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Morabeza e boa convivência

A história sociocultural do arquipélago de Cabo Verde evidencia traços culturais diferenciados relativamente aos países da África Lusófona. As características geográficas determinaram, logo após o início do povoamento do arquipélago, um modelo de organização social que resultou da diversidade cultural, biológica, étnica, linguística e religiosa dos seus

habitantes, que acabaram por moldar, através de um processo de miscigenação, “o homem

cabo-verdiano”. Este modelo deu origem a um traço cultural de “cordialidade” e, ao mesmo

tempo de resistência, que se encontra ainda presente nestas ilhas. Cabo Verde é tido como um caso particular devido às dificuldades relacionadas com a referida falta de recursos, fraca pluviosidade e aridez do solo, entre outros factores, o que acabou por obrigar à solidariedade entre os habitantes na tentativa de sobreviverem. Desse modo, nasce aqui a consciência de um

povo, composto de pessoas que estão condenadas a viver de uma determinada maneira.225

Francisco Lopes realça que “as próprias condições da economia de Cabo Verde favorecem e

originam uma consciência colectiva tendente a procurar na intelectualidade, na supremacia do espírito, o único meio de superar as condições deficitárias de vida.”226

Pela sua particularidade histórica, os cabo-verdianos distinguem-se pela harmonia, hospitalidade, boa convivência e cordialidade que expressam no seu comportamento. A morabeza é o termo conhecido no vocabulário crioulo para descrever a capacidade que o cabo-verdiano possui em acolher com cordialidade, o que é culturalmente singular. João Lopes Filho considera que a cultura cabo-verdiana é sui-generis, ou seja, possui um conjunto

de valores que a singulariza.227

223 GABRIEL MARIANO, Do funco ao sobrado ou o “mundo” que o mulato criou, in Colóquios Cabo-verdianos,

Nº 22, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1959, p. 40.

224 Idem, p. 40.

225 Entrevista a Amílcar Spencer Lopes (ver Relação das Entrevistas em anexo).

226 FRANCISCO LOPES, A importância dos calores espirituais no panorama cabo-verdiano, in Colóquios Cabo-

verdianos, Nº 22, Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar, 1959, p. 137.

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Benjamin Nunẽz considera a morabeza como sendo uma característica da cultura afro-

portuguesa de Cabo Verde.228 A morabeza, tipicamente cabo-verdiana, demarca-se

essencialmente pela espiritualidade cordial dos seus habitantes e pela forma sui generis de confraternização social. A “morabeza”, que nos é peculiar, reflecte-se no modo de ser e de estar do cabo-verdiano em qualquer parte do mundo. O que o engrandece é: [1] o trabalho, [2] a honestidade e [3] o amor à terra. Isto constitui, nas palavras do artista plástico Lú de Pala “apenas o preâmbulo do cabo-verdiano em si.”229

Numa sociedade, é tarefa árdua combater as diferenças e os conflitos, mas é precisamente por os antagonismos não se combaterem, que é com profunda harmonia que todos os cabo-

verdianos “confraternizam e se submetem aos mecanismos de dar-e-tomar.”230 Para o

antropólogo cabo-verdiano José Gomes dos Anjos, o que caracteriza particularmente o processo de miscigenação em Cabo Verde é a cordialidade, que se traduz na morabeza dos

homens das ilhas, sendo esta “entendida como predisposição para a familiarização das

relações sociais, portanto em contraposição a exteriorização dos conflitos.”231 Por outro

lado, Leão Jesus de Pina, sociólogo cabo-verdiano, considera que a “mestiçagem, numa

sociedade moldada pelo mulato, seria, deste modo, ao invés da plasticidade lusa, o principal factor explicativo da cordialidade crioula. Parece ter havido um encadeamento causal entre a mestiçagem biológica e cultural e o carácter cordial ilhéu.”232

A forma como se relaciona com os seus semelhantes, acaba por distinguir o cabo- verdiano entre os demais povos africanos. Muito se deve às raízes históricas e culturais do seu

povoamento. Gabriel Mariano entende a morabeza cabo-verdiana como sendo: “a capacidade

de adesão sentimental a problemas e situações alheias e de sintonização afectiva com o seu semelhante (…) ‘algo que’ leva a um convívio familiar com as pessoas e até com as coisas: que lhe solicita uma ânsia irreprimível de diálogo.”233

Para Lívio Sansone, antropólogo italiano e professor na Universidade Federal da Bahia, a

mestiçagem “além de fenômeno biológico, pode também ser considerada um estilo de vida e

228 Cfr. BENJAMIN NUNẼZ, Dictionary of Portuguese-African Civilization, (Vol. 1), London, Hans Zell

Publishers, 1995, Verbete Morabeza.

