser advinda da condição histórica de sua formação. Mais conhecidamente, foram três povos que, em contato, originaram o que,

160 VELHO. A influência da Mitologia Hindu na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII, p. 65. 161 PAZ. Vislumbres da Índia, p. 42.

162 PAZ. Vislumbres da Índia, p. 41. É possível relativizar essa declaração de Octávio Paz, pois há, sim, alguns

pontos de contato entre hinduísmo e islamismo, especialmente, por meio do sufismo. No entanto, essas nuances não foram contempladas nessa apresentação.

163 Ainda que o pensamento de Paz seja coerente para explicitar, de forma geral, as relações entre o islamismo e

o hinduísmo, não se pode esquecer a Tradição Sufi dentro do Islam, que incorpora elementos místicos semelhantes à tradição hindu. Há confrarias sufis muito importantes dentro da Índia, como a Chishti, a qual pertence o grande mestre Hazrat Inayat Khan. No Sufismo não há tal grande incompatibilidade entre a tradição islâmica e hindu.

164 STODDART. O hinduísmo, p. 19.

inicialmente, foi chamado de vedismo, depois bramanismo e, atualmente, se denomina hinduísmo. De acordo com Aghorananda Saraswati,

o Hinduísmo não teve um personagem principal responsável por sua fundação: foi se estruturando gradativa e paralelamente ao desenvolvimento histórico da Índia, recebendo influências, absorvendo e ajustando aos seus moldes as correntes de pensamentos trazidas pelos diversos invasores dos solo indiano. Podemos compará- lo a uma árvore que cresceu naturalmente, tendo como raízes o universo cultural dos povos aborígenes, da Civilização do Vale do Indo e das comunidades Arya.166

Essa qualidade do hinduísmo de ser abrangente em sua formação e não estar atrelado a um fundador específico advém de sua história de interação dos três povos mencionados por Saraswati. O povo Ária (arya em sânscrito quer dizer nobre), que foi um povo indo-europeu, chegou ao território indiano pelo norte e noroeste da Índia por volta de 2000 a.C. Os arianos vinham de regiões das estepes russas, possivelmente fugindo de drásticas mudanças climáticas, e, segundo parte dos pesquisadores acordam, eles foram se espalhando gradativa e paulatinamente por uma extensa região da Índia, permeando todo o norte indiano. Existe uma divergência sobre o modo de conquista do norte da Índia pelos arianos. Há a vertente que afirma ter sido uma invasão no sentido da imposição da cultura ariana para os povos habitantes daquele lugar167 e existe também a vertente que afirma que os arianos eram os antigos povos védicos, naturais da Índia que se desenvolveram em lugares distintos dos outros povos, como os do Vale do Indo.168 Independentemente do modo de avanço para a Índia, o resultado é que houve a dominação dos povos que estavam naquela região, chamados de Drávidas. Os arianos dominavam armas feitas de bronze e já tinham uma cultura patriarcal estruturada de tal maneira que, posteriormente, se tornou a estrutura das castas. No aspecto teológico e mitológico, eles tinham também um sistema estruturado. Cultuavam elementos da natureza, especialmente do fogo e do ar, e praticavam rituais de sacrifício.

A cultura com a qual o povo Ária se defrontou na chegada da Índia, os Drávidas169, ocupavam a região do Vale do Indo, que, atualmente, seria a região do nordeste do Afeganistão, norte da Índia e noroeste do Paquistão (lembrando que até a independência da Índia, em 1947, o Paquistão era território indiano). Os Drávidas tiveram uma civilização de

166 SARASWATI. Mitologia hindu, p. 33.

167 Ver: SARASWATI. Mitologia hindu, p. 45-47.

168 Georg Feuerstein afirma que: “Todos os indícios nos dão a entender que os arianos, que falavam o sânscrito e

compuseram os Vedas, não eram nômades primitivos que vieram de fora da Índia e trouxeram morte e destruição à população nativa. Antes, os dados disponíveis mostram que eles eram verdadeiros filhos do solo indiano” (FEUERSTEIN. A tradição do Yoga, p. 101).

