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Mapa 4 São Felipe (BA): Localidades rurais

2 UM BREVE CONTEXTO HISTÓRICO: BAHIA E RECÔNCAVO

2.2 MODELO DE PRODUÇÃO TRADICIONAL E CONVENCIONAL

Após a Segunda Guerra Mundial, os países mais desenvolvidos para aumentar a produção e a produtividade das atividades agrícolas intensificaram o uso de insumos químicos, introduziram variedades genéticas melhoradas, irrigação e a mecanização desenvolvendo, assim, um modelo de produção convencional. Consequentemente, esse modelo contínuo de modernização originado pela Revolução Verde proporcionou crescimento econômico, desequilíbrio ambiental e desigualdades sociais causadas por práticas agrícolas inadequadas (ANDRIOLI; FUCHS, 2012).

33 Termo utilizado como “via de circulação interna”, precária e demorada, dificultando a circulação de pessoas e mercadorias, principalmente entre os meses de março e junho, período de intensidade pluviométrica alta (BRITO, 2008, p. 38).

A produção agrícola antes dessa revolução era pautada em pequenas inovações adaptadas por povos tradicionais34 que desenvolviam uma agricultura para garantir a sobrevivência praticada em vários espaços do mundo (PORTO- GONÇALVES, 2004). O modelo de agricultura tradicional foi originado de um sistema de práticas agrícolas (manejo do solo, tração animal, criatividade do agricultor) que decorreram de séculos de evolução biológica, cultural, conhecimentos empíricos e utilização apenas dos recursos naturais (ALTIERI, 2004).

Segundo Altieri (2004), os produtores tradicionais desenvolviam suas culturas criando estratégias por meio das variedades das plantas (policultivos e/ou padrões agroflorestais), as quais diminuíam riscos de baixa produtividade e proporcionava diversidade alimentar obtendo retornos a médio e longo prazo. Utilizando pouca ou nenhuma tecnologia, preservavam os recursos naturais e a saúde.

Na produção tradicional, ainda hoje, segundo Wanderley (2013), os camponeses produzem utilizando diversificação produtiva e da aplicação do princípio da alternatividade para suas necessidades básicas. Estabelecendo equilíbrio entre a natureza e o esforço (trabalho) para a produção voltada para suprir as necessidades alimentares.

Nesse contexto, a ciência da agroecologia vem sedo alternativa de milhares de agricultores familiares e camponeses de vários países que utilizam conhecimentos indígenas conservando os recursos naturais, a agrobiodiversidade e a conservação do solo e da água garantindo soberania, segurança alimentar e preços juntos na produção de seus cultivos. Assim, organizações não governamentais, algumas instituições governamentais e acadêmicas tem fortalecido essa ciência como favorável aos cultivos dos produtores por meio de metodologias de melhoramento da qualidade do solo, uso de defensivos orgânicos, preservação de sementes crioulas e variedade de cultivos no mesmo espaço de produção obtendo plantas sadias, controlando pragas e doenças sem uso de produtos químicos ou melhoramento genético convencionais (ALTIERI, 2010).

Outra forma que vem garantindo a produção de agricultores camponeses em várias partes do Brasil tem sido por meio da mobilização dos conhecimentos desses agricultores para a conservação de suas sementes criolas que carregam

34 Camponeses, indígenas, afrodescendentes, matrizes de racionalidade distintas da racionalidade atomístico-individualista ocidental (PORTO-GONÇALVES, 2004).

conhecimentos de práticas e saberes das experiências do cotidiano onde o processo de manipulação obedece à lógica dos conhecimentos adquiridos através dos erros, acertos entre agricultores camponeses em selecionar sementes resistentes e adaptáveis à instabilidade climática (PEREIRA; SOGLIO, 2014).

Em várias regiões do país experiências de agricultores camponeses tem sido bem sucedidas na produção de seus cultivos a partir do uso de sementes crioulas manipuladas com recursos próprios contribuindo para a resiliência ao clima, garantindo segurança e soberania alimentar aos agricultores. Experiências que podem ser compartilhadas entre os agricultores familiares do município de São Felipe/BA agregando mais conhecimentos aos que eles já possuem em conservar e preservar suas sementes para, assim, possuírem sementes específicas do lugar.