229 Entrevista a Rodrigo Correia Fernandes (ver Relação das Entrevistas em anexo).

230 BALTAZAR LOPES DA SILVA, Uma Experiência Românica nos Trópicos (I), in Claridade: Revista de Arte e

Letras, Nº 4, São Vicente, Janeiro 1947, pp. 9-10.

231JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS, Cabo Verde e a importação do ideologema brasileiro, in Horizontes

Antropológicos, Porto Alegre, Ano 6, Nº 14, Novembro 2000, p. 201.

232LEÃO JESUS DE PINA, Morabeza e Cultura Política de Matriz Ibérica: Entre Críticas e Apologias, in Revista

de Estudos Cabo-Verdianos, Nº1, Praia, Uni-CV, Dezembro 2007, p. 46.

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uma maneira de pensar o mundo, envolvendo cordialidade.”234 Nesta perspectiva, o homem

cabo-verdiano adquiriu ao longo do tempo, uma atitude de afeição, aceitação, admiração, em suma, de hospitalidade e familiaridade para com o próximo, o que possibilitou um maior vínculo à terra das suas origens, sentindo saudades dela quando emigra, principalmente do convívio e do calor humano dos seus familiares e amigos.

Carmem Secco, brasileira, especialista em literaturas africanas, considera que a

morabeza, amorabilidade ou amorosidade atribuída aos caboverdianos é, ”atualmente,

entendida como fator de resistência do ilhéu que imprimiu seu ritmo dolente ao idioma do colonizador, inoculando-o com traços da sua musicalidade mestiça, resultado do entrecruzamento das culturas que permearam a formação do povo de Cabo Verde.”235

Efectivamente, perante a realidade geográfica, o homem cabo-verdiano soube, por intermédio de estratégias bem definidas, sobreviver perante algumas dificuldades presenciadas no arquipélago, como é o caso das fomes e das secas, e uma das armas fundamentais para as ultrapassar foi a morabeza dos seus conterrâneos. Esta é algo muito peculiar considerada como uma das características inerentes ao povo de todas as ilhas e que se observa sobretudo em tempos da chuva. Quando esta ocorre, os homens de todas as ilhas são geralmente mais

generosos e acolhedores.236

O homem cabo-verdiano procurou, no período da sua formação, ser hospitaleiro. Estas características foram conservadas, cultivadas e arreigadas passando de geração em geração. O carácter singular e cordial dos “homens das ilhas” fez com que o filólogo, poeta e ficcionista cabo-verdiano Baltazar Lopes considerasse que no arquipélago as classes sociais não

constituíssem “categorias fechadas e estanques e o mesmo indivíduo pode conhecer durante

a sua vida diversos escalões de consideração social, independentemente das circunstâncias do seu nascimento ou da cor da sua pele, tudo consoante o seu comportamento perante as perspectivas de acesso social.”237 A perspectiva de autor refere-se ao carácter solidário dos

cabo-verdianos, da sua responsabilidade social, sobretudo no que se refere à relação entre os indivíduos das diferentes camadas sociais.

No romance Hora di Bai, o escritor Manuel Ferreira debruça-se sobre aquilo que reflecte bem o espírito cordial do cabo-verdiano e a saudade profunda que sente ao deixar a sua terra,

234 LÍVIO SANSONE, As relações raciais em Casa-Grande e Senzala revisitadas à luz do processo de

internacionalização e globalização, in MARCOS CHOR MAIO & RICARDO VENTURA SANTOS (ORGS.), Raça,

Ciência e Sociedade, Rio de Janeiro, Fiocruz/CCBB, 1996, p. 214.

235CARMEM LUCIA TINDÓ RIBEIRO SECCO, (COORD.), Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa

do século XX: Cabo Verde, Rio de Janeiro, Faculdade das Letras, 1999, p. 11.

236 Entrevista a Oswaldo Osório (ver Relação das Entrevistas em anexo)

64 emigrando à procura de uma vida melhor. Esse homem carrega no peito a saudade da sua terra natal e dos convívios sociais. Relata o autor, citando a personagem Nha Venância, uma mulher viajada, que já esteve em Portugal, na cidade de Lisboa, e que, não obstante reconheça as oportunidades ímpares que aí se encontram, não a trocaria com o Mindelo, porque para Nha Venância, Mindelo é a cidade onde “o encanto dos dias estava em conversar com pessoas amigas; porque a vida sem amizades, sem convivência, para que prestava? Só o convívio, as reuniões, as conversinhas demoradas ajudavam a encher os dias longos.”238

Assim sendo, para Manuel Ferreira, Nha Venância “sempre foi mulher de relações, de visitas,

de encontros à tardinha nos bancos da praça nova. Esse estilo de vida, com tal Morabeza, só na sua própria terra seria possível.”239

A nação cabo-verdiana, apesar das dificuldades da vida, soube cultivar a cordialidade, a compreensão e o respeito. A morabeza, de certa forma, é um traço do cabo-verdiano, que vem sendo, por vezes, utilizado no sentido de divulgar Cabo Verde, constituindo igualmente um atractivo para aqueles que queiram visitar ou residir no arquipélago. Além disso, é hoje uma marca essencial a que se assiste nas diversas campanhas publicitárias e esforços promocionais de turismo em Cabo Verde.