169 Os Drávidas são também conhecidos como Civilização do Vale do Indo ou Civilização Harappa (Harappa é o

altíssimo avanço no aspecto da estruturação da vida comunitária em cidades. Um de seus legados é a cidade de Harrapa (por isso, há estudiosos que denominam os drávidas de harappianos) e Mohenjo Daro, onde se encontram sistemas de drenagem, largas avenidas, água canalizada e, dentre muitas outras construções, havia em Mohenjo Daro grandes celeiros de armazenamento de alimentos com um sistema peculiar de isolamento e ventilação. Segundo Saraswati, esses celeiros eram como verdadeiros bancos nacionais e os cereais seriam a moeda de troca.170 Provavelmente, quando os arianos chegaram na região do Vale do Indo, encontraram uma civilização em decadência e os arianos tinham algumas vantagens bélicas, pois os drávidas ainda se utilizavam de armas de cobre e tinham carros lentos puxados por bois, em contraposição aos leves e rápidos carros arianos puxados por cavalos. Inúmeros podem ser os motivos dessa dominação, mas o que mais nos interessa no momento é mostrar que alguns elementos da cultura drávida foram fundidos à cultura dos árias resultando em algumas práticas que hoje são conhecidas dentro do hinduísmo. Da civilização drávida, talvez a herança mais significativa seja o conhecimento do Yoga e do Tantra, este último sendo, muitos séculos depois, organizado no que se chamou tantrismo. Essa raiz do Tantra traz informação sobre a cultura dos povos do Vale do Indo, pois acredita-se que eles se organizavam em uma “estrutura social e familiar de orientação matrilinear, de natureza não guerreira, voltada às atividades artísticas e aos estudos filosóficos”.171 Por esses aspectos, percebemos as diferenças existentes entre drávidas e árias, uma vez que estes últimos mantinham estrutura patriarcal e guerreira.

Uma outra civilização também faz parte da herança cultural e filosófica do hinduísmo. São os nativos moradores da Índia antiga, os aborígenes, que dentro da categorização histórica fazem parte da idade da pedra. Esses aborígenes praticavam o animismo e o totemismo (como é identificado em muitas culturas primitivas) e foram assimilados e dominados pelos drávidas, porém, muito de seu conhecimento, como o símbolo da serpente e o culto aos fenômenos da natureza se mantiveram esparsamente registrados nas escrituras sagradas antigas.

Abordando, então, o aspecto das escrituras sagradas, é certo que a fusão entre as culturas Ária-Drávida172 (e dentro da cultura drávida restavam traços dos aborígenes) foi

170 SARASWATI. Mitologia hindu, p. 38. 171 SARASWATI. Mitologia hindu, p. 39.

172 O pesquisador indiano Phulgenda Sinha aponta que a cerimônia do puja, uma cerimônia muito popular e

praticada por toda a Índia que oferece flores, folhas, frutos e água em devoção aos deuses, tem origem na cultura dos povos drávida, que tinham em seus rituais o culto à terra, pedras e árvores (PHULGENDA. The Gita as it was: Redescovering the Original Bhagavad Gita, p. 7-8). Há uma passagem do Bhagavad Gita que diz o seguinte: “Uma folha, flor ou água: o que alguém me ofertar com devoção, essa oferenda de amor feita por uma alma esforçada será aceita por mim”. (AUROBINDO (trans.). The Bhagavad Gita [Ninth Chapter]; p. 338), trad. minha.

bastante evidente e determinante para a elaboração do que hoje conhecemos como Vedas. Os

Vedas são livros sagrados da religião hindu que abarcam a filosofia e a mitologia indianas e

sua escritura se inicia no período em que os arianos dominaram o território do norte da Índia, por volta de 2000 a. C. Nesse período, houve a compilação do conhecimento que, segundo os pesquisadores apontam, havia sido passado oralmente por milênios anteriormente. A estrutura dos Vedas está dividida em quatro livros, cada um com sua função religiosa. São eles: Rigveda (o mais antigo deles, é o livro dos hinos), Yajurveda (livro dos rituais e sacrifícios), Samaveda (livro dos cantos rituais, mantras) e Atharvaveda (livro com diversos temas, sobretudo magia e medicina popular. Neste livro, pesquisam-se resquícios da cultura aborígene indiana).173 Sua escritura faz parte de uma estrutura literária do hinduísmo chamada de shruti. Shruti quer dizer “revelação”, algo que vem de forma direta do mundo divino aos homens e é apenas transcrita nos textos. Outra importante obra produzida pela via de shruti é o Upanishads (por volta de 800 a.C.). Este livro faz parte do final do ciclo de estruturação das escrituras sagradas por meio da revelação direta. Os Upanishads são como comentários aprofundados sobre os Vedas e representam, também, uma mudança no pensamento da civilização que, a essa altura, segundo Georg Feuerstein, introduziu o ideal de um ritual interno, de “sacrifício interior”.174 De acordo com Aghorananda Saraswati, essas mudanças contidas nos Upanishads se deram devido aos textos terem sido criados “fora dos círculos sacerdotais Brahmane, dando, assim, a oportunidade de que novas formas de pensamento fossem inseridas nas esferas religiosa e filosófica da época”.175 Essa demarcação de que esses textos foram escritos fora dos círculos dos brâmanes é importante porque no período anterior aos Upanishads houve a produção do que se denominou como Brahmana. Esses textos eram produzidos pelos brâmanes explicitando centralmente o caráter ritualístico de suas práticas. Os brâmanes eram a elite dominante daquela época e o material produzido fora desse círculo (como é o caso dos Upanishads), certamente, trouxe mudanças de perspectiva tanto filosóficas quanto históricas.

