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ASPECTOS HISTÓRICOS DAS TRADIÇÕES AYAHUASQUEIRAS

1.2 A configuração social do campo ayahuasqueiro

1.2.1 Mitos de fundação do Império Juramidã

O uso da ayahuasca em ritual religioso predominantemente cristão inicia no Acre a partir da trajetória de Raimundo Irineu Serra, fundador do uso ritual da bebida em cerimônias religiosas, passando a denominar a ayahuasca de ―daime”. Para Monteiro da Silva (1983), os primeiros praticantes do daime surgiram por volta de 1912 em Brasiléia, uma pequena cidade fronteiriça com a cidade boliviana de Cobija a cerca de 250 quilômetros de Rio Branco. Segundo ele, Raimundo encontrou em Brasiléia o grupo dos irmãos Antônio Costa e André Costa, que dividiam a liderança e se reuniam regularmente para trabalhos espirituais. Era o Círculo de Regeneração e Fé (CRF). Provavelmente, essa foi a primeira organização com caráter religioso do uso da ayahuasca no Acre. O culto apresentava características predominantemente familiares, seus integrantes eram negros, oriundos do estado do

Maranhão, e que migraram para o Acre para trabalhar na extração do látex (MONTEIRO DA SILVA, 1983).

Os brasileiros haviam aprendido a fazer e tomar a bebida ayahuasca com um mestiço peruano de Loreto, chamado Crescêncio Pizango35. Existem outras versões, conforme Moreira e MacRae (2011, p. 89), mas certamente Mestre Irineu conheceu a ayahuasca a partir do seu contato com os caboclos amazônicos. As versões também divergem quanto a Antônio Costa já fazer uso da bebida e se já era o líder do grupo, assim como quanto à origem do caboclo Pizango - se era uma pessoa ou um espírito (entidade)36. Sigamos o relato de Percília Matos da Silva (zeladora do trabalho de Mestre Irineu e gerente geral dos hinários), quanto à trajetória de Mestre Irineu e de como ele recebeu sua missão quando chegou do Maranhão:

[..] é uma coisa já determinada, né? Até quando ele veio! Aí quando ele veio, ele conheceu esse Antônio Costa e André Costa, que foram os primeiros que tomaram daime com ele. Eu sei que lá ele tomou daime com eles. Que eles já tomavam. Ele tomou a primeira vez, tomou a segunda vez, tomou a terceira vez e diz ele que viu aquela imagem descer e disse para ele: ‗Eu te acompanhei, desde que tu voltaste lá em Maranhão. Eu te acompanhei, desde lá‘. Aí ele disse que ouvia só a voz, não via a pessoa. Disse que ouvia a voz. ‗Eu te acompanhei, desde lá!‘. Aí ele disse que era a voz de uma mulher. Aí ele disse: ‗Como é o seu nome? Ela disse: O meu nome é Clara‘. Ele disse: ‗Vige Maria! Quem é essa tal Clara que vinha no navio comigo?‘ Pelejava de todo jeito e não sabia quem era essa Clara. Mas Clara é a luz, né? Depois foi que ele veio entender, né? Tudo isso. Aí ela marcou, disse: Tu toma daime tal dia. Que eu venho falar contigo. Ele só vendo só a voz. Disse: ‗Olha, eu vi limpo, sei que era uma mulher. E ela disse que tal dia pra eu tomar o daime que ela vem falar comigo‘. Aí ele ficou muito animado pra ver quem era, né? [...]Aí quando veio, aí ele falou com a Nossa Senhora! A dona da missão, né? Aí ela entregou a missão pra ele. Disse: Mas você ainda tem que se preparar! Pra poder aprender a missão, aprender mesmo e tomar posse, você tem que fazer um trabalho. Passar oito dias comendo só macaxeira insossa com água. Nem chá não tinha direito de beber. Macaxeira insossa e água! Oito dias! [...] (MATOS DA SILVA,1990, p.10).

Os acontecimentos históricos desse período estão correlacionados com a trajetória de vida de Raimundo Irineu Serra. Foi uma figura marcante que, entre outros feitos, contribuiu para a delimitação fronteiriça do estado do Acre37. De raça negra, descendente de ex-escravos, Raimundo nasceu no interior do Maranhão, no município de São Vicente de Férrer, no dia 15

35 Na versão de AJS, informante de Monteiro da Silva (1983), ―… um peruano, do Departamento de Loreto, Crescêncio Pizango, teria convidado Antônio Costa para tomar a ayahuasca. Ambos, na ocasião, trabalhavam perto de Cobija, pelo rio Tahuamano, num seringal da casa Soarez‖ (Ibid., p.65).