Porém, o sistema de produção que vem sendo incentivado pelos projetos do governo brasileiro que visa ao agronegócio cada vez mais tende a diminuir as práticas tradicionais dos agricultores familiares, principalmente no município de São Felipe/BA no Recôncavo baiano em que os incentivos aos acessos as políticas públicas como PRONAF, PAA e PNAE de alguns agentes de extensão rural direcionam os agricultores a plantarem em suas pequenas áreas semente de mandioca melhorada pela Embrapa para garantir melhor quantidade e qualidade na produtividade, principalmente para garantir também a venda desse produto. E consequentemente o uso de insumos para manter essa produtividade a longo prazo também aumentará.

Os agricultores familiares do município de São Felipe/BA ao produzirem seus cultivos inicialmente para alimentação da família geram o excedente favorecendo trocas de produção com outros agricultores e a comercialização. A partir desse excedente o agricultor familiar tem sido estimulado por agentes externos a produzir a partir de sementes geneticamente melhoradas e do uso de insumos como forma de aumentar sua produção e alcançar o mercado seguindo a lógica do agronegócio brasileiro. Seguindo essa lógica de produção para alcançar o mercado o agricultor vem perdendo características camponesas substituindo saberes e práticas tradicionais por conhecimentos convencionais.

Segundo Andrioli (2012), em 1859 Darwin revolucionou o mundo com a descoberta da seleção natural das espécies no processo evolutivo; sendo combinada em 1930 com os estudos de Mendel das regras da hereditariedade e desenvolvido a teoria sintética da evolução. Para o autor a partir desses

conhecimentos a ciência desenvolveu a transgenia como um progresso para a criação de plantas e animais, sendo essa descoberta apropriada pelas multinacionais da indústria química que dominam o mundo com a produção de monoculturas e seus produtos industrializados provocando sérios problemas à saúde humana e ao meio ambiente deixando para traz os produtos da agricultura tradicional produzidos por camponês (ANDRIOLI, 2012).

Esse tipo de seleção natural era uma técnica utilizada pelos ancestrais dos produtores tradicionais. Após as espécies (plantas e animais) sofrerem mutações naturais, selecionavam-as para cultivar e adestrar as melhores plantas, sementes e animais. Assim, conhecimentos e diversidade genética foram preservados nas unidades de produção familiar desses produtores (ALTIERI, 2004; ANDRIOLI, 2012). Os conhecimentos dos recursos genéticos tradicionais têm sido apropriados por grandes corporações, multinacionais nos Estados Unidos da América - EUA, União Europeia e Japão, apoiados pelos Estados que lhes reconhecem direitos de patentes e de propriedade intelectual individual que comercializam os produtos (sementes) melhorados por um processo de transgenia a preços de usura aos agricultores e consumidores(PORTO-GONÇALVES, 2004; ANDRIOLI, 2012).

Nesse processo de melhoramento genético, apenas para simplificar, a Embrapa Mandioca e Fruticultura tem buscado disseminar sementes (maniva) geneticamente melhoradas de mandioca (Manihot Esculenta Crantz) em alguns municípios do Recôncavo, principalmente no município de São Felipe/BA aos agricultores familiares na intenção de garantir qualidade e aumentar a produção para a comercialização. Isso demonstra que, as sementes geneticamente melhoradas poderão obter ao longo do tempo bons resultados para os agricultores, mas para manter essa produtividade eles terão também que utilizar alguns insumos, além de que, ficarão a espera de resultados das pesquisas da Embrapa e de suas orientações. Além disso, aos poucos todas as sementes tradicionais existentes nessas localidades deixarão de ser utilizadas pelos agricultores levando a perda desse material genético herdada dos seus antepassados. Como consequência desse processo, ocorrerá uma dependência cada vez maior dos agricultores ao mercado perdendo sua autonomia juntamente com seus saberes tradicionais.

Na localidade Chaves, em trabalho de campo (2016), encontramos um agricultor familiar com seu irmão e os membros da família que possuem uma área de 2,5 (ha) utilizando o sistema de irrigação produzindo 1 (ha) de mandioca (Foto 1)

com sementes modificada pela Embrapa do Projeto Reniva (Rede de Multiplicação e Transferência de Materiais Propagativos de Mandioca com Qualidade Genética e Fitossanitária para o Estado da Bahia, elaborado em 2012.