Outro ramo de produção escrita da literatura védica é o smiriti, que pode ser entendido como “lembrado”. Dentre várias escrituras elaboradas por meio de smiriti, estão as duas obras épicas indianas: o Mahabharata e o Ramayana. Ambas tiveram grande êxito tanto na Índia quanto no mundo ocidental e, dentre elas, especialmente o Mahabharata, sobre o qual comentamos anteriormente, teve maior êxito. O Ramayana, por sua vez, trata da história do

173 SARASWATI. Mitologia hindu, p. 50-52. 174 FEUERSTEIN. A tradição do Yoga, p. 104. 175 SARASWATI. Mitologia hindu, p. 53.

deus Rama e da epopeia pela qual ele passou até reconquistar Sita, sua companheira que fora sequestrada. Assim, pensando num desenvolvimento linear, temos as primeiras manifestações das escrituras sagradas védicas por meio de revelação, shruti, e, posteriormente, temos a produção de textos por meio de smiriti, com objetivos mais voltados para os aspectos históricos como os épicos mencionados e como os Puranas, que são livros educativos, ou os

Dharma Shastras, que abordam as leis básicas que regulam a sociedade hindu.

Levando-se em consideração esse leque extenso de escrituras sagradas, não seria possível para o hinduísmo manter uma corrente única de pensamento. Reafirmando, assim, a qualidade fundante dessa religião de acolher as diferenças e até mesmo as oposições dentro de si, o hinduísmo cultiva seis escolas filosóficas que levam o nome de darshanas, termo que significa “ponto de vista”. Por meio do termo darshana, podemos compreender o que está no pano de fundo no pensamento hindu: é o de que há algo que é único e que seria a base fundante do hinduísmo e há modos de ver essa mesma e singular existência. Há modos distintos de olhar para uma realidade considerada perene, imutável e presente em todo mundo manifesto e imanifesto. Os darshanas são conhecidos como: Nyaya, Vaisheshika, Samkhya, Yoga, Purva Mimansa, Vedanta.As quatro primeiras escolas, Nyaya, Vaisheshika, Samkhya e Yoga aceitam os Vedas como autoridade, mas têm aspectos que divergem um pouco das escrituras. Mimansa e Vedanta são segmentos complementares aos Vedas. Dentro da linha Vedanta, os Upanishads são a base dessa filosofia.176 Para esta tese, a Vedanta será a base para as reflexões desenvolvidas em diálogo com a obra ceciliana.

Todas elas se estruturam com a finalidade de compreender o Absoluto. Vale a pena registrar, no entanto, que algumas delas propõe visões radicalmente opostas, como foi mencionado por Feuerstein.177 Principalmente o Samkhya e o Vedanta se chocam em perspectiva. A escola Samkhya propõe o dualismo, dvaita. Em sua visão de mundo, há o Absoluto, a matriz universal, chamada de Purusha (ser) e há uma pluralidade de manifestações, Prakriti (natureza). Purusha dá vida a Prakriti. Sem Prakriti, Purusha não se manifesta. Ou seja, são princípios complementares. Porém, Purusha não é Prakriti. Para a escola Advaita Vedanta, por sua vez, essa matriz universal, Deus, se manifesta em todas as pluralidades efêmeras. Tudo é Um, advaita, não dualidade.

176 SARASWATI. Mitologia hindu, p. 55 e 56.

177 O trecho citado anteriormente diz que: “ (...) o Hinduísmo deu mostras de uma incrível capacidade de

assimilar dentro de si até as coisas mais radicalmente opostas. Numa extremidade do espectro, por exemplo, encontramos a escola do não dualismo radical de Shankara; na outra extremidade, o rígido dualismo do Sâmkhya clássico” (FEUERSTEIN. A tradição do Yoga, p. 101).

De acordo com Octávio Paz, essa capacidade de aceitar, dentro de um único sistema religioso, visões tão opostas, faz com que o hinduísmo tenha conseguido atravessar séculos, milênios, sem sua total dissolução.

A sobrevivência da religião hindu, assim como da civilização que a criou, teria sido impossível sem a crítica e a exegese das seis grandes tendências filosóficas; tampouco sem a grande negação budista. A crítica interior fortaleceu e vitalizou a religião da Índia, que de outro modo teria degenerado numa massa informe de crenças, ritos e mitos. Diante da ameaça de aglutinação, que fatalmente termina em caos ou em petrificação, a Índia opôs o dique da crítica, a exegese, as distinções lógicas e a negação.178

De fato, a crítica ao hinduísmo é encontrada dentro de seu próprio corpo. No que se refere à exegese, há um exemplo próspero que garante essa qualidade de manutenção da tradição: a escritura dos Upanishads. Os Upanishads fazem parte dos Vedas179 e são a base filosófica da escola Vedanta. Para este estudo, essa obra será uma das articuladoras da aproximação entre a mitologia e filosofia indianas e a obra de Cecília Meireles.

