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Modos de interpretar a diferença: palavra e silêncio, ser e não ser

No documento À Custódia de Oliveira Silva (páginas 40-45)

CAPÍTULO I – PALAVRA, SILÊNCIO, ESCRITURA: UMA QUESTÃO

1.2 PALAVRA E SILÊNCIO COMO CAMINHO: UM ENCONTRO COM O

1.2.1 Modos de interpretar a diferença: palavra e silêncio, ser e não ser

● Primeiro: o que o espírito pode perceber

Para Eriúgena um intelecto ou razão não pode compreender o que é uma substância ou essência; pode compreender acidentes da essência, pois sendo essencial não pode ser conhecido. “Mas, onde tem lugar aquilo que a palavra não pode dizer? O que há além da palavra? Segundo o exposto: Deus e as causas e razões por Ele criadas” (BAUCHWITZ, 2003, p.21).

O que há além da Natureza? Para Eriúgena, nada. Tudo o que Deus como essência criou é a Natureza, e nada mais.

O que pode ser apreendido é e o que supera as capacidades da compreensão não é. Assim, aquilo que pode ser compreendido se expressa na palavra por meio de afirmações e negações e o que não se compreende, e, portanto, está além das afirmações negações permanece fora da palavra. Este modo carrega uma questão decisiva na filosofia de Eriúgena, a saber, a inevitável relação de identidade entre a compreensão das coisas e as coisas mesmas, entre o pensamento e aquilo que é. Ser significa ser conhecido, quer dizer, ser afirmado ou negado na palavra. Logo, é na palavra onde as coisas são, são conhecidas e têm lugar. (BAUCHWITZ, 2003, p.22)

● Segundo: afirmação ou negação das criaturas

No segundo modo a diferença se aplica às criaturas intelectuais ou racionais. Ser ou não ser à medida que podem ou não ser conhecidas por outras. “O modo se aplica a todas as ordens do criado, quer dizer, desde o mais próximo a Deus, o anjo, até o mais remoto, o metabolismo do corpo” (BAUCHWITZ, 2003, p.23). Nesse sentido, estabelece-se uma hierarquia; conhecendo (afirmando) nos encaminhamos para o inferior e negando (desconhecendo) atendemos ao que é superior. “A afirmação do homem é a negação do anjo, mas a negação do homem é a afirmação do anjo e vice-versa” (ERIÚGENA, apud BAUCHWITZ, 2003, p.23).

● Terceiro: o mundo tal como o conhecemos

Todas as coisas, por terem matéria e forma, tempo e lugar, podem ser vistas, são a manifestação do que se oculta. Ao interpretar ser e não ser dessa maneira entende-se a dinâmica da Natureza como manifestação e ocultação, estabelece-se a relação entre causa e efeito, no mais profundo da Natureza permanecem as causas e o que se mostra em plenitude visível são os efeitos.

Para ilustrar esta interpretação, Eriúgena exemplifica a partir da natureza humana. Os "homens, que já aparecem ou apareceram no mundo visivelmente se dizem que são; mas os que ainda se ocultam, pese a serem do futuro, se dizem que não são”. Segue Bauchwitz explicando que o mesmo acontece com a potencialidade das sementes, que se mantém silenciosa no segredo da natureza porque ainda não aparece, e se diz que não é; mas quando se manifesta nos animais e flores e frutos de árvores ou ervas que nascem e crescem, se diz que é. (ERIÚGENA, apud BAUCHWITZ, 2003, p.23)

● Quarto: primazia do conhecimento

Esse modo de pensar na definição de ser e não ser, aquilo que unicamente o intelecto pode conhecer é; enquanto que aquilo que surge em matéria e forma, em lugares e tempos determinados, não é. Segundo Eriúgena, este é o modo dos filósofos. Aqui o intelecto só pode conhecer o que está em repouso, sem movimento.

● Quinto: exclusivo do homem

Ao abandonar seu estado original, a natureza humana não é, mas quando restaurada pela graça de Cristo, é. Assim, enquanto permanece em pecado o homem não é, e quando segue a Cristo é. Bauchwitz ressalta que ser cristão para Eriúgena é ser filósofo.

Bauchwitz (2003) explica as relações e oposições entre si dos cinco modos de pensar a diferença primordial da natureza. Para a reflexão em curso, interessa pensar a importância da palavra na realização do ser, como aceitação e definição do silêncio do não ser. “Isto significa que o ser encontra na palavra a sua realização, que o ser se realiza na palavra. A palavra dá existência ao ser, é o lugar onde pode ser como algo determinado ou definido” (BAUCHWITZ, 2003, p.25).

1.2.2 A palavra como lugar do ser

Ser humano significa, portanto, retirar o não ser do silêncio e fazer que sejam todas as coisas na palavra. E palavra aqui não significa apenas a expressão dos signos das vozes, explica o supracitado autor, mas se refere ao movimento da alma humana que deseja ardentemente conhecer e ser.

Entende-se, portanto, que a palavra, ao mesmo tempo em que é manifestação do ser humano, é também o meio pelo qual o homem cria-se a si mesmo. Assim, palavra e silêncio são constituintes da natureza humana, ser e não ser, palavra e silêncio.