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Algumas versões acreditam tratar-se de uma entidade.

37 Após um longo período de disputas com a Bolívia e o Peru pela soberania da região, o Acre foi incorporado ao Brasil em 1903. A Comissão de Demarcação de Limites foi a organização responsável pela definição geográfica da região (OLIVEIRA, 2007, p.132).

de dezembro de 1892, filho de Sancho Martinho de Mattos e de Joana Assunção Serra38. Ainda jovem, migrou para a Amazônia em busca de trabalho nos seringais. Em abril de 1912, desembarcou em Xapuri, onde trabalhou por dois anos, transferindo-se em seguida para Brasiléia, onde viveu três anos. Segundo os dados publicados na Cartilha Ecumênica, uma versão oficial do grupo tradicional do CICLU (Alto Santo):

[…] Em 1912 chega ao Acre um homem que iria dar um passo decisivo na formação dessa religiosidade. Vinha também do Maranhão e se chamava Raimundo Irineu Serra. Trabalhou como seringueiro por dois anos em Xapuri. Em 1914 encontrou os irmãos Costa e passou a fazer parte do Círculo de Regeneração e Fé. Irineu desenvolveu-se rapidamente no conhecimento da ayahuasca e iniciou a formação de sua Doutrina. Por volta de 1930 assentou-se como agricultor nos arredores de Rio Branco e começou a reunir um pequeno grupo de discípulos. Por essa época, o ‗Mestre Irineu‘, como ficou conhecido, batizou a ayahuasca com um novo nome, Daime, palavra que expressa um pedido ao poder divino: ‗dai-me força e dai-me amor‘, canta em um de seus hinos (ALVES, et al., 2011, p. 16).

Para Monteiro da Silva (1983), Antônio Costa foi o primeiro xamã do culto rural- urbano da ayahuasca no Brasil. Ele tinha fama de curador, com poderes extraordinários, e o grupo trabalhava com espíritos guardiões associados a três diferentes tipos de jagube (Banisteriopsis caappi). Em Brasiléia, os primeiros praticantes do culto identificaram e associaram os poderes mágicos dos guardiães aos jagubes (bejucos) negro, amarelo e branco.

De acordo com as diversas entrevistas que realizei com os seguidores de Mestre Irineu, e conforme vários estudiosos do tema, Monteiro da Silva (1983), Oliveira (2007), Moreira e MacRae (2011), existe uma narrativa mítica primordial, uma espécie de mito- fundador que conta a origem da utilização da ayahuasca nos rituais religiosos e que se relaciona à missão recebida em miração39 por Mestre Irineu.

Nessa narrativa, Mestre Irineu teria passado por uma prova de purificação para poder receber a missão da mulher que ele viu na Lua, chamada Clara, e identificada posteriormente como Virgem da Conceição. O relato de Percília Matos sobre a dieta de Mestre Irineu dentro da floresta é bem ilustrativo dessa trajetória:

[...] e de mulher você não tem nem que ver nem a sombra! Nessa época ele disse que parece que ele cortava seringa, nesse tempo. Ele disse que andava numa estrada, e diz ele que de manhã comia macaxeira, tomava água. Quando chegava lá no meio da mata, aí diz que a mata tava cheia de gente. E ele disse que via na frente dele, só via, assim, a saia daquela mulher que ia

38 As questões referentes à data de nascimento, nome com que foi batizado, mudança de nome e outros detalhes sobre as origens maranhenses de Mestre Irineu estão detalhadas em Moreira; MacRae (2011). Nessa pesquisa, privilegiamos as informações obtidas de nossos entrevistados.

39 Miração é o estado visionário em que Mestre Irineu ingressou na sua experiência com a ayhauasca para receber as revelações espirituais.

