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2 ESTILOS DE VIDA E CONSUMO CULTURAL: A DISPOSIÇÃO

2.1 O JOGO SIMBÓLICO DA DISTINÇÃO SOCIAL: A DISPOSIÇÃO

2.1.1 Modos de adquirir cultura: capital herdado e capital adquirido

Como vimos, Bourdieu (2007a) procura mostrar em suas análises a relação entre as práticas de consumo cultural e a luta de classes objetivada por meio da posse do capital

cultural. Nesse aspecto, o autor distingue três formas de capital cultural. A primeira delas é o capital cultural, em seu estado incorporado, fundamental, que está diretamente ligado à singularidade do agente e pressupõe um tempo de investimento pessoal para ser incorporado. Sua principal forma de transmissão é a hereditária, doméstica, bem dissimulada, que faz do capital cultural, “o mais oculto e determinante socialmente dos investimentos educativos” (BOURDIEU, 2007a), devido a sua precocidade e durabilidade.

As diferenças no capital cultural possuído pela família implicam em diferenças: primeiramente na precocidade do início do empreendimento de transmissão e de acumulação, tendo por limite a plena utilização da totalidade do tempo biologicamente disponível (...); e depois na capacidade. A transmissão do capital cultural incorporado também pode se dar pela incorporação de novas disposições ao longo da vida do indivíduo, na escola, nos grupos religiosos etc., embora seja determinado pelo capital incorporado durante sua primeira socialização, assim definida para satisfazer às exigências propriamente culturais de um empreendimento de aquisição prolongado (BOURDIEU, 2007a, p.76).

A segunda forma do capital cultural é o capital cultural objetivado, que se apresenta sob a forma de bens culturais. Sua apropriação depende do capital cultural incorporado pelo conjunto da família e, nesse sentido, o capital cultural objetivado é transmissível em sua materialidade, mas não na condição de apropriação específica. Ele só existe como capital ativo e atuante, ao ser objeto de apropriação e utilização, nas lutas nos campos de produção cultural e no campo das classes sociais.

O terceiro estado do capital cultural é o certificado, que é a objetivação do capital cultural sob a forma do diploma. Esse tipo de capital tem uma autonomia relativa em relação ao seu portador e até mesmo às outras formas de capital cultural que detém (BOURDIEU, 2007c). Assim, enquanto o capital cultural, em seus estados incorporado e objetivado, apresenta-se como vivência ou experiência, o capital cultural certificado é um símbolo, uma certificação escolar, que depende, em certa medida, de outros capitais que podem ser disponibilizados a seu serviço.

A partir da configuração do capital cultural, Bourdieu versa sobre os dois modos distintos, mas intimamente ligados na aquisição desse capital: o aprendizado total e o aprendizado tardio, a respeito dos quais esse (2007a) autor destaca os efeitos do que é

considerado como o “aprendizado total”, inculcado, primeiramente, no seio da família, pela vivência com a cultura e prolongado pela aprendizagem escolar que o pressupõe e o completa.

Assim, o aprendizado total transmitido, inicialmente, pela família “por vias indiretas que diretas, constitui certo capital cultural e certo ethos, um sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados” (BOURDIEU, 2007a, p.41-42), ou seja, sua forma incorporada que vai muito além dos investimentos em certificação escolar. Por ser transmitida via família, para além do estado de certificação do capital cultural, tornando- se um estado incorporado, esse capital traduz todo um sistema de disposições culturais que definem as atitudes do agente frente à apropriação dos bens simbólicos, transparecendo certa naturalidade na maneira de se apropriar.

De um modo mais específico, segundo Nogueira e Nogueira (2002; 2004), a bagagem transmitida pela família inclui certos componentes que passam a fazer parte da própria subjetividade do agente, sobretudo, em sua forma "incorporada", como os conhecimentos mais gerais, os gostos em matéria de arte, culinária, decoração, vestuário, esportes etc.; o domínio maior ou menor da língua culta; as informações sobre o mundo escolar, e assim por diante. A acumulação de capital cultural começa na origem para aqueles agentes cujas famílias são dotadas de capital cultural elevado, ou seja, há um capital cultural herdado. Contudo, ainda segundo Nogueira e Nogueira (2002; 2004), aqueles que recebem uma herança cultural, desde muito cedo e de modo difuso, insensível, teriam dificuldade de se reconhecer como "herdeiros", e suas disposições e aptidões culturais e linguísticas pareceriam ser naturais, e não, incutidas em razão do processo de dissimulação do arbitrário.

