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2.3 A Lei Maria da Penha

2.3.3 Do fato ao processo

2.3.3.2 Momento processual

O processo tem seu início no oferecimento da denúncia, apresentado conjuntamente com o inquérito policial, ou do pedido de medida protetiva por parte da ofendida junto a autoridade policial. No caso de ter sido recebido o pedido de medida protetiva, considerado de urgência quando ocorre nesse contexto, o juiz deve apreciá-lo, podendo tomar diferentes atos decisórios. Relativamente ao tema, DIAS (2010, pg. 181), explica:

“Ao receber o expediente, o juiz precisa atentar ao fato de que o pedido de providências foi levado a efeito perante a autoridade policial. Assim, não há como exigir que estejam atendidos todos os requisitos de uma petição inicial, de um inquérito policial ou de uma denúncia. [...] Ainda que o pedido tenha sido formulado perante a autoridade policial, devem ser minimamente atendidos os pressupostos das medidas cautelares do processo civil, ou seja,

podem ser deferidas ‘inaldita altera pars’ ou após audiência de justificação e não prescindem da prova do ‘fumus boni juris’ e ‘periculum in mora’.”

DIAS continua, afirmando que se for flagrada a existência de situação que mereça tutela, o juiz deve fazer a concessão de medidas que entenda ser necessárias para a garantia do fim da situação de violência, tendo um período de 48 horas para apreciar tal pedido liminar. Essas medidas protetivas podem ser acolhidas ou rejeitadas de plano, dispensando a ciência prévia do Ministério Público, como é descrito pelo art. 19, §1˚, da Lei em comento.

Já nas situações em que não ocorre o pedido de medida protetiva por parte da ofendida ante as autoridades policiais, o processo inicia-se com a denúncia feita pelo Ministério Público, acostada na Vara da Violência Doméstica contra a Mulher (nas comarcas que já criaram essa estrutura) acompanhada do inquérito policial e alguma outra informação que julgar relevante.

Frente ao desenvolvimento processual nos Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, é importante explicar que o rito de quase todos os processos é o rito comum, muito semelhante aos que correm nos juizados criminais. Logo, o desenrolar do processado a partir da denúncia é razoavelmente previsível para os olhos que já são familiarizados com o rito criminal. Desta maneira, entendeu-se que é mais producente pontuar as práticas que são exclusivas desse juízo trazidas pela Lei Maria da Penha.

Há algumas situações cujo andamento processual não é regido pelo rito comum, como nos casos de crimes contra a vida, que segue o rito do Tribunal do Júri. Todavia, até o momento da pronúncia, o processo corre, sim, na Vara da Violência Doméstica.

Antes de passar para a próxima etapa do trabalho, é de suma importância fazer nova menção do que é considerada a grande e efetiva mudança no sistema processual e que trouxe alguma efetividade na busca pela proteção da vítima de violência doméstica e familiar, que é a medida protetiva. Esta e todas as suas minúcias formam o capítulo II da Lei Maria da Penha, que trazem as especificidades das diferentes modalidades de medidas protetivas, que foram explanadas anteriormente neste trabalho.

Feita toda essa análise da parte processual que abarca os processos que envolvem casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, parte-se para uma nova etapa do trabalho, na qual será analisada a parte de psicologia jurídica envolta nesses processos.

3 Psicologia Jurídica

Sob essa perspectiva, adentra-se ao segundo momento do trabalho, que é pela ótica da Psicologia Jurídica e da atuação da equipe multidisciplinar (em especial os psicólogos) nas mais diversas facetas que se apresentam em processos que envolvem violência doméstica e familiar perpetradas contra mulheres.

Tendo isto em vista, a equipe multidisciplinar depara-se com um duplo trabalho: em determinados casos, precisa ajudar as vítimas a transpor barreiras relacionadas ao fato, objetivando a compreensão do trauma e consequentemente o trabalho para superá-lo. Em outros casos, faz-se necessária para produzir laudos psicológicos que funcionam como prova pericial, extraindo informações de forma fidedigna das vítimas, principalmente quando estamos tratando daqueles que são juridicamente considerados vulneráveis, ainda sendo possível que façam ambas as atuações simultaneamente.

Considerando que a vítima é diretamente envolvida no fato, infere-se que seu relato é de importância indubitável, fazendo com que este depoimento se torne imprescindível ao processo que busque a elucidação verossímil dos fatos. Porém, há de se considerar que, na área da violência doméstica e familiar, os fatos que suscitam os processos são bastante traumatizantes e difíceis para serem extraídos das vítimas sem a devida técnica profissional. Além disso, são situações que não só tangenciam, como atravessam uma zona de sentimentos que pode comprometer a imparcialidade de tal depoimento. Partindo deste pressuposto, suscita a urgência de envolver equipes de apoio especializadas em fazer tais destrinches a fim de trazer informações concretas e passíveis de ainda mais confiabilidade para que subsidiem uma decisão judicial.

Observando que, a cada dia, conseguimos compreender mais e melhor a complexidade que se dá dentro da mente das pessoas, bem como o conhecimento dos efeitos secundários que podem ser trazidos de uma situação de violência, a psicologia mostra-se cada vez mais essencial quando lidamos com esses processos. Essa visão é tão perceptível que não só os profissionais da saúde, mas o próprio legislador, notou essa necessidade.

Para fazer tal análise, primeiramente, será preciso uma breve retrospectiva histórica do momento no qual foi percebida a urgência de termos a atuação dos psicólogos nas diferentes esferas das instituições.