Pensando na profusão e diversidade da escritura sagrada hindu, faz-se importante refletir sobre o aspecto da abrangência cultural do hinduísmo. Como definiu Georg Feuerstein: “O Hinduísmo é mais do que uma religião. À semelhança de outras grandes religiões do mundo, é toda uma cultura datada de um estilo de vida próprio; é além disso, caracterizado por uma estrutura social singular: o sistema de castas”.180 Nesse ponto, William Stoddart também comenta sobre as grandes religiões, como o cristianismo e o islamismo, mas, diferentemente delas, o pesquisador ressalta que o hinduísmo tem tal abrangência, porém, para seu próprio povo, não se configurando como uma religião universal. O hinduísmo não estaria dentro das religiões que podem ser chamadas de missionárias, que aceitam convertidos e, mais do que isso, buscam convertê-los. No caso do hinduísmo, como o judaísmo, não é possível tornar-se hindu. Tradicionalmente, nasce-se e morre-se hindu.

Dentro dessa concepção de que o nascimento garante a condição ser hindu, o nascimento também garante ao hindu um lugar na sociedade onde ele nasceu. Esse lugar é bem demarcado por meio da estruturação da sociedade em castas, de acordo com o termo que foi traduzido para o Ocidente. As castas fazem parte da fundação do pensamento hindu, desde

178 PAZ. Vislumbres da Índia, p. 88.

179 Os Upanishads estão inclusos nos Vedas e encontram-se na segunda parte de cada um dos quatro Vedas

(Jñana Kanda – a porção do conhecimento) junto com os Aranyakas. O termo Vedanta remonta justamente disso (fim dos Vedas), já que os Upanishads são a quarta parte de cada um dos volumes (cada Veda é dividido em duas grandes partes: Karma-kanda e Jñana kanda, e cada grande parte é dividida, por sua vez, em samhitas, brahmanas, aranyakas e upanishads).

as escrituras dos Vedas. Nos livros sagrados, a sociedade é descrita à semelhança do corpo de um deus. E, por meio dessa analogia, dividiu-se a sociedade em 4 estratos. Nas palavras de Cecília Meireles:

Essas quatro “castas” básicas são interpretadas de muitas maneiras. A mais simples é a que as explica pela analogia das atividades inerentes a cada uma e a sua respectiva origem divina. Assim, a casta mais elevada, a dos “brâmanes”, seria a dos homens nascidos da “cabeça” de Deus, e suas atividades corresponderiam ao sacerdócio e à profissões educativas e intelectuais; a segunda casta, a dos “cxátrias”, teria sido gerada dos “braços” de Deus: corresponderia aos que lidam com armas, que protegem e defendem, reis, militares e guerreiros; a terceira, “a váicia”, saída das “coxas” de Deus, originaria os negociantes e agricultores; e a última, nascida de seus pés, seria a casta dos “sudras”, destinados às mais humildes tarefas. Além de especificarem essas diferenças de origem, os livros antigos atribuíam a cada casta deveres e direitos exclusivos, regras higiênicas e de alimentação, leis sôbre a conduta dos indivíduos pertencentes a cada uma, inclusive em relação aos casamentos. Ninguém podia passar, em vida, de uma casta para outra. Apenas, por morte e reencarnação, como prêmio ou castigo pelos atos praticados, se conseguiria subir ou descer nesse rigoroso sistema de categorias sociais e morais.181

Cecília consegue, nesse trecho, sintetizar a ligação dessa estrutura social com a base da religião e ela o faz de forma imparcial.182 Aponto essa disposição de Cecília em entender o processo que origina a estrutura de castas tentando explicá-la ao invés de analisá-la, destoando, assim, da tendência comum na abordagem do assunto. A estrutura de castas da sociedade indiana é um tema amplamente questionado e mesmo abominado pela ótica ocidental, porém, quando se estuda as causas e a lógica do pensamento que levou a essa ocorrência, a postura frente a ela é de maior compreensão e abertura, ao invés do julgamento que a ignorância proporciona. Olhar para uma sociedade de castas com os olhos contemporâneos ocidentais, realmente, pode provocar os julgamentos mais alarmantes como se tem visto, mas a questão é muito mais complexa do que mensurável numa régua de certo e errado.

Casta foi um termo cunhado pelos portugueses no século XVI e associado à linhagem de descendência. No entanto, a palavra original em sânscrito é varna, que significa “cor”.