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Mobilidade/organização socioespacial e ausência de ajuda do governo em

CAPÍTULO III – ― ENTÃO, NO DIA DA DESOCUPAÇÃO, NASCEU A

3.1 Problemas socioambientais relevantes sob o ponto de vista dos atores

3.1.2 Mobilidade/organização socioespacial e ausência de ajuda do governo em

A constituição dos sujeitos que se fazem seres com o mundo, vivenciando suas experiências num lugar, contrapõe-se com a crescente imposição de mudança de lugar ao longo da sua existência. Essa mobilidade traz a incerteza e a imprevisibilidade diante de uma nova mudança, sob o aspecto da precariedade e da falta de recursos básicos à vida cidadã. Essas reflexões dialogam com a vida na comunidade a partir do momento em que:

[...] esta área já tinha sido ocupada quatro vezes pelo movimento e quatro vezes sofreram reintegração de posse. E aí resolveram de novo, como não tinha outra área para ir, vamos para esta área lá. [...] (S. T.).

Nós éramos 286 famílias, viemos para cá, mas alguns chegando aqui, diante da barbaridade de água, barro, sujeira e outra coisa, de noite tu chegavas aqui e perguntava pra onde foi que tu vieste. [...] Alguns iam embora. [...] (S. T.).

A incerteza da vida comunitária traz consigo o sentimento de resistência, luta e busca constante pelos direitos da comunidade, sendo que esses grupos e categorias sociais lançados numa incerteza particularmente viciosa, procuram fazer o máximo para atar as mãos daqueles em melhor posição para poder calcular o efeito de seus movimentos – ao mesmo tempo tentando desamarrar as próprias mãos e transformar-se, assim, numa fonte de incertezas para os adversários. (BAUMAN, 2000). Por isso: ―É preciso aprender a enfrentar a incerteza, já que vivemos em uma época de mudanças, em que os valores são ambivalentes, em que tudo é ligado‖. (MORIN, 2011b, p. 73). Essa batalha histórica pelo desenvolvimento comunitário sustentável está presente em alguns fatos:

Era uma preocupação durante seis meses, construía o barraco de dia e via o barraco cair de noite, por mais sólido que a gente construísse o barraco. (S. T.).

[...] Então, no dia da desocupação, nasceu a pergunta para onde é que vamos quem queria ir. Foi aí que nasceu esta terra aqui [...] (S. C.).

O enfrentamento das incertezas conectado ao direito da comunidade constitui uma forma de reprodução e de reconstrução desse complexo lugar. Para tal, entende-se que:

O direito da comunidade, como sucede com o próprio espaço da comunidade, é uma das formas de direito mais complexas, na medida em que cobre situações extremamente diversas. Pode ser invocado tanto pelos grupos hegemónicos como pelos grupos oprimidos, pode legitimar e reforçar identidades imperiais agressivas ou, pelo contrário, identidades defensivas subalternas, pode surgir de assimetrias de poder fixas e irreconciliáveis ou, pelo contrário, regular campos sociais em que essas assimetrias quase não existem ou são meramente circunstanciais. (SANTOS, B. de S., 2011, p. 298).

Neste momento, cabe levantar os seguintes questionamentos: quais são os verdadeiros direitos da comunidade? Direito a viver em um espaço com os recursos mínimos para a sobrevivência e aguardar enquanto a mão invisível do mercado seleciona os sujeitos aptos a contribuir com a reprodução do sistema imperial capitalista? Ou, então, direito de ter uma vida digna, decente, com qualidade e valorização da comunidade como um espaço-cidadão e que faz parte da totalidade do município de Santa Maria, podendo, dessa forma, usufruir dos bens e serviços oferecidos pelo espaço urbano?

A questão é que, mesmo com os direitos da comunidade, o contingente de seres humanos tornados excessivos pelo triunfo do capitalismo global aumenta inexoravelmente e, neste momento, está perto de ultrapassar a capacidade administrativa do planeta. Há a possibilidade do capitalismo moderno ―[...] se afogar em seu próprio lixo [...]‖ que não é capaz de reassimilar ou eliminar e do qual não consegue desintoxicar-se. (BAUMAN, 2007).

Esses atores sociais considerados ―pessoas excedentes‖, atualmente, expulsos em larga escala das terras recentemente ocupadas, tornaram-se um problema e um empecilho ao motor do desenvolvimento. Porém, há uma perspectiva de reinserção desse excedente no mercado de trabalho por meio da ―reciclagem‖ ou da ―reabilitação‖. Sendo assim:

Se o excedente populacional (a parte que não pode ser reassimilada aos padrões da vida ‘normal‘ e reclassificada na categoria de membros ‘úteis‘ da sociedade) pode ser rotineiramente removido e transportado para além das fronteiras da área fechada, dentro da qual se buscam a estabilidade econômica e o equilíbrio social, as pessoas que escaparam ao transporte e permanecem dentro dessa área, mesmo que momentaneamente

excedentes, são destinadas à ‗reciclagem‘ ou à ‘reabilitação‘. Estão ‗fora‘ apenas por enquanto, seu estado de exclusão é uma anomalia que exige ser curada e implica uma terapia; precisam claramente ser ajudadas a ‘voltar‘ logo que possível. São o ‘exército de reserva de mão-de-obra‘ e devem ser postas e mantidas numa forma decente que lhes permita retornar ao serviço ativo na primeira oportunidade. (BAUMAN, 2007, p. 37-38).