Foto 1 - Área experimental na localidade Chaves com plantio de mandioca melhorada pela Embrapa. Fonte: JESUS, S. S. B. de. Pesquisa de campo (Agosto de 2016)

Segundo Silveira e Cardoso (2015), pesquisadores da Embrapa, esse projeto propõe a formação de uma rede de multiplicação de manivas (pedaços da rama da mandioca) com garantia de qualidade genética e fitossanitária utilizando variedades tradicionais, variedades da pesquisa, seleção visual de plantas sadias e técnicas de propagação não tradicional, formação do produtor profissional de material propagativo e trocas de saberes entre as instituições parceiras: Embrapa Mandioca e Fruticultura; Instituto Biofábrica de Cacau (IBC), das cooperativas Coopamido35, Copatan36 e Copasub37 e a Fundação José Carvalho, através da Escola Rural Tina Carvalho; da Ceplac38 e da EBDA (extinta em 2015), onde poderão indicar

35 Cooperativa dos Produtores de Amido de Mandioca do Estado da Bahia – Coopamido (GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA. CATÁLOGO. COOPERATIVAS DO ESTADO DA BAHIA, 2012, p. 69). 36 Cooperativa de Produtores Rurais de Presidente Tancredo Neves – Copatan (Ibd., p. 92).

37 Cooperativa Mista Agropecuária de Pequenos Agricultores do Sudoeste da Bahia LTDA Coopasub (Ibd., p.153).

variedades adaptadas em varias regiões por diferentes sistemas para garantir um material de qualidade e com mais produtividade.

Para os autores a mandioca é alimento básico para quase um bilhão de pessoas em todo o mundo cultivada em dois milhões de hectares e apresenta tolerância à seca. O Brasil está na segunda posição no ranking de maior produtor mundial, com destaque para a região Nordeste do país. Entretanto, possui baixa produtivida que está associado: à baixa disponibilidade de sementes com garantia de qualidades para o plantio, baixa multiplicação essencial à planta e de um material livre de patógenos.

Apesar de ser avaliada pelos pesquisadores como um cultivo ainda com baixa produtividade que está associada a vários fatores explícitos acima, mas que garante posição na economia e na mesa dos brasileiros cultivada também por agricultores familiares do município de São Felipe/BA com 15.260 (t) em 2014, sendo considerada a segunda cultura temporária mais produzida no município (IBGE, 2014). A mandioca mesmo produzida de forma tradicional com pouca ou quase nenhuma técnica convencional consegue também produzir renda para os agricultores. O que mostra a potencialidade que tem a produção dos agricultores familiares que realiza a produção desse cultivo com práticas agrícolas tradicionais e que possuem mudas também tradicionais.

Segundo o agricultor familiar Sr. Edmilson de Oliveira Rocha, um dos proprietários da área experimental com mudas de mandioca melhoradas, o projeto tem a parceria do Estado, com o município e com a Cooafatre39 que tem como objetivo distribuir mudas com maior resistência a pragas e maior teor de amido aos agricultores familiares no município para que produzam uma variedade de boa qualidade e tenha venda garantida. Essas mudas melhoradas foram inicialmente retiradas de mudas tradicionais de agricultores familiares das localidades do município e de outros na região do Recôncavo, foram modificadas na biofábrica da Embrapa onde foi realizada a transferência de tecnologia para serem adaptadas ao clima da região.

Após a produção das mudas na área do agricultor elas serão distribuídas aos agricultores familiares do município de São Felipe/BA e também de outros municípios. No inicio da implantação desse projeto em sua propriedade, segundo o

agricultor Edmilson, muitos outros agricultores da localidade Chaves e de outras no município não acreditaram que as pequenas mudas pudessem dar bons resultados, o que isso ainda está para ser comprovado, pois o experimento ainda se encontra em andamento não houve colheita (JESUS, S. S. B. de. PESQUISA DE CAMPO, 2016).

O que isso demonstra certa resistência desses agricultores familiares a essa nova maniva apresentando ser um ponto positivo, pois esses têm dúvida do que significará essa nova rama em suas áreas de plantio, apesar de todos os benefícios para a melhoria da produtividade desse cultivo que, lhes foram apresentados pelos pesquisadores da Embrapa, pois esses agricultores familiares não as conhecem e nunca ouviram falar por seus antepassados.