na frente dele. Ele disse, mas se ela disse que não ia ter mulher no meio, como é que eu já tô vendo mulher aqui? Aí disse ele que quando tava demais, mesmo, aquela miração, que não se aguentava … E dava três tiros assim! Pegava o rifle e atirava. Que se afastava mais, não sabe? Aí um dia, já tava já pra terminar os oito dias, já tava pertinho de vencer a batalha. Um colega dele, que morava junto com ele, eu não tô lembrada, parece que era Raimundo ou Zé Bastos, ele disse pra ele: Fulano, você cozinha minha macaxeira. Todos dias ele cozinhava. Nesse dia, ele tentou pôr sal na macaxeira. Aí, lá no mato, disseram pra ele. ‗Olhe, o teu colega quis pôr sal na tua macaxeira, mas ele não pôs não.‘ Aí ele disse: ‗Graças a Deus! Eu já tô adivinhando! Amanhã eu vou ver se aconteceu isso mesmo!‘ Aí quando ele chegou, disse: ‗Cadê a minha macaxeira, ô José?‘ Disse: ‗Tá aí! Já tá cozido!‘ ‗E prá quê que você foi botar sal na minha macaxeira?‘ Aí ele disse que riu, disse que deu uma gargalhada: ‗Como é que vc sabe que eu quis botar sal na sua macaxeira?‘ Disse: ‗Porque eu sei!‘ Disse: ‗Mas eu não coloquei não! Eu tive vontade mas não coloquei não!‘ Aí ele disse que aí é que ele ficou contente! ‗Já vou sim, já tou advinhando!‘ Depois, ele imaginou, disse: ‗Não, não tou adivinhando não. É que me disseram. Não adivinhei!‘ Passou os oito dias. Só na macaxeira com água. Água e macaxeira, sem tomar nem chá! Essa foi a dieta que deram para ele (MATOS DA SILVA,1990, p.10 e 11).

Após essa experiência, Mestre Irineu inicia um longo período de aprendizado em que se aprofunda nos mistérios da vida espiritual e, ao mesmo tempo, prossegue em sua labuta material e com as andanças pelo Acre40. Aprende os segredos da floresta, suas plantas medicinais, ervas e raízes, assim como as dietas, hábitos e rezas. Segundo Percília Matos, nesse período o Mestre trabalhava como seringueiro41:

Quando ele chegou aí em Sena Madureira, aí eles tavam!…já tinha lá…Porque esses dois começaram com ele, e juntaram-se mais outros. Aí tentaram fundar um centro. Os outros! Mas pegaram–se no negócio da grandeza, não sabe? Aí fizeram lá um relatório, fulano é isso e aquilo e tal, fulano é presidente, um é não sei o quê, o outro era secretário de não sei o quê … E deixaram ele de fora, e ele também disse que não disse nada! Ficou calado! Aí quando ele tomou o daime, aí a Virgem chegou e disse pra ele: ‗Olhe, isso aqui não vai pra frente. Porque eles querem te tomar à frente. Se eles tivessem te colocado no teu lugar mesmo, que é teu mesmo, pra ti administrar esse trabalho, ia pra frente! Mas como eles querem seguir sozinho, eles vão ficar aí sozinhos. E tu vai embora daqui! Tu não fica aqui. Vai embora, porque isso daqui não vai ficar bem não‘. Aí ele disse que veio embora! Em menos de três meses, diz que a polícia atacou lá, a polícia atacou e fechou mesmo! O enviado era ele mesmo, não era? Agora, os outros, pobres de conhecimento! A pessoa querer ser o que não é, né? As

40 Em 1916, Mestre Irineu retorna ao município de Brasiléia, conhece a senhora Rosa Amorim, com quem teve seu único filho, o senhor Valcírio Genésio da Silva, em 20 de janeiro de 1917. (conforme http://www.afamiliajuramidam.org/mestre_irineu.htm.Acesso em 15 de outubro de 2014).

41 De acordo com Moreira e MacRae (2011, p. 112), quando Mestre Irineu sai de Brasiléia parece abandonar ―a ocupação que exercia, seja de mateiro, ajudante de regatão (junto a Antônio Costa) ou outra sorte de trabalho ligado à extração da borracha, atividade que já estava então em plena decadência econômica […] Irineu aportou em Rio Branco no dia 2 de Janeiro de 1920 e, no dia 5 de janeiro, entrou para a corporação da Força Policial, retornando, assim, à vida militar‖.

coisas só é como é! E o dom é de quem dá, não se pode tomar! Bem, quando ele chegou aqui, foi que ele ficou praça na polícia, né? Foi servir! (Ibid.,p.11).

Nessa narrativa, fica subentendido que a formação do CRF ocorreu depois da saída de Mestre Irineu. Contudo, suas primeiras experiências ocorreram na companhia dos irmãos Costa, conterrâneos maranhenses. Após o CRF, ele fundou a primeira comunidade que originariamente utilizou a bebida. Mestre Irineu batizou-a de daime porque, quando ingeriu a bebida, teve visões e recebeu uma doutrina. Abordaremos esse momento como parte de uma situação histórica retratada através de muitas narrativas.

