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3.2 Atuação da Equipe Multidisciplinar

3.2.2 Escuta das vítimas

3.2.2.1 Vítimas consideradas vulneráveis

Levando em consideração tudo o que foi exposto acima, já restou demonstrada a dificuldade de extrair informações das vítimas e testemunhas dos casos de violência doméstica e familiar em decorrência da situação ultrajante que ensejou o processo, do trauma que a acompanha, e do obstáculo para acessar essas memórias de maneira fidedigna para o processo. Nesse momento, insere-se uma outra variável (e altamente complexa) que é quando essas vítimas e testemunhas são crianças e adolescentes, que ainda não tem o completo desenvolvimento mental e a cognição elaborada para compreender a magnitude tanto dos fatos imputados, quanto do peso do seu relato.

Como exposto, a Psicologia demonstrou-se extremamente capaz de fazer a extração da informação e sua tradução para o universo jurídico, o que se faz mais indispensável ainda

na relação com crianças e adolescentes, uma vez que a Psicologia sabe as diferentes etapas de desenvolvimento do cérebro, as linguagens de cada uma dela e as simbologias por trás de cada ação.

É vital perceber que a metodologia utilizada normalmente nos processos criminais por parte de promotores, advogados e juízes criam uma atmosfera altamente hostil para um infante, que não consegue assimilar a complexidade da questão abordada. Por isso, é urgente o uso do depoimento especial no formato disposto pela entrevista investigativa.

Importa colocar que, normalmente, os casos em que envolvem o depoimento de vítimas ou testemunhas vulneráveis são, em sua maioria, os que há ocorrência de violência sexual, compreendido no art. 217-A do Código Penal; por isso, a importância do relato da criança e da maneira com que esse relato é extraído.

Em relação as técnicas usadas no depoimento especial com crianças e adolescentes, válido salientar que segue os mesmos passos expostos acima no depoimento especial com vítimas e testemunhas adultas. Ademais, ainda tem algumas outras possibilidades de extrair a informação de maneira condizente com os vocábulos e atividades inerentes a idade do infante, como desenhos e brinquedos.

Dissertando um pouco sobre o depoimento especial aplicado em crianças, MARIA (2018, pg. 13) explica:

“A criança, durante o Depoimento Especial, possui liberdade para expor da forma como escolher. O seu tempo, subjetividade, momento de vida, são todos aspectos importantes e levados em consideração no curso do Depoimento Especial. Desse modo, a criança pode se expressar através de diversos modos, como por meio do choro, do silêncio, ou da brincadeira. Do mesmo modo, a criança em nenhum momento é estimulada a brincar, já que como o Depoimento Especial busca obter informações fidedignas a partir das lembranças da criança, utiliza recursos que não envolvem atividades lúdicas.”

É importante citar que as atividades lúdicas não foram comprovadas cientificamente como metodologias confiáveis para obter informações fidedignas; assim, não podem ser, sozinhas, usadas como base. Entretanto, podem ser levadas em consideração quando colocados em consonância com outros aspectos do depoimento especial.

Ainda, expõe-se que não há obrigatoriedade nenhuma da criança ou do adolescente de participar do depoimento especial. O depoimento especial se apresenta como um espaço qualificado e estruturado para ouvir os que consentirem em participar desse momento, mas podem se recusar a participar. Além disso, podem também, uma vez participando do

depoimento especial, permanecer em silêncio ou até mesmo encerrar a entrevista. Explicando isso, MARIA (2018, pg. 15) assevera:

“A criança, ou o adolescente, em nenhum momento são forçados a falar, sendo que todas as pausas existentes durante a entrevista são respeitadas. Do mesmo modo, caso a criança ou o adolescente manifestem desejo de se retirarem da sala de entrevista, há total respeito em relação a esse pedido, quando a entrevista é encerrada.”

Dessa maneira, percebe-se que a dignidade do infante, bem como sua vontade, é sempre respeitada por esse procedimento, tendo em vista que a finalidade não é unicamente uma produção qualificada de prova, mas sim a humanização dentro do processo.

Além de todos os benefícios já expostos acima na adoção dessa metodologia na escuta das vítimas consideradas vulneráveis, mostra-se de bom tom, também, citar algumas problemáticas envolvidas na não-adoção desse procedimento e da escolha pelo caminho tradicional dos processos penais.

Em sua esmagadora maioria, os profissionais do direito não estão preparados para lidar habilmente com situações que envolvem de forma tão profunda o psicológico das vítimas e dos envolvidos, até porque o ensino formal do Direito não oferece essas ferramentas. É por isso que exige humildade por parte dos mesmo em perceber essa limitação e entender que o melhor caminho para um processo mais humanizado e menos danoso é justamente trazendo para perto a equipe multidisciplinar, que tem o conhecimento necessário para tal.

Existem diferentes facetas nas etapas de formação do processo cognitivo das crianças, cada uma com suas especificidades e possibilidades de causar depoimentos com falhas e erros em decorrência da falta de conhecimento do operador do direito com essas particularidades.

