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Sarojini Naidu, “Tecelagem em Aurangabad” e “Banho dos

4.2. Os poemas

4.2.3. Sarojini Naidu, “Tecelagem em Aurangabad” e “Banho dos

Outro traço particular de Poemas escritos na Índia é a recorrência de alusões à Sarojini Naidu, especialmente, por meio de poemas relacionados à terra natal de Sarojini: Hyderabad. São oito poemas que remetem à poeta indiana ou à região de Hyderabad: “Bazar”, “Canção para Sarojini”, “Cançãozinha de Haiderabade”, “Cego em Haiderabade”, “Golconda”, “Loja do astrólogo”, “Romãs” e “Turquesa d'água”. Em 27/2/1953, em entrevista concedida ao Diário da Noite, um jornal de Goa, quando de sua estada na Índia, Cecília revela que de todas as cidades indianas a que mais a impressionou foi Hyderabad:

terra de Sarojini Naidu. E sabe qual a razão? Pelos quadros que pintou, a eminente poetisa indiana já estava no meu coração muito antes de eu vir à Índia. Sim, passei pelas ruas de Hyderabad, que Sarojini tão lindamente retratou. Fiz uma conferência no Rio (de Janeiro) sobre Sarojini Naidu, recitando ao mesmo tempo 40 poemas desta grande poetisa indiana. A esta conferência assistiu um filho de Goa, o sr. Antônio de Pinto, com quem troquei, depois da conferência, algumas impressões

404 LOUNDO. Cecília Meireles e a Índia, p. 154. 405 LOUNDO. Travelling and Meditating, p. 286-288.

sobre a cultura oriental. Sou grande admiradora de Sarojini Naidu. É que a poesia de Tagore e de outros poetas embora tenha um grande vôo lírico não tem cor local.406

E a admiração por Sarojini está presente não apenas nos poemas em que ela trata da autora ou da cidade de Hyderabad. A ressonância de Sarojini percorre todo o livro Poemas

escritos na Índia. Tanto o tom do livro quanto as escolhas temáticas que são mais versadas à

rua, que tem “cor local”, ressoam a voz da poeta indiana de The Golden Threshold. Sobre essa obra, a primeira de Sarojini, – e, talvez, a mais conhecida – Cecília comenta:

O livro chama-se “Limiar Dourado” – e era como a própria entrada da casa da autora, tanto a mulher e a artista confundiam maravilhosamente o sonho e a vida. (...)

Toda a primeira parte do livro é uma viva imagem da Índia. O título “Folk songs” serve para indicar a fonte inspiradora: são poemas sobre assuntos populares: Os carregadores de palanquins; cantores ambulantes; tecelões, pescadores, encantadores de serpentes, desfilam diante dos nossos olhos, evocados por essa voz profundamente musical, que usa as palavras como se fossem cordas de um instrumento.407

Esse comentário poderia se referir a Poemas escritos na Índia. Os temas populares na obra de Cecília também povoam o livro de tal forma que podemos construir, para usar as palavras da autora brasileira, um quadro da Índia. E nos quadros que Cecília pintou figuram, também, tecelões, crianças, adolescentes, velhos, animais, muitos animais, a praia, o deserto, o calor, as comidas, as pedras preciosas, e as pessoas, centralmente, as pessoas, em seu aspecto desnudo, como ser humano, não como um indiano.

“Tecelagem em Aurangabade” pode ser um bom exemplo de uma das telas pintadas por Cecília, que cultivam, ao mesmo tempo, um certo expressionismo e a introspecção reflexiva, comum aos seus poemas. Ainda que “Tecelagem em Aurangabade” não esteja dentre aqueles que tratam, diretamente sobre Sarojini e sua cidade, o poema pode bem representar como a voz do “Rouxinol da Índia” se fez ouvir nos poemas cecilianos:

Tecelagem em Aurangabade

Entre os meninos tão nus e as – tão pobres! – paredes prossegue, prossegue

406 LOUNDO. Travelling and Meditating, p. 270. É curioso notar que Cecília fala sobre a poesia de Tagore

exatamente o que alguns críticos dizem sobre a sua poesia: que embora tenha grande voo lírico, não tem cor local.

um rio de sêda. Os lírios são roxos, os lírios são verdes, entre as margens pobres na água lisa da sêda. E os meninos nuzinhos passam na transparência do claro rio de flôres, mas evadidos da sêda. Do outro lado da trama, seus olhos apenas deixam orvalhos entre as flôres, areias de luz na sêda. Tão finos, os fios da água! Lírios roxos e verdes. E (fora) os meninozinhos nus (por dentro da sêda).408

As imagens construídas no poema captam ícones simbólicos da Índia como a seda, as flores, a pobreza indiana...

Com relação à pobreza, vale ressaltar a sutileza poética ao tocar num assunto tão reiterado no Ocidente sobre a Índia. Alfredo Bosi vai dizer que a Índia, “lugar de um tempo fora do tempo, é para nós ocidentais também o lugar da indigência, o povo da fome”.409 Ele complementa que Cecília não deixou de notar esse fato, no entanto, por meio de sua voz poética, Cecília reconhece nos seres “seus atributos inauditos e verdadeiros”.410 Os meninos, nuzinhos, pobres, são recobertos pelo que há de mais precioso em termos de tecido, em todo mundo: a seda. E os olhos dos meninos, que, por sua pobreza, poderiam estar destituídos de vivacidade, iluminam a translúcida seda por meio da qual eles aparecem para o sujeito lírico: “seus olhos apenas deixam / orvalhos entre as flôres, / areias de luz na sêda.”