Não se trata apenas de ter direito ao trabalho, mas ao direito de morar que, muitas vezes, confundido com o direito de ser proprietário de uma casa e de um terreno, é objeto de um discurso ideológico permeado, às vezes, por boas intenções e mais constantemente destinado a confundir os espíritos, afastando, cada vez para mais longe, uma proposta coerente que remedeie a questão. Assim, o que mais se conseguiu foi consagrar o predomínio de uma visão imobiliária da cidade, que impede de enxergá-la como uma totalidade. (SANTOS, M., 2012).

A propriedade da terra faz parte do direito de morar, pois permite a construção da identidade, do sentimento de pertencimento e até mesmo de uma cultura comunitária em um lugar. Essa questão é uma preocupação constante dos atores sociais, podendo identificar-se em suas vozes:

A área é nossa agora e vai ser transformada em projeto. (S. T.).

Na época em que a gente deflagrou um ano e um dia aí a gente começou a correr atrás com mais afinco para descobrir afinal de quem era. Se não tem dono, então, vamos descobrir um dono, vamos fazer um dono. (S. T.). [...] Eu mesmo tenho posse do terreno. A casa é minha, mas eu sei que o lote não é meu. O lote vai ser meu só quando eu tiver uma escritura de posse. (S. C.).

[...] A gente é cadastrada, tem o cadastro, mas nosso mesmo só depois que a gente estiver com a escritura na mão. Aí, a gente pode dizer que é nosso. (D. L.).

A busca constante pela regularização da área por meios lícitos, encontrando, na lei, respaldos para fazer valer o direito do cidadão, demonstra o querer-fazer história no contexto da transitoriedade escalar local-global-local. Neste sentido, de acordo com Paulo Freire:

Um homem faz história na medida em que, captando os temas próprios de sua época, pode cumprir tarefas concretas que supõe a realização destes temas. Também faz história quando, ao surgirem os novos temas, ao se buscarem valores inéditos, o homem sugere uma nova formulação, uma mudança na maneira de atuar, nas atitudes e nos comportamentos... (2001, p. 44-45).

O tema do ―mito do direito à propriedade‖, no que diz respeito à regularização fundiária da área, pode ser percebido nos projetos, propostas e planejamentos em execução e a serem executados pelos atores sociais públicos. (SANTOS, M., 2012). A busca pela concretização dessa tarefa pressupõe uma tomada de decisão do poder público, sendo assim:

[...] a partir do momento em que o município adquiriu aquela área da rede ferroviária, da extinta rede ferroviária, a partir daí é que houve a ocupação. Então, desde um primeiro momento, foi mantê-los no local. (S. F.).

[...] Dentro da nossa área de atuação, no local, existe um cronograma onde, lá no fim, está prevista a regularização fundiária desta área, com a entrega de uma permissão real de uso, que é um documento registrado em cartório, tem validade como uma escritura pública, que cada morador cadastrado lá vai receber. [...] Ele só tolhe o direito de venda, ele não pode vender em menos de dez anos. (S. F.).

Mas, para muitos, ―[...] a rede urbana existente e a rede de serviços correspondente são apenas reais para os outros. Por isso são cidadãos diminuídos, incompletos‖. (SANTOS, M., 2012, p. 140). As ações em execução, planejadas ou já realizadas pelo governo determinam as condições nesse ou naquele lugar, que diretamente influenciam no valor de cada pessoa, contribuindo para que o homem passe literalmente a valer em função do lugar onde vive. Tais distorções precisam ser corrigidas para que se possa começar a falar em cidadania.

Porém, em alguns momentos, percebeu-se, na voz dos atores sociais comunitários, a ausência ou mesmo a distância do poder público no que se refere à resolução dos problemas socioambientais da comunidade. Sendo assim, destaca-se que:

[...] o pior lado é o esquecimento das políticas públicas. [...] (S. C.).

[...] Se for organizado, aí que está o problema da nossa prefeitura e governo que não se organizam. [...] (J.).

[...] Quem é responsável em favorecer com a infraestrutura é a prefeitura, é a boa vontade política. Porque eles no que a gente sabe já fizeram, já pediram, já repediram não sei quantas vezes. [...] (P. D.).

Dessa forma, o componente territorial alude a uma localização das pessoas neste como produto de uma combinação entre forças de mercado e decisões de governo. A falta de interconexão entre a organização comunitária e a organização governamental conduz ao agravamento dos problemas locais; por isso, como o

resultado é independente da vontade dos indivíduos, constantemente fala-se em ―migrações forçadas‖. ―Isso equivale também a falar de localizações forçadas. Muitas destas contribuem para aumentar a pobreza e não para suprimir ou atenuar‖. (SANTOS, M., 2012, p. 141).