O que confirma nesses agricultores fortes características camponesas pela resistência e desconfiança do novo. Isso também demonstra que para a implantação dessas pesquisas deveria ocorrer mais discussões e participação dos agricultores familiares do município de São Felipe/BA, na elaboração desse tipo de maniva. Pois o que lhes garantem que as sementes modificadas ao longo do tempo não lhes deixarão cativos para alimentar um sistema de produção intencionado, sendo que o melhoramento genético natural ocorreu a partir do processo evolutivo de transferência de genes entre as espécies por meio de mutações naturais. Após a modernização da agricultura e evolução tecnológica para a produção econômica as intenções do aumento na produção dos cultivos dos agricultores familiares favorece a produção do capitalismo e aumento de riquezas de poucos e o empobrecimento de muitos.

Os recursos genéticos cultivados por povos tradicionais em diversas partes do mundo, segundo Porto-Gonçalves (2004), deram origem a um banco de sementes melhoradas por genes de vários países, exemplo, do trigo cultivado no Canadá originou-se de 14 países diferentes; o milho nos EUA, do México e os pepinos cultivados da Birmânia foram da Índia e da Coréia, genes que foram usurpados dos povos sem contrapartida econômica. O que nos leva ao questionamento: de quem será a patente dessas mudas de mandioca melhorada e adaptada ao clima na região do Recôncavo? Dos agricultores familiares que cederam as sementes tradicionais para a Embrapa? Esses serão os verdadeiros patentes ou dos que as melhoraram?

Mesmo que os agricultores familiares venham a ser reconhecidos também como detentores das patentes dessas novas manivas, eles não foram informados de que suas manivas tradicionais ao longo dos anos serão substituídas por novas e melhoradas; tampouco discutiram que isso levará os agricultores a produzir cada vez mais para o mercado descaracterizando ainda mais suas origens camponesas.

Agricultores familiares em algumas regiões da África Ocidental, dos trópicos latino-americanos, do México, da Indonésia e do Brasil, cultivam alimentos pelo sistema de produção tradicional, o qual fornece o equivalente a 20% dos alimentos de boa qualidade alimentar no mundo, sem uso de agrotóxicos. Em pequenas áreas dessas propriedades são cultivadas de 80 a 435 espécies de plantas utilizadas na alimentação e também como medicamentos (ALTIERI, 2004). Com isso é possível perceber que cultivar sementes tradicionais é benéfico e rentável tanto para os agricultores familiares como para a população.

Algumas práticas tradicionais foram relatadas por alguns agricultores familiares do município de São Felipe/BA, como o exemplo do agricultor familiar, Tecnólogo em Gestão de Cooperativas e servidor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município; o Sr. Juvenal da localidade Mutum. Ele explicou que as sementes de milho e amendoim plantadas em propriedade de sua família ainda existem uma pequena variedade de sementes que foram cultivadas por seus antepassados (avós, país e tios). E, quando as sementes são plantadas pelos membros da família no cultivo da produção usa-se uma seleção de etapas para a colheita: primeiro escolhe a área da plantação que está com as melhores plantas e frutos essas são colhidas às sementes para garantir a próxima safra e as outras serão consumidas pela família ou comercializadas na feira-livre ou vendida ao atravessador. Essa prática, de acordo com o Sr. Juvenal, também é utilizada na plantação da mandioca para preservar as mudas de boa qualidade (PRÉ-CAMPO ENTREVISTA REALIZADA NA II FEIRA DE AGRICULTURA FAMILIAR DO MUNICÍPIO, 2015).

Porém, cada vez mais as práticas e sementes tradicionais no município de São Felipe/BA estão se perdendo no campo influenciadas por agentes externos que incentivam os agricultores aumentarem a produção com uso de sementes geneticamente modificadas doadas pelo Governo Estadual ou adquiridas em mercados, cuja origem de muitas delas são de grandes empresas multinacionais.

3 POLÍTICAS PÚBLICAS E O ESPAÇO AGRÁRIO DO MUNICÍPIO DE SÃO