Seguindo a Dionísio Areopagita, para Eriúgena, Deus reside no silêncio e o mais alto que pode chegar a alcançar o ser humano é retornar e unir-se ao inefável. Se isso é assim – essa tão elevada significação do silêncio –, sempre se poderá perguntar por que não se respeita e se guarda o silêncio, quer dizer, porque não silenciar e calar? Uma resposta agora só pode ser intuída: ao dar voz ao silêncio – e isto, recordemos, quer dizer fazer-se palavra –, é o próprio destino do ser humano o que está em jogo. Sua essência é gestar um mundo – o seu – que, de um modo paradoxal ou não, mostra o que não é o mundo. É que calando sem mais, não se guarda o silêncio, é necessário acolher o silêncio, resguardando-o do ruído e da tagarelice. O silêncio indica um caráter que não pode ser silencioso, senão uma disposição para estar em marcha para a construção do seu sentido: para alcançar o silêncio é necessário falar. (BAUCHWITZ, 2003.p.28)

Pensemos agora nas contribuições de Eriúgena para a presente reflexão. Como já referido, o professor é um profissional da palavra, leitor e revelador de silêncios. Em sua prática, portanto, a partir da palavra faz emergir o silêncio dos alunos, no momento revelador, aquele em que o brilho dos olhos, um gesto ou um sorriso sinaliza o instante em que mestre e discípulos se encontram com o conhecimento. Assim, é na palavra dada e revelada e no silêncio que ela esconde que o professor provoca a manifestação do silêncio.

Ao tratar da afirmação e negação das criaturas, Eriúgena leva a pensar sobre quanto nos aproximamos dos caminhos da perfeição ou nos distanciamos dele. Ora mais para anjos, ora mais para as fraquezas humanas. Nesse sentido, mais indagações são sugeridas, como, por exemplo, em que medida nossa busca pelo conhecimento e o conhecimento de nossa interioridade nos aproxima do plano espiritual?

A natureza como manifestação ou ocultação, no pensamento de Eriúgena, pode nos sugerir, mediante o belo exemplo das sementes, o quanto nós professores podemos acreditar no potencial dos alunos, acreditar sem ver, pois no processo de formação a manifestação dessa interioridade mais profunda se apresenta em tempo kairós, tempo vivido, portanto, jamais cronológico, previsto, planejado. Quantas potencialidades em sala de aula passam despercebidas porque, em segredo, ainda não aparecem, não se revelam.

Pensando ainda de acordo com Eriúgena, se o intelecto só pode conhecer o que está em repouso, sem movimento, é preciso então estar em silêncio. Para o filósofo irlandês, afastar-se desse silêncio original é afastar-se do espiritual, do divino.

Vale repetir que sair do silêncio é fazer-se palavra, criar-se pela palavra, não a palavra enquanto signos da voz, mas a palavra significativa de um movimento da alma. Em sala de aula, por exemplo, na formação de professores, é possível a palavra do professor despertar o desejo de conhecer e, ao mesmo tempo, alimentar a paixão pelo “ser professor?”

Se Deus reside no silêncio, se o mais alto que se pode chegar a alcançar o ser humano é retornar e se retornar é unir-se ao inefável, quais as possibilidades de se alcançar esse silêncio, se hoje, no mundo em que vivemos, o que predomina é um enorme ruído, uma enorme tagarelice, barulho, muito barulho. Como então exercer a “infinita e paradoxal vocação do ser humano: por meio de sua palavra dar

voz ao silêncio, ou melhor, estar já a caminho do silêncio?” (BAUCHWITZ, 2003, p.59)

Segundo Eriúgena, o mundo é ”uma medicina para o espírito”; nele e por ele a alma humana pode chegar a curar-se de seu pecado, que nada mais é que o movimento irracional que se dirige para fora de Deus (ERIÚGENA, apud BAUCHWITZ, 2003, p.60). Nesse sentido, o processo de cura parte do necessário retorno a Deus, um retorno ao silêncio.

Da Idade Média à Idade Moderna, à modernidade25 ou ainda à contemporaneidade, quanto nos afastamos ou nos aproximamos da experiência com o inefável26?

A percepção da premência de retornarmos ao silêncio interior conduz novamente a outro caminho, o caminho da interioridade, da mística, da relação com o divino, talvez um necessário retorno às ciências teoréticas, contemplativas ou teóricas.

Quando neste estudo me indago sobre Palavra, Silêncio e Escritura como uma questão metafísica, essa indagação quase obsessiva sobre a profissão, entendo que o que nos faz humanos encontra-se no plano espiritual, esquecido pelo intelecto. Assim, ao pensar a sala de aula e a formação talvez esteja faltando pensar essa relação com o inefável. Nesse sentido, nos colocamos a caminho do silêncio interior como uma questão da mística.

25

Modernidade é uma palavra polissêmica e que merece maiores explicações, que poderão ser conferidas no próximo capítulo.

26

A partir desse ponto tomar-se-á o significado de inefável na teologia mística, em que se explica o inefável como aquilo que se revela no ponto culminante da experiência mística, o entusiasmo ou êxtase. Cf.: PLOTINO, apud ABBAGNANO, 2007, p.645.

CAPÍTULO II - SILÊNCIO DO MUNDO INTERIOR - UMA QUESTÃO DA MÍSTICA?

No documento À Custódia de Oliveira Silva (páginas 40-45)