A ligação entre o componente territorial e uma política governamental realmente eficiente, capaz de transformar a realidade, muitas vezes, dura e impactante, faz parte do processo de resolução dos problemas socioambientais locais na perspectiva da racionalidade ambiental comprometido e engajado com uma nova forma de desenvolvimento. A complexa construção da racionalidade ambiental a partir da organização de um conjunto de processos sociais torna-se um instrumento de transformação e qualificação da vida que busca:

A resolução dos problemas ambientais, assim como a possibilidade de incorporar condições ecológicas e bases de sustentabilidade aos processos econômicos – de internalizar as externalidades ambientais na racionalidade econômica e os mecanismos do mercado – e para construir uma racionalidade ambiental e um estilo alternativo de desenvolvimento, implica a ativação e objetivação de um conjunto de processos sociais: a incorporação dos valores do ambiente na ética individual, nos direitos humanos e na norma jurídica dos atores econômicos e sociais; a socialização do acesso e apropriação da natureza; a democratização dos processos produtivos e do poder político; as reformas do Estado que lhe permitam mediar a resolução de conflitos de interesses em torno da propriedade e aproveitamento dos recursos e que favoreçam a gestão participativa e descentralizada dos recursos naturais; o estabelecimento de uma legislação ambiental eficaz que normatiza os agentes econômicos, o governo e a sociedade civil; as transformações institucionais que permitam uma administração transetorial do desenvolvimento; e a reorientação interdisciplinar do desenvolvimento do conhecimento e da formação profissional. (LEFF, 2010a, p. 111-112).

Esse conjunto de medidas socioambientais propostas transcende a uma gestão descomprometida e que imobiliza as ações necessárias na comunidade, propõe, sim, uma gestão-força capaz de rasgar o horizonte de possibilidades dos atores sociais diante da própria realidade, mobilizando, sensibilizando e envolvendo grande parte dos sujeitos do lugar num trabalho coletivo que ganha força ao recrutar novos guerreiros. Portanto, uma gestão-força de uma comunidade implica: humanizar o humano (BOFF, 2012); promover um desenvolvimento sustentável diferente da ideia de ―des-envolvimento‖ que tira o envolvimento dos sujeitos com as questões locais (PORTO-GONÇALVES, 2010); construir um direito da comunidade (SANTOS, B. de S., 2011) capaz de atender a diversidade das exigências locais; potencializar a condição humana a partir do processo de conscientização como

homens e mulheres no/do/com o mundo (ARENDT, 2010; FREIRE, 2001); promover a arte de uma política democrática a partir da derrubada dos limites à liberdade dos cidadãos (BAUMAN, 2000); enfim, possibilitar a condição de seres complexos que se transformam ao transformarem o mundo numa tempestade de relações dialéticas que se fundem e separam a cada bater de asas de um inseto ou a cada ação predatória humana diante da natureza. (MORIN, 2005, 2011a, 2011b, 2011c; FREIRE, 2000, 2001, 2005, 2011a, 2011b, 2011c, 2011d).

Os seres humanos assumem sua condição humana a partir da sua relação com o meio, com o outro e consigo mesmo, constituindo-se como cidadãos no constante movimento de (re)desconstrução pessoal e social. Reconhecer a condição de cidadão do mundo, por meio da qualificação da vida na comunidade, é reconhecer o impacto da realidade desse mundo sobre a existência humana, sentido e reconhecido como força condicionante. Nessa perspectiva:

A condição humana compreende mais que as condições sob as quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados, porque tudo aquilo com que eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. (ARENDT, 2010, p. 10).

Sendo assim, o componente territorial apresenta-se como condição fundamental da existência humana, de maneira que o valor do indivíduo, muitas vezes, é determinado pelo lugar onde vive. Também é condição desta mesma existência a organização de políticas governamentais capazes de promover uma vida decente em um espaço com os recursos mínimos necessários para a continuidade da vida. Nessa ótica:

Uma política efetivamente redistributiva, visando a que as pessoas não sejam discriminadas em função do lugar onde vivem, não pode, pois, prescindir do componente territorial. É a partir dessa constatação que se deveria estabelecer como dever legal – e mesmo constitucional – uma autêntica instrumentação do território que a todos atribua, como direito indiscutível, todas aquelas prestações sociais indispensáveis a uma vida decente e que não podem ser objeto de compra e venda no mercado, mas constituem um dever impostergável da sociedade como um todo e, neste caso, do Estado. (SANTOS, M., 2012, p. 141).

O cumprimento dos deveres dos atores sociais públicos, promovendo o desenvolvimento comunitário sustentável, compreende fatores relevantes na transformação da comunidade em um espaço legítimo, como um dos nós que

sustenta a rede urbana santamariense. Deveres como a acessibilidade local e condições de saúde ultrapassam a esfera do assistencialismo e tornam-se necessidades básicas no cotidiano comunitário, não apenas em momentos de política/eleições, mas na imprevisibilidade e na incerteza do dia a dia.