3.1 Histórico

Partindo da premissa que a Psicologia é uma ciência razoavelmente nova quando colocada em frente à tantas outras e que, a cada dia que passa, percebemos descobertas interessantes e impressionantes nessa área, é evidente que quando essas descobertas são benéficas para outras áreas do conhecimento elas devem, naturalmente, compor uma sintonia entre si e fazerem com que se alcance um melhor resultado.

Vendo dessa maneira, diferentes pensadores do ramo da Psicologia começaram a debater variadas possibilidades de inseri-la nos pilares mais intrínsecos da nossa sociedade e a maneira de fazer com que esse impacto trouxesse uma saída positiva para toda a comunidade. Nesse sentido, GUIRADO (1987, pg. 2) demonstrava a mesma preocupação, falando:

“[...] a necessidade de a Psicologia se inserir na realidade social por meio do estudo de grupos, de instituições e das comunidades, uma vez que [...] a dimensão psicológica está presente onde quer que o ser humano intervenha.”

Depois de discussões doutrinárias e dos divergentes pontos de vista quanto à forma de implementação da Psicologia, de uma vez por todas, na compreensão e posterior resolução dos complexos entraves existentes na sociedade, determinou-se uma lógica que ficou conhecida como Psicologia Institucional, que é a psicologia abordando diretamente as instituições e balizando o andamento da sociedade como um todo por meios sociológicos e políticos.

Explicando melhor o conceito de Psicologia Institucional, MORATO (2009, pg. 9) discorre que “a psicologia institucional é formada por diversas escolas que se interessam pela análise das instituições e organizações. Seu surgimento teve forte influência da psicanálise, num esforço de articulação política, e da análise institucional francesa, com referencial sociológico e político”.

Ainda sobre a problematização feita pela Psicologia Institucional, MORATO (2009, pg. 11) fala:

“[...] a vida social, entendida como processo permanente de transformação e que deve buscar seu aperfeiçoamento, deve estar regulada por instituições e organizações que se mantenham flexíveis a este campo de forças e entre instituído e o instituinte. Do contrário, o engessamento desse campo

dinâmico favorecerá o estabelecimento de deformações sociais, como os processos de exploração, de dominação e de mistificação.”.

Assim, percebe-se que a lógica da Psicologia Institucional é flexibilizar os processos rígidos de mudança, fazendo com que as diferentes áreas de conhecimento convirjam em um mesmo sentido e que o produto desse caminho seja benéfico para a sociedade como um todo. Ainda nesse contexto, GUIRADO (1987, pg.6) também coloca “a Psicologia Institucional como uma forma de intervenção psicológica com significação social”.

Nessa mesma linha, há uma explanação que mostra como o uso dessa dominação social pode refletir negativamente, quando BAREMBLITT (1996, pg. 34) discorre:

“[...] exploração de uns pelos outros (expropriação da potência e do resultado produtivo de uns por parte de outros), dominação, ou seja, imposição da vontade de uns sobre os outros e não-respeito à vontade coletiva, compartilhada, de consenso, e mistificação, ou seja, uma administração arbitrária ou deformada do que se considera saber a verdade histórica, que é substituída por diversas formas de mentira, engano, ilusão, sonegação de informações etc.”

Alguns autores, dentre eles Baremblitt, asseveram que a maneira de estarmos em constante acompanhamento da dinamicidade da sociedade é por meio de processos de autoanálise e processos de autogestão. Explicando esse conceito, traz-se a passagem de MORATO (2009, pg. 13):

“Entendemos por autoanálise que as próprias comunidades produzem um saber sobre suas necessidades, suas condições de vida, recursos e assim por diante, e, consequentemente, auto-organizam-se para que possam transformar suas condições e suprir suas necessidades. Autoanálise e autogestão são processos simultâneos.”

Como resultado dos processos de autoanálise e autogestão, ainda, MORATO (2009, pg. 13) continua:

“Inevitavelmente, a orientação da psicologia institucional traz como problemática central a crítica ao pensamento científico como hegemônico e defende o diálogo dos diferentes saberes, incluindo o saber popular, artístico, entre outros, e, além disso, indica a necessidade de que os [...] especialistas das diversas áreas [...] estabeleçam uma posição horizontal que favoreça a riqueza de tal diálogo.”

Entrando nessa questão, urge pontuar que esse é um movimento altamente necessário no mundo do Judiciário, uma vez que os aplicadores do direito, regra geral, tendem a supervalorizar o conhecimento jurídico em detrimento das outras áreas de estudo, como a

psicologia, ciências sociais, e tantas outras áreas que participam do Judiciário e são costumeiramente deixadas de lado.

Além disso, é imprescindível pontuar que a autonomia do profissional da Psicologia dentro da instituição é essencial para quebra de qualquer ciclo vicioso dentro da mesma, sendo condição básica para o sucesso da prática. Nesse contexto, GUIRADO (pg. 1987, pg. 8) afirma:

“[...] a autonomia técnica tem a ver, por certo, com a condição de um comprometimento diferente do psicólogo com o imaginário de instituição, ou melhor, com os processos inconscientes das relações interpessoais e grupais no conjunto das práticas institucionais.”

Como exemplo dessa autonomia técnica, traz-se, a título exemplificativo, uma situação na qual um magistrado, tendo uma visão de mundo mais punitivista, não poderia incitar o psicólogo a produzir um laudo que favorecesse o seu posicionamento, mas sim incentivar a independência do psicólogo para produção de um estudo fidedigno, independentemente do posicionamento do ambiente institucionalizado onde está.

Observa-se que nessa ótica, fica evidente que a adoção lógica da Psicologia Institucional é não só recomendável, mas indispensável para que haja mudanças significativas, ainda mais quando se tratando de situações em que há violência no âmbito doméstico e familiar.

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