A pobreza aparece em diversos poemas ao longo do livro, entretanto, ela não desumaniza os seres. Não ter riqueza material não implica, diretamente, em não ter humanidade. Pelo contrário, percebe-se uma linhagem do pensamento ceciliano que atrela a pobreza à divindade. Não por acaso, Cecília é também autora do Pequeno oratório de Santa

Clara. Santa Clara é, ao lado de São Francisco, a efígie ocidental do modelo de renúncia e do

desapego como caminhos para a evolução espiritual.

Outro poema que correlaciona pobreza e divindade é “Pobreza”, donde se lê, talvez, as estrofes mais comoventes do livro: “Era um homem tão antigo / que parecia imortal. / Tão

408 MEIRELES. Poemas escritos na Índia, p. 72-73. 409 BOSI. Em torno da poesia de Cecília Meireles, p. 22. 410 BOSI. Em torno da poesia de Cecília Meireles, p. 23.

pobre / que parecia divino.”411 Em Poemas escritos na Índia é possível perceber duas vertentes relacionadas à pobreza. Aquela que parece ser uma condição dada aos seres por falta de recursos; Cecília, dentre as coisas que viu na Índia, relata ter visto “os miseráveis além de toda miséria concebível....”.412 E a outra vertente sendo aquela que se liga à renúncia: a de Santa Clara, São Francisco e muitos mestres hindus:

há na Índia uma pobreza voluntária que explica muitas coisas. Lembro-me de Ramakrishna, que viveu em Calcutá, embebido em misticismo, desprezando todas as comodidades do mundo, e de seu discípulo Vivekananda que, também aqui, recebeu um estrangeiro com estas palavras: “Sou o homem mais pobre do país mais pobre do mundo...413

Em “Banho dos búfalos”, percebe-se, além da conexão entre pobreza e divindade, a estreita conexão entre infância, ingenuidade, pobreza e divindade:

Banho dos Búfalos

Na água viscosa, cheia de fôlhas, com franjas róseas da madrugada, entram meninos levando búfalos. Búfalos negros, curvos e mansos, – oh, movimentos seculares! – odres de leite, sonho e silêncio. Cheia de fôlhas, a água viscosa brilha em seus flancos e no torcido esculturado lírio dos chifres. Sobem e descem pela água densa, finos e esbeltos, por entre as flôres, estes meninos quase inumanos, com ar de jovens guias de cegos, – oh, leves formas seculares – tão desprendidos de pêso e tempo! O dia límpido, azul e verde vai levantando seus muros claros enquanto brincam na água viscosa êstes meninos, por entre as flôres, longe de tudo quanto há no mundo, estes meninos como sem nome, nesta divina pobreza antiga,

banhando os dóceis, imensos búfalos, – Oh, madrugadas seculares!

411 MEIRELES. Poemas escritos na Índia, p. 12. 412 MEIRELES. Transparência de Calcutá, p. 213. 413 MEIRELES. Transparência de Calcutá, p. 213.

Além do “olhar de empatia”414 lançado aos meninos guias de búfalos e da contemplação desses animais característicos da paisagem indiana, Cecília deixa entrever, em “Banho dos Búfalos”, ecos de seu conhecimento adquirido sobre a Índia, muito antes de visitá-la. Por exemplo, há uma passagem da conferência sobre Tagore em que Cecília comenta os temas e imagens construídas pelo poeta:

Havia o rapazinho que gritava, à beira do rio: “Vem, meu bem-amado!” a chamar para o banho o búfalo sujo de lodo... Tudo isso era belo, e fazia o poeta refletir: “...até que ponto podem reconhecer-se o homem e o animal que não fala... / Por que primitivo paraíso, na manhã longínqua da criação, teria passado o caminho em que os seus corações se encontraram?”415

De alguma forma, Poemas escritos na Índia faz convergir o vasto conhecimento que Cecília guardava sobre aquele país. Aparecem no livro ressonâncias da literatura indiana (mais enfaticamente de Sarojini Naidu e, por meio desse exemplo, também de Tagore), bem como da filosofia e mitologia hindus que se revelam nos poemas de forma mais ou menos aparente. O livro também deixa entrever o conhecimento de Cecília sobre a história da Índia e o amplo interesse pelo modo de vida dos indianos, pela cultura do país.

Em “Banho dos Búfalos” é possível, em certa medida, expandir as reflexões geradas pelo texto de Tagore: “até que ponto podem reconhecer-se o homem e o animal que não fala... / Por que primitivo paraíso, na manhã longínqua da criação, teria passado o caminho em que os seus corações se encontraram?” No poema ceciliano, o encontro entre o homem e o animal e o ponto em que se reconhecem está dado de duas formas. Por um lado, o ser humano é colocado como um bicho ao lado dos búfalos: “estes meninos quase inumanos”. Em paralelo com essa destituição de humanidade, há a atribuição da divindade: “nesta divina pobreza antiga, / banhando os dóceis, imensos búfalos”. Mais uma vez, existe a perspectiva da não dualidade, isto e aquilo concomitantemente. Ainda que imersos em água viscosa, densa, cheia de folhas, esses meninos guardam suas qualidades de possível transcendência da matéria: “tão desprendidos de pêso e tempo!” “Estes meninos como sem nome” emergem, na superfície da água viscosa, como uma flor de lótus.

414 Expressão utilizada por Bosi para se referir ao poema “Banho dos búfalos” (BOSI. Em torno da poesia de

Cecília Meireles, p. 25).