A notícia das propriedades curativas da ayahuasca espalhou-se entre os seringueiros que, em sua convivência com a floresta, começavam a assimilar os conhecimentos da cultura indígena e, como herdeiros da tradicional religiosidade do povo nordestino, ressignificaram42 o uso de uma bebida de poder milagroso. A entidade Dom Pizano (Crescenzo) revela para Mestre Irineu, em seu primeiro contato espiritual, de ser o escolhido para trazer a bebida para o Brasil.

Quando Mestre Irineu começou a frequentar essas reuniões com os irmãos Costa, recebeu orientações espirituais sobre sua missão. Em seu ―rito de iniciação‖43, passou por uma rígida dieta de oito ou mais dias e noites isolado na floresta, onde preparava e tomava sua própria bebida. Foi então que teve a visão da Rainha da Floresta, que lhe entregou a Santa Doutrina de Jesus Cristo e de São João como um novo plano para a salvação dos homens. Na

42 Oliveira (2007, p. 74) analisa ―o processo de ressignificação da ayahuasca na formação da religião Santo Daime no período de 1930 até os dias atuais.‖ Para ela há um ―amplo processo de ressignificação cultural‖ em que ocorre o desenvolvimento da religião, através de uma dinâmica cultural, ―uma dinâmica discursiva‖. Define a ressignificação como um ―processo dialético de atribuição de novos significados ao mesmo elemento, o qual acontece mediante esse diálogo contínuo entre as pessoas e os conteúdos que são relevantes para a construção de sua realidade‖ (idem). Já Monteiro da Silva vai chamar de ―fenômeno de reinterpretação‖: ―A reconstituição histórico-estrutural do grupo pioneiro, em Brasiléia, que mais tarde originou o Círculo Regeneração e Fé, confirma a presença de traços culturais pertencentes às populações primitivas, em especial os Caxináwa brasileiros e peruanos já em acelerado processo de integração aos valores da sociedade global‖ (MONTEIRO DA SILVA, 1983, p. 65).

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No início do século XX, o termo foi popularizado pelo antropólogo alemão Arnold Van Gennep, entendido como ações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de uma comunidade. Também o usamos aqui no sentido desenvolvido por Mary Douglas e Victor Turner na década de 1960. Segundo Douglas, Van Gennep teve mais perspicácia sociológica: ―Viu a sociedade como uma casa com salas e corredores em que a passagem de um para outro é perigosa. O perigo está nos estados de transição, simplesmente porque a transição não é nem um estado nem o seguinte, é indefinível. A pessoa que tem de passar de um a outro, está ela própria em perigo e o emana a outros. O perigo é controlado por um ritual que precisamente a separa do seu velho status, a segrega por um tempo, e então publicamente declara seu ingresso no novo status. Não somente a transição em si é perigosa, mas também os rituais de segregação constituem a fase mais perigosa dos ritos…Naturalmente, o tema da morte e renascimento tem outras funções simbólicas: os iniciados morrem para a vida passada e renascem para a nova. Todo o repertório de ideias concernentes à poluição e à purificação é usado para marcar a gravidade do evento e o poder do ritual para refazer um homem - isto é constante‖ (DOUGLAS, 1976, p. 119).

narrativa de seus seguidores, Irineu era um predestinado. Percília Matos conta que ele foi escolhido para cumprir essa missão, pois desde criança tivera sonhos diferentes:

Ele contava que desde menino [...] tinha uns sonhos. Diz ele que no dia em que fazia qualquer coisa de errado, de noite ele sonhava [...] castigavam ele na risca [...] para ele não fazer nada de errado. Então disse que tinha um tal de quarto do arroz. Quando ele fazia umas artes, diziam ‗leva ele pro quarto de arroz‘. Ele disse que lá ficava, morrendo de medo. Ele disse que lá no quarto de arroz, o arroz não tem aquela pontinha lá na casca, assim que fura? Diz ele que esse arroz de lá furava mais do que todo mundo. Aí diz que rolavam ele por cima do arroz e ele ficava com aquilo furando ele todo. Mas diz ele que sofria! Quando ele fazia qualquer má criação no correr do dia, qualquer coisinha errada, eles levava ele pra casa! Mas ele disse que nunca contou isso pra ninguém! Nem pra mãe dele, nem pra irmão, nem pra ninguém! Ele sofria tudo calado! É uma coisa já determinada, né? Até quando ele veio! Aí, quando ele veio, que ele conheceu esse Antônio Costa e André Costa, que foram os primeiros que tomaram daime com ele. Eu sei que lá ele tomou daime com eles. Que eles já tomavam (MATOS DA SILVA, 1990, p.9 e 10).