Dentre essas questões passíveis de erro, reproduz-se, à título exemplificativo, um trecho de MARIA (2018, pg. 5) sobre o tema:

“[...] há toda uma preocupação com a forma como as perguntas são formuladas, no sentido dessas perguntas não sugestionarem a vítima ou a testemunha a determinada resposta. Desse modo, por exemplo, se durante o relato livre a criança afirmou que o pai passou a mão nela, o entrevistador, na etapa de esclarecimento do relato livre, não perguntará se o pai passou a mão na bunda dessa criança, já que isso poderá induzi-la a responder afirmativamente, sem que o pai realmente tenha feito tal coisa. Então, o respeito pela criança [...] contempla não apenas questões éticas, como

também questões de ordem técnica, já que pesquisas científicas demonstraram nitidamente, que as crianças, principalmente as pré-escolares, são mais sugestionáveis e tendem a buscar agradar o entrevistador com respostas que consideram satisfaze-lo mais.”

Apreciando esse excerto trazido, percebe-se que o desconhecimento das etapas de desenvolvimento psicológico da criança pode ensejar não só uma instrução contaminada, como também uma condenação errônea e, possivelmente, uma revitimização na possibilidade de uma audiência com quesitos elaborados de forma não condizente com a idade da criança.

Outro aspecto que merece atenção é a maneira que os operadores do direito irão abordar tal tema quando executando a oitiva de uma criança. Perguntas mal elaboradas resultarão em uma audiência inconclusiva e passível de criar outra situação traumática.

Ao observar situações dessa natureza em tempos passados, percebe-se o nível de dificuldade e constrangimento que permeiam os casos, mormente quando o profissional do direito não está familiarizado com a situação ou mesmo quando não é bem instruído para isso. Mais uma vez, é notória a necessidade de um profissional especializado nesse tipo de situação para que haja um diálogo mais claro e menos danoso para o infante.

Sobre o tema, houve recentíssimo posicionamento do CNJ, que regulamentou a criação de espaços especiais para os depoimentos de crianças e adolescentes. Essa resolução busca garantir condições para que os menores de idade sejam ouvidos por profissionais especializados e em contextos e locais apropriados. Ainda, é importante expor que será obrigatória a implantação de salas de depoimento especial em todas as comarcas, assim como a devida capacitação dos magistrados e dos próprios servidores do Judiciário. O CNJ expôs os objetivos em adotar essa resolução, que são evitar a revitimização e a violência institucional, ocasionado por profissionais despreparados, muitas vezes de forma não intencional.

Dessa maneira, percebe-se que essa resolução vem completamente ao encontro de todos as premissas expostas nesse projeto. Isso demonstra que os motivadores do projeto, bem como as questões explicitadas e suas justificativas estão alinhados com o norte estimulado pelo Poder Judiciário.

É muito estimulante para quem tem o olhar atento para esse lado psicossociológico conseguir perceber que o futuro próximo do Direito já reserva um lugar privilegiado para a valorização da interdisciplinaridade e do uso de ciências diversas em benefício não só do Judiciário, mas principalmente das pessoas que fazem parte dos polos das ações judiciais.

Todas essas questões psicológicas e sociológicas trazidas nesse capítulo são extremamente importantes para compreender melhor a complexidade que permeia os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, possibilitando um entendimento mais humanizado dos casos e menos tecnicista. Isto posto, passa-se para o último capítulo de desenvolvimento do trabalho, que consiste no estudo de casos.

4 Estudo de Caso

Partindo ao terceiro momento do trabalho, adentra-se ao estudo de casos que tramitam na Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca da Capital, momento no qual se fará um paralelo entre as situações de violência, a atuação da equipe multidisciplinar e os procedimentos processuais, havendo casos de diferentes tipos penais.

O propósito para tal é demonstrar a correlação, na prática, dos dois aspectos trazidos anteriormente, seja o rigor procedimental exigido pelo processo penal, seja a humanização dos processos, fato que a psicologia já constatou ser a mais correta postura por inúmeras vezes.

Sobre os processos que serão analisados, importa ressaltar que todos os processos que correm na Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher estão protegidos pelo segredo de justiça. Desta forma, não será possível nenhum tipo de identificação das partes, integrando somente os fatos e os desentraves decorrentes desses, dando um foco especial para a atuação da equipe multidisciplinar nos casos que exigem mais ainda a sua intervenção, bem como pontuar alguns fatores sociológicos.

Antes de iniciar com o estudo de caso, deve-se fazer um adendo ao fato de que, ao analisar os processos da Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca da Capital, depara-se com uma comarca que é um dos melhores exemplos de atuação dentro dessa área. Os casos presentes neste trabalho mostram processos de uma Vara que efetivamente valoriza a participação das equipes de apoio, tendo situações nas quais a instrução processual é extremamente robusta nessas questões que não lidam unicamente com o direito material, mas com questões psicossociológicas.

Desta maneira, demonstrar-se-á justamente um norte na atuação dentro do universo da violência doméstica e familiar contra a mulher. Entretanto, é imprescindível esclarecer que a maneira com a qual a Vara desta comarca trata os processos representa uma minoria dentro das diferentes realidades que compreendem a complexidade do nosso país.

Tendo dito isto, é possível iniciar o estudo dos casos concretos que compõe o universo de processos que, infelizmente, correm aos montes nas Varas de violência doméstica e familiar Brasil afora.

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