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Modo de produção e dinâmica da filmagem dentro da Vera Cruz

2. A VERA CRUZ E A FOTOGRAFIA

2.6. Modo de produção e dinâmica da filmagem dentro da Vera Cruz

Quando se lê os depoimentos sobre a Vera Cruz, é possível notar que os temas mais recorrentes são as filmagens dispendiosas, um certo caos na produção, a falta de controle financeiro e logístico sobre os filmes. Por tudo o que vimos sobre a produção dos dois filmes analisados, o que sobressai é que nunca a Vera Cruz teve claro como queria chegar aos seus resultados. Isto resultou da falta de alguém que se preocupasse não somente com a qualidade artística dos filmes, mas com sua relação de custo e benefício.

Isso seria, num sistema de estúdio, que era o modelo que a Vera Cruz tentava seguir, o papel do produtor. Não o diretor de produção, mas o produtor que controla as finanças, faz os projetos se adequarem e respeitarem cronogramas e orçamentos. Dentro deste sistema, as figuras do fotógrafo e do montador têm uma importância que poucos se dão conta. No Brasil atual somos acostumados a diretores que são produtores de seus filmes. E, se o diretor de fotografia ou o montador entram numa discussão estética (ou outra qualquer), a última palavra sempre será a do diretor. Num sistema de estúdio a realidade é diversa, acima de todos há a figura do produtor. O diretor é a figura de maior posição hierárquica dentro do set. Porém, se numa discussão com o diretor de fotografia este têm a razão, os dois se reportam ao produtor, que é quem vai definir. Neste contexto, a figura do fotógrafo tem uma grande importância, menos submissa que num

como decupagem e eixo. Este contexto fica claro no depoimento de James Wong Howe, diretor de fotografia com uma extensa e importante carreira em Hollywood:

“ ... eu tive esta experiência quando rodava um filme com John Garfield no deserto de Palm Springs. Filmávamos em volta de um galpão, dentro de onde se empacotavam tâmaras. O sol se pôs, então o diretor de produção ligou para o estúdio para dizer que não poderíamos mais continuar filmando. O chefe do estúdio pediu para falar comigo e disse: ´Jim, eu sei que há um problema aí com o sol, mas nós não sabemos quando vamos ter ele de novo. Agora eu quero que você tente terminar isso e volte para o estúdio, para que possamos manter o cronograma.´ Eu disse: ´Bem, eu posso fazer isto se o diretor me deixar enquadrar de um modo que eu não tenha que rodar os contracampos colocando o deserto como fundo do quadro. Eu não posso iluminar o deserto. Mas eu posso iluminar o galpão.´ Ele disse: ´Bem, ponha o diretor no telefone.´ Naturalmente, o diretor teve que concordar com esta sugestão, eu arrumei os planos e ele fez a ação de um modo que não tivéssemos que rodar os contracampos.”180.

Note-se como o fotógrafo era o encarregado e tinha a confiança do produtor executivo para resolver um problema, e como o diretor, em algumas ocasiões, por interferência do produtor, tem que aceitar suas sugestões.

Na Vera Cruz o fotógrafo e os técnicos tinham seus poderes, mas faltava este tipo de produtor para controlá-los. Não um diretor de produção, função que existia na Vera Cruz, mas um produtor que fosse responsável pelo controle orçamentário, o produtor executivo, função de fundamental importância dentro do cinema industrial. Sem este, os filmes acabavam por ser controlados pelos técnicos e artistas mais experientes, que têm seus interesses próprios, que não necessariamente são o interesse do estúdio. Rex Endsleigh, técnico inglês que trabalhava na área de montagem do estúdio paulista, em seu depoimento, que consideramos um dos melhores sobre como funcionava a Vera Cruz, dá um panorama técnico muito significativo, e de uma humildade rara. Ilustra muito bem o que enfatizamos ao analisar Tico-tico no fubá e O

cangaceiro.

180 “... I had this experience when shooting a film with John Garfield in the desert in Palm Springs. We

were shooting around a shed where they were packing dates. We lost the sunlight, so the production manager called the studio to tell them that we cannot continue shooting. The studio boss asked to speak to me and said, ´Jimmy, I understand there is a problem there with the sun, but we don’t know when that sun will be out again. Now I want you to try to finish it and come back to the studio so we can keep on schedule.´ I said, ´Well, I can do it providing the director will let me pick the setups so that I don’t have to make reverse shots shooting out towards the desert. I cannot light that desert up, but I can light the packing shed.´ He said, ´Well, get the director on the phone.´ Naturally the director had to agree with this suggestion so I picked setups and had him plot the action so that we did not have to shoot the reverse shots.” in MALKIEWICZ, Kris. Film lighting: talking with Hollywood’s cinematographers and gaffers.

“O pior de tudo é que o trabalho realmente criativo dependia de nós – dos ingleses. Não digo que fôssemos incompetentes – acho que ninguém era -, mas não estávamos habilitados para isso. Poderíamos ter feito um excelente trabalho se houvesse uma orientação superior, e, justamente, não havia. Na medida em que os diretores eram inexperientes, os filmes eram feitos na sala de montagem. Frequentemente chegava pra gente um material que não tinha pé nem cabeça, e Hafenrichter, que era o editor-chefe, ficava desesperado, sem saber o que fazer com aquilo. Se alguém criou alguma coisa nos filmes, foi o Hafenrichter. Porque eram as modificações que ele mandava a gente fazer entre as sequências, e dentro das sequências, que acabavam dando alguma lógica ao material frequentemente primário que nos chegava às mãos, que simplesmente não dava pra montar. Então era preciso filmar novas tomadas que pudessem servir de ligação entre um plano e outro, o que significa mais despesa, mais perda de tempo. ”181.

Ele conclui que o processo era todo uma tentativa de ir consertando um erro atrás do outro, e que “...exatamente como o Hafenrichter fez na sala de montagem, o Chick teve que assumir a responsabilidade do trabalhos nos sets de filmagem”182.

Mesmo Cavalcanti, que no início cumpria este papel, trabalhando na Vera Cruz até o ano de 1951, não era na visão de Endsleigh o homem certo para esta função, em vista de que não controlava os gastos183. Houve brigas por conta dos gastos, como podemos perceber pela fala de Lima Barreto, mas nunca de uma maneira racional, feita por alguém que pudesse avaliar a relação de custo/benefício que isto implicaria. Economizava-se em bobagens, como compra de materiais específicos184, e eram permitidas filmagens longas e refilmagens por falta de planejamento e bom senso.

Claro que temos ciência de que, analisando por fora e em outro tempo histórico, muitas coisas que hoje parecem claras poderiam não ser à sua época. E não temos a pretensão, eternamente presente no cinema brasileiro, em achar a solução para seus problemas. Mas qualquer pessoa que estude a Vera Cruz deixa-se intrigar por esta produção absolutamente sem perfil, pois a cada hora uma decisão diferente era tomada e nada era rigorosamente planejado. As citações que recolhemos evidenciam, com clareza, esta característica.

181 Apud GALVÃO, Maria Rita. Op. cit. p. 125. 182 Apud Idem. Op. cit. p. 125.