A morabeza é actualmente representada e interpretada através das músicas danças e poesias, principalmente a morna, que, na sua génese, destacou um conjunto de características singulares dos homens das ilhas, como o sonho de uma vida melhor, a coragem para enfrentar as rudes situações da vida e, acima de tudo, a vitória sobre algumas adversidades no

arquipélago.240 Ovídio Martins, escritor e jornalista cabo-verdiano, de forma poética, refere-se

à grandiosidade dos cabo-verdianos, num arquipélago árido e insular, onde a força de vontade, assente na morabeza, lhes possibilitou vencer e enfrentar as dificuldades, e sonhar com uma vida melhor nas ilhas. Assim para o autor, na obra Gritarei Berrarei Matarei Não Vou Para Pasárgada“chamamos uma vez a Cabo Verde, estrela salgada de dez braços, e em cada braço uma esperança. Se pusermos hoje em cada esperança mil certezas, ficaremos com uma ideia clara do espírito com que se enfrentam as dificuldades nesta pátria do meio do mar. Devagar, a reconstrução nacional avança. Dor a dor. Amor a amor.”241

Os momentos interpretados pelas mornas representam o auge da solidariedade e interdependência entre os cabo-verdianos, e culminem com o reforço do laço de

238MANUEL FERREIRA, Hora di Bai, Lisboa, Plátano, 1972, pp. 57-58. 239 Idem, p. 58.

240 Cfr. BENILDE JUSTO CANIATO, Percursos pela África e por Macau, Cotia, Ateliê, 2005, pp. 71-76.

241 OVÍDIO MARTINS, Gritarei Berrarei Matarei Não Vou Para Pasárgada, (2ª Ed.), Mindelo, Instituto de

65 relacionamento, tendo como base a ideia da morabeza. Neste sentido, para Gabriel Mariano a “familiaridade que se depreende do comportamento social do cabo-verdiano; a sua Morabeza; o seu feitio hospitaleiro, de uma hospitalidade amorosa, integral, sem reservas; a sua franqueza, a sua liberalidade ingénua, a sua fraca noção de centavo.”242

Manuel Ferreira, no romance Hora de Bai faz referência à história de uma possível traição entre um forasteiro (tropa), de nome Alferes, e Beatriz, mulher de Juca Florêncio. O cerne desta história combina um romance secreto (entre Alferes e Beatriz) e a dúvida do Juca Florêncio, sobre a possível traição da esposa, pelo facto de ela receber com frequência o forasteiro em sua casa. Entretanto, Juca Florêncio, se bem que ainda com algumas dúvidas, considera serem normais as visitas do forasteiro à sua esposa, pelo facto de os cabo-verdianos com tanta naturalidade, serem hospitaleiros e de muita morabeza. Juca Florêncio entende

estas visitas como “a coisa mais natural deste mundo, valha-nos Deus. Cabo-Verdiano gosta

de receber e está sempre de mãos abertas para acolher os seus amigos. A coisa mais natural a visita da tropa, lá isso era.”243

Leão Jesus de Pina considera que a morabeza é “uma espécie de cordialidade crioula,

que pressupõe, socioculturalmente falando, uma marcante disposição psicológica democrática na cultura nacional.” 244 A morabeza do povo cabo-verdiano permitiu-lhes que,

perante diferenças e similaridades entre as ilhas, cultivassem um espírito cordial e de amabilidade para com o outro. Esta característica é apontada como um dos factores de estabilidade e de consolidação da democracia neste país e, consequentemente, uma das marcas mais expressivas da cultura cabo-verdiana.

242GABRIEL MARIANO, Cultura caboverdiana: Ensaios, op. cit., pp. 76-77. 243MANUEL FERREIRA, Hora di Bai, op. cit., pp. 109-116.

244LEÃO JESUS DE PINA, Cabo Verde: expressões ibéricas de cultura política, morabeza e cordialidade, in

Confluenze: Revista de Studi Iberoamericani, (Vol. 3), Nº 2, Università di Bologna, Dipartimento di Lingue e Letterature Straniere Moderne, 2011, pp. 238-239.

66 Capítulo 3 – Dinâmica de Miscigenação Cultural