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A maior mudança na história da medicina ocidental aconteceu no século XVII, com a filosofia apresentada por Descartes, que introduziu uma rigorosa separação entre corpo e mente, levando os médicos a se concentrarem no estudo dos órgãos humanos e a negligenciarem os aspectos psicológicos, sociais e ambientais da doença (CAPRA, 2006). Com o avanço da moderna medicina científica e tecnológica e os progressos em biologia a partir do século XIX, a atenção dos médicos “transferiu-se gradualmente do paciente para a doença” (CAPRA, 2006, p. 123). Com o decorrer do tempo, foi se consolidando o projeto de situar o saber e a prática médica dentro do paradigma das ciências naturais, surgindo, em consequência, o primado da objetividade da doença, com exclusão da dimensão subjetiva do adoecer humano (NOGUEIRA, 2009). Segundo Nogueira (2009), essa perspectiva foi priorizada ao ponto de se concluir que, sem uma lesão objetiva, não é possível enquadrar o doente em nenhuma norma das categorias diagnósticas oferecidas pela biomedicina. Ao criticar esse reducionismo, a autora enfatiza que cada vez mais se reconhece que o processo saúde-doença não pode ser explicado sem que se recorra aos referenciais das ciências humanas e sociais.

O modelo biomédico acima mencionado, de acordo com Capra (2006), é ainda hoje reproduzido na educação dos médicos, bem como na pesquisa e na assistência à saúde, e não mudará enquanto a ciência médica não relacionar o estudo dos aspectos biológicos da doença com as condições físicas e psicológicas gerais do ser humano, bem como do meio ambiente em que este se encontra. A medicina contemporânea enfatiza o uso de equipamentos tecnológicos e a prescrição excessiva de medicamentos, bem como a prática de uma assistência centralizada e rigorosamente especializada (CAPRA, 2006). Nessa mesma linha de raciocínio, Nogueira (2009) acentua que, apesar dos avanços obtidos na prevenção e no tratamento de doenças, é possível constatar, de forma paradoxal, diversos fracassos na prática clínica, sobretudo no que concerne ao profissional de saúde lidar com fenômenos subjetivos da pessoa que necessita de cuidado. Muitos autores

já detectaram a crise desse modelo. Há mais de cinquenta anos o ensino médico acha-se sob crítica recorrente em todo o mundo, apesar de ainda hoje predominar a ideologia de tratamento e de cura (NOGUEIRA, 2009).

É fato que, com a descoberta de novas tecnologias, especialmente nas últimas décadas, o ser humano passou a ter a vida prolongada. O aumento da expectativa de vida do brasileiro tem contribuído para alterar o perfil das causas de morte da população, antes caracterizado por doenças típicas de jovens. Nos últimos 40 anos, entretanto, aumentou o número de casos de enfermidades crônicas, que, atualmente, atingem 75,5% das pessoas acima dos 60 anos. Além disso, apesar da alta prevalência desse tipo de doença, apenas 29% dos idosos no país têm plano de saúde. Portanto, o aumento do número de idosos e a consequente mudança no perfil da população requerem melhorias nas políticas públicas, com mais oferta de atendimento geriátrico e gerontológico, assim como medidas no âmbito da Previdência (VIEIRA, 2009). Segundo o IBGE, a proporção no ano de 2000 era de 17,8 idosos para cada 100 jovens. Em 2050, serão 102 para cada 100 jovens (AUMENTO..., 2009). É importante destacar que a diferença entre a longevidade nos países desenvolvidos e em desenvolvimento é que, nos primeiros, o aumento da expectativa de vida veio acompanhado de políticas públicas voltadas à qualidade de vida, ao passo que, nos segundos, isso não aconteceu.

Nos países desenvolvidos, o envelhecimento da população ocorreu em um cenário socioeconômico favorável, o que permitiu a expansão da rede de proteção social. Contudo, nos países em desenvolvimento, e especificamente no Brasil, o processo de envelhecimento, além de acelerado, está acontecendo em meio a uma conjuntura recessiva e a uma crise fiscal, o que dificulta a expansão do sistema de proteção social para todos os grupos etários e, em particular, para os idosos, que ainda convivem, assim como o restante da população, com questões sociais como a pobreza, os elevados níveis de desigualdade e a crescente exclusão (CAMARANO; PASINATO, 2004).

Além desses fatores, Berenstein e Wajnman (2008) apontam que no Brasil o modelo de saúde está centralizado nos serviços curativos, havendo pouco investimento no atendimento preventivo, sendo que, em geral, a população somente procura os serviços de saúde quando já se encontra doente. Assim, as autoras advertem que, se esse quadro não for alterado, haverá uma tendência a que os

gastos com a internação de idosos, associados ao desenvolvimento das tecnologias curativas, sofram uma forte elevação.

Nesse aspecto, “o debate sobre a bioética do fim da vida, longe de ser uma questão relativa ao indivíduo – aquele que morre –, constitui um autêntico problema de saúde coletiva” (SIQUEIRA-BATISTA; SCHARAMM, 2004a, p. 32). É que o progressivo envelhecimento da população brasileira gerará a vulnerabilidade de um maior número de pessoas a doenças crônico-degenerativas, o que torna mais longo o processo de morrer (SIQUEIRA-BATISTA; SCHARAMM, 2004a). A realidade mostra que, de fato, é cada vez maior o número de pessoas em estágio terminal, com doenças crônico-degenerativas incuráveis, que permanecem vivas, sem qualquer perspectiva de inversão do quadro ou de cura, graças aos avanços da tecnologia (SIQUEIRA-BATISTA; SCHARAMM, 2004b). Como consequência, o centro do debate hoje não se restringe a uma discussão sobre a existência ou não de um suposto direito a escolher o momento da morte, mas abarca também o tema dos tratamentos extraordinários que podem prolongar indeterminadamente a vida (DINIZ; COSTA, 2006).

Assim, a longevidade, associada ao avanço tecnológico, suscita o debate sobre o direito de morrer, em especial sobre os limites da medicina e o prolongamento da vida por meio de tecnologias médicas. Diniz e Costa (2004) apontam ser hoje imprescindível o reconhecimento de que a decisão sobre o momento da morte não deveria ser apenas uma questão técnica, mas antes ética, enfocada como um direito de ordem privada. Quanto a isso, vale destacar que o novo Código de Ética Médica (Resolução 1931/09), que revogou o de 1988, destacou, no inciso XXI, do Capítulo I, que trata dos princípios fundamentais, o respeito às decisões das pessoas sobre a própria saúde, devendo o médico aceitar as escolhas do paciente relativas ao tratamento, desde que sejam adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.

De fato, a efetiva participação da pessoa na tomada de decisão é hoje uma exigência ética e legal. Porém, de acordo com Pessini e Barchifontaine (1998), apesar dessa incipiente mudança, é necessário lembrar que o processo de emancipação das pessoas não foi alcançado, em especial nos países da América Latina, pois impera ainda, via beneficência, o paternalismo. No mesmo sentido, Costa e Diniz ressaltam que,

apesar das recomendações expressas no tocante à autonomia dos pacientes, a partir de decisões judiciais desde o início do século XX e da atualização dos códigos de ética profissionais, ainda continuamos a nos surpreender com o relato de fatos que podem ser caracterizados como violação da vontade do paciente ou da paciente (2006, p. 44).

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