Alguns elementos devem ser destacados a respeito da configuração do campo ayahuasqueiro no período em que Mestre Irineu encontrou-se com a ayahuasca. O primeiro ponto refere-se ao reconhecimento da existência de um campo originário do uso da ayahuasca, proveniente do que diversos autores chamam de vegetalismo44. Na Cartilha Ecumênica, há uma breve referência feita pelas comunidades tradicionais a respeito do contexto existente no momento em que os Mestres fundadores começaram a utilizar a bebida. A ayahuasca dos povos indígenas da Amazônia Ocidental supriu, naqueles primeiros tempos de colonização do território do Acre, a grande ausência de igrejas e missões católicas ou protestantes. Conforme contam os seguidores mais antigos, chegaram a ser realizados serviços religiosos em praça pública:

A ayahuasca é, portanto, uma parte da sabedoria indígena que passou a ser conhecida e usada por várias comunidades, na floresta e nas cidades, em seus cultos religiosos. Essa expansão do uso da ayahuasca ocorreu em diversos países, mas foi no Brasil, mais precisamente no Acre, que se formaram doutrinas religiosas com uma quantidade crescente de seguidores. No final do século XIX, quando ocorrem os conflitos entre Brasil, Peru e Bolívia pela posse do território acreano, os seringueiros já começavam a aprender com os índios o uso da ayahuasca. Passado o período da guerra, a colonização se intensificou e com ela o contato entre brasileiros e índios. Esse contato, embora marcado pela violência que dizimou muitos povos indígenas, teve também seus momentos de troca e aprendizado. Assim, os

44 Segundo Luna (1986), o fenômeno do vegetalismo é praticado, em geral, por populações mestiças como uma forma de medicina popular à base de vegetais, cantos e dietas. Os vegetalistas são curadores das populações rurais do Peru e da Colômbia que combinam elementos dos antigos conhecimentos indígenas sobre as plantas e também absorvem influências do esoterismo europeu e do meio urbano. Segundo Oliveira (2007): ―Trata-se da tradição de se utilizar plantas psicoativas associadas a práticas curativas e xamânicas que acontece ao longo da região amazônica, em especial na região do Peru‖ (OLIVEIRA, 2007, p.169).

brasileiros pobres e analfabetos, que viviam isolados nos seringais, puderam descobrir uma forma de encontrar Deus na floresta, combinando a religiosidade indígena da ayahuasca com o cristianismo que haviam trazido do Nordeste. O uso religioso da ayahuasca fora das aldeias indígenas começa com dois maranhenses, os irmãos Antônio Costa e André Costa, que eram seringueiros em Brasiléia. Numa época em que a igreja mais próxima ficava no Amazonas, com os padres subindo os rios em raras ocasiões durante as ‗desobrigas‘, os irmãos Costa fundaram a primeira organização religiosa no Acre, o Círculo de Regeneração e Fé. Elaboraram um estatuto, formaram uma diretoria e usavam a ayahuasca em suas reuniões como meio de aprendizado espiritual. Começava a surgir uma religiosidade amazônica em que os símbolos do cristianismo convivem com os conhecimentos indígenas, reinterpretados pela linguagem simples do povo (ALVES, et al., 2011, p.16).

O segundo ponto a destacar refere-se à formação de uma ―religiosidade amazônica‖ que surge por meio do ―processo de reinterpretação‖ dos conhecimentos indígenas. Segundo Monteiro da Silva (1983), o traço que identifica ―os sistemas de Juramidam‖45 dizem respeito à trajetória de Mestre Irineu: ―Trata-se da combinação das figuras do pajé indígena, do sacerdote católico e da figura do guia espiritual dos cultos populares afro-brasileiros. Constatamos, assim, o fenômeno de reinterpretação no próprio processo de legitimação dos seus líderes‖ (MONTEIRO DA SILVA, 1983, p. 65).

O outro ponto alude ao fato de algumas narrativas discorrerem sobre a natureza da ayahuasca. Antes da doutrina recebida por Mestre Irineu, ela era identificada como coisa do demônio, como narram Luiz Mendes, Francisco Grangeiro e Raimundo Loredo. O momento de iniciação de Mestre Irineu marca uma mudança de direção no uso da ayahuasca, formando uma outra figuração em que o uso ritual religioso surge como produto de sua nova visão, agora ―ressignificada‖, e também como uma forma de legitimar o uso da ayahuasca em um