Entretanto, para as classes populares, a apropriação do capital cultural se dá via aprendizado tardio, adquirido de forma acelerada, por meio de uma ação pedagógica explícita e sistemática, sobretudo, mediante o processo de escolarização. Assim, nesse contexto, a escola se torna uma das responsáveis pelo processo de aprendizagem das disposições culturais, em razão de sua legitimidade forjada na modernidade, que cumpre a função de reconhecer um sistema de disposição geral baseado numa mesma cultura (BOURDIEU, 2001, p.209), por meio do qual, diferentes atos e práticas são regulados de acordo com a cultura legítima de um arbitrário cultural.

A esse aspecto, a imposição da cultura dominante transvestida de legítima é denominada por Bourdieu (2001) de arbitrário cultural, na medida em que nenhuma cultura pode ser objetivamente definida como superior a outra. Os valores e significados que orientam cada grupo social, em suas atitudes, seriam, por definição, arbitrários e não podem “ser deduzidos de nenhum princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando unidas por nenhuma espécie de relação interna à natureza das coisas ou a uma natureza humana”(BOURDIEU, 2001, p.74).

No livro, A Reprodução, Bourdieu e Passeron (1992), ao analisar o sistema escolar francês, apontam que a escola cumpriria, simultaneamente, uma função de reproduzir e de legitimar as desigualdades sociais. A reprodução seria garantida pelo simples fato de que os alunos que dominam, por sua origem, os códigos necessários à decodificação e assimilação da cultura escolar tenderiam a alcançar o sucesso escolar, pois pertenceriam às classes dominantes. Com isso, a legitimação das desigualdades sociais ocorreria, indiretamente, pela negação do privilégio cultural dissimuladamente oferecido aos filhos das classes dominantes julgadas como habilidades naturais.

Dessa forma, a escola, como um espaço social, acabaria impondo a interiorização e a reprodução de um arbitrário cultural, que consiste em camuflar o modo dominante de lidar com a cultura que é valorizado pela escola. Bourdieu denomina esse processo de imposição dissimulada de um arbitrário cultural de violência simbólica.

[...] a AP [ação pedagógica] implica o trabalho pedagógico (TP) como trabalho de inculcação que deve durar o bastante para produzir uma formação durável; isto é, um habitus como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a cessação da AP e por isso de perpetuar nas práticas os princípios do arbitrário interiorizado (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p.44).

Nesse sentido, é possível concluir que a escola, além de divulgar o arbitrário cultural e reforçar as desigualdades sociais, mascarando seus mecanismos de seleção, por meio da ideologia do dom e da meritocracia (BOURDIEU, 2001), também incute um habitus que seja mantido mesmo depois do fim do trabalho escolar. Isso é o que confere ao mercado escolar uma autonomia relativa, que parece justificar a ideologia do mérito.

Consequentemente, as diferenças nos modos de aquisição cultural, segundo Bourdieu (2007a), reverberam em diferenças que não se inscrevem apenas na

profundidade e na durabilidade dos efeitos entre o capital herdado e o adquirido, mas também, principalmente, na modalidade da relação do agente com a cultura que ele favorece. Enquanto o aprendizado total tende a produzir certo desembaraço, uma predisposição com a cultura por meio do habitus de classe, o modo dominante, o aprendizado tardio produz uma relação artificial quase “forçada” da legitimidade cultural. Nesse aspecto, tratar-se-ia que

modalidades de competência cultural e de sua utilização, são dois modos de aquisição da cultura: o aprendizado total, precoce e insensível, efetuado desde a primeira infância no seio da família, e o aprendizado tardio, metódico, acelerado, que uma ação pedagógica explícita e expressa assegura. O aprendizado quase natural e espontâneo da cultura se distingue de todas as formas de aprendizado forçado, não tanto, como o quer a ideologia do "verniz" cultural, pela profundidade e a durabilidade de seus efeitos, mas pela modalidade da relação com a cultura que ele favorece. Ele confere a certeza de si, correlativa à certeza de deter a legitimidade cultural, verdadeiro princípio do desembaraço ao qual identificamos a excelência; ele produz uma relação mais familiar, ao mesmo tempo mais próxima e mais desenvolta, com a cultura (BOURDIEU, 2007a, p.65 ).

Cabe destacar que, do ponto de vista de Bourdieu, o capital cultural constitui, sobretudo em sua forma incorporada, o elemento da bagagem familiar que teria o maior impacto na apropriação dos bens simbólicos, atuando como instância de conhecimento, enquanto que, na forma certificada, pela qual a escola é a responsável, e cuja função é de inculcar a cultura legítima, atuaria como instância de reconhecimento e consagração (BOURDIEU, 2007b). Além desse aspecto, a escola também atua como instância de reconhecimento por tornar, objetiva e subjetivamente, os agentes aptos e dispostos a decifrar os produtos culturais produzidos nas instâncias de produção de bens eruditos e consagração pela legitimação das obras do passado, através de sua incorporação aos programas escolares, transformando-os em “clássicos”.

Em resumo, a família e a escola oportunizariam aos agentes a aquisição de uma competência cultural na qual se inscreve um conjunto de regras, normas ensinadas historicamente que possibilitam a obtenção prévia de códigos de apreciação do campo simbólico, porém, com funções distintas e complementares. Embora Bourdieu (2007a, p.75) aponte, ainda, que o modo de se apropriar legitimamente da obra de arte está

correlacionado mais estreitamente ao capital herdado, uma vez que a origem social indica a posição social no campo e é reveladora das disposições profundas e antigas, mais dependentes das aprendizagens precoces, situadas fora do campo da intervenção escolar e de qualquer prescrição expressa.

Desse modo, a família e a escola, tomadas como mercados simbólicos, funcionam como espaços instituidores de competências necessárias aos agentes para atuar em diferentes campos, fortalecer o que é “aceitável” e desencorajar o que não é. Dito de outro modo, as práticas culturais incentivadas por essas duas instâncias - a família e a escola - distinguem o que será classificado como legítimo ou vulgar do clássico ou popular moderno ou tradicional etc.

Assim, segundo essa lógica de que a escola ocupa um lugar nas instâncias de reprodução e consagração do campo cultural, podemos inferir que ela não produz conhecimento nenhum apenas consumidores de bens culturais e, eventualmente, produtores de conhecimentos. A cultura propriamente escolar é uma “cultura segunda”, dedicada inteiramente aos imperativos da transposição didática (FORQUIN, 1992) e que, ao cumprir a função de canonizar e de inculcar, contribui para manter uma defasagem entre a cultura produzida pelo campo artístico e a cultura escolar.

Considerando que os bens culturais da cultura erudita, por serem raros e esotéricos, só podem ser apreendidos pelos possuidores dos códigos necessários à decifração desses bens, e que a escola não dota igualmente todos os agentes dos esquemas de pensamento necessários à decodificação dos bens culturais produzidos no campo de produção cultural, pois ela é uma instância de reconhecimento e consagração, a conclusão a que se chega é de que a escola contribui para reproduzir a força simbólica que dissimula a estrutura das relações sociais. Em outras palavras, o sistema de ensino “reproduz um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre os grupos ou as classes (reprodução social)” (BOURDIEU e PASSERON 1992, p.64), por essa razão, os professores se encontram numa posição subalterna, praticamente a de público leigo, no campo da produção cultural.

Nesse sentido, o espaço de produção de bens simbólicos - o campo cultural - impõe uma “distância diferenciada” por meio de um arbitrário cultural - a cultura

dominante/erudita, o que não parece ser uma escolha, mas transmutado pela alquimia das relações de força entre as classes sociais, no campo simbólico, ao legitimar os bens e os modos de apreciação, com base no fundamento da estética pura, e olhar para a forma, e não, para a função, requisitos da cultura erudita, como discutido em tópicos anteriores.

Essa arbitrariedade ocorre porque não existe um componente intrínseco às práticas da produção erudita que as coloque acima dos bens consumidos pelas demais classes. A dinâmica do campo cultural acaba sendo a dinâmica de legitimação das práticas e dos bens consumidos pela classe dominante que, historicamente, acumula capital cultural devido as suas condições materiais e simbólicas. Por meio dos processos de legitimação, a classe dominante vai travestindo sua particularidade em universalidade. O que se observa é que, se a escola não oportuniza o acesso à decodificação da arte, não se tem acesso ao seu entendimento, seu consumo fica obstruído, e “a obra de arte só adquire sentido e só tem interesse para quem é dotado do código segundo o qual ela é codificada” (BOURDIEU, 2007a, p.10).

Como consequência, aquele que não domina o arcabouço conceitual se distancia da chamada “arte erudita”, uma vez que não consegue decodificar sua mensagem. Em matéria de arte e de seu consumo, ocorre conforme a mesma lógica de organização do espaço social que é configurado pelo volume de capital, pela composição do capital e pela trajetória social.

A exposição dos principais conceitos do aparato teórico bourdieusiano com os quais fundamentamos o entendimento do nosso objeto ancorou as estratégias de pesquisa desse estudo, que serão apresentadas a seguir.