5.4. A Geração Nacionalista
5.4.2. O exemplo de Amílcar Cabral
A década de cinquenta marca uma nova era na formação da identidade nacional, com referência ao resgate das origens africanas. Estes ideais foram enunciados por um grupo de intelectuais, pertencentes à geração de Cabral ou geração da consciência nacionalista, tendo como objectivo difundir a cultura e a tradição africana através do processo de reafricanização dos espíritos. A dimensão estruturante da identidade nesta altura relaciona-se com a consciência nacionalista, que se verificou antes da independência, e constitui-se como um
“lugar-comum” num elemento agregador, de maior coesão e consciência nacional.636
634 LEILA LEITE HERNANDEZ, Os filhos da Terra do Sol: A formação do Estado-nação em Cabo Verde, São
Paulo, Sammus, 2002, p. 145.
635 MANUEL BRITO-SEMEDO, A Construção da Identidade Nacional: Análise da Imprensa entre 1877 e 1975, op.
cit., p. 340.
159 Os intelectuais da geração de Amílcar Cabral eram, inicialmente, oriundos de algumas colónias portuguesas, tais como Angola e Moçambique. Lutavam por um fim comum, que consistia em resgatar as origens ainda no antigo Império Português, seguindo estruturas cognitivas próprias, ancorados na ideologia nacionalista. Segundo José Carlos Venâncio, é
neste grupo que Amílcar Cabral se destaca e é “igualmente apontado como um dos líderes
mais carismáticos e, em termos teóricos, mais influentes do nacionalismo africano.”637 Para o
historiador Alexis Wick “na memória colectiva dos seus compatriotas, Amílcar Cabral é
conhecido como pai da nacionalidade guineense e cabo-verdiana.”638 Amílcar Cabral,
doutrinado pelo socialismo marxista, é considerado por Adriano Moreira, como aquele que se
destacou no espaço português, com vigor e personalidade. “Separou-se perfeitamente do
marxismo, como metodologia e teoria, do leninismo, que é uma doutrina para a acção e para a implantação do sovietismo. Foi o único que procurou regionalizar o marxismo, construindo um pensamento a partir da realidade africana.”639
Cabral patenteou bem o seu espírito revolucionário e a sua forte ligação aos movimentos nacionalistas, através desta sua declaração: “jurei a mim mesmo que tenho que dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter como Homem, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo na Guiné e Cabo Verde. Ao serviço da causa da humanidade, para dar a minha contribuição na medida do possível, para a vida do homem se tornar melhor no mundo. Este é o meu trabalho.”640 Constituídos em
Portugal continental, faziam parte do grupo, além de Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade (Angola), Agostinho Neto (Angola), Humberto Machado (Angola), Noémia de Sousa (Moçambique), Alda Espírito Santo (São Tomé e Príncipe) e Francisco José Tenreiro (São Tomé e Príncipe). Assim, começa a história desta geração de pensadores nacionalistas africanos, que se espalha por todas as antigas colónias portuguesas em África.
No entanto, é entre estudantes e pensadores na metrópole que começa, de forma específica, a surgir uma elite cultural nacionalista cabo-verdiana, em que se integrava Aguinaldo Brito Fonseca, Gabriel Mariano Lopes da Silva, Ovídio de Sousa Martins, Manuel de Jesus Monteiro Duarte, Francisco Lopes da Silva, José Leitão da Graça, José Araújo e Onésimo Silveira, baptizados, segundo Manuel de Jesus Monteiro Duarte, como a Nova
637JOSÉ CARLOS VENÂNCIO, O Fato Africano: Elementos para uma Sociologia da África, Recife, Fundação
Joaquim Nabuco, Massangana, 2009, p. 97.
638ALEXIS WICK, A nação no pensamento de Amílcar Cabral, in CARLOS LOPES (ORG.), O Desafios
contemporâneos da Africa: O Legado de Amílcar Cabral, (1ª ed.), São Paulo, Unesp, 2012, p.71.
639 ADRIANO MOREIRA, O Novíssimo Príncipe: Análise da Revolução, Coimbra, Almedina, 2009, p. 69. 640 AMÍLCAR CABRAL, Sou um Simples Africano, Cabo Verde, Fundação Mário Soares, 2000, p. 13.
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Largada. Reivindicam a liberdade e a autodeterminação do povo africano, denunciam o sistema colonial e apelam para uma consciencialização da própria identidade.
Estrategicamente, o objectivo do grupo foi “fazer da criação literária um meio e uma forma
de denúncia global do sistema colonial, de consciencialização do homem africano (...) de reivindicação de identidade autêntica na liberdade e de plena autodeterminação.”641
A geração de Amílcar Cabral viria a esboçar, numa rede intensa de intelectuais, novas formas de pensar e novas preocupações com a identidade nacional, que antes se apelidava de consciência regionalista, segundo a qual Cabo Verde é uma região de Portugal como o Minho, Algarve, Madeira, Açores, etc., e partilha do mesmo universalismo português e das
mesmas similitudes. Para João Vasconcelos, a geração dos anos 50 é “filha da conjuntura
internacional do pós-guerra, esta geração encetou luta aberta contra o colonialismo português, sob as bandeiras da independência nacional e do socialismo.”642 Esta geração
marca uma ruptura com o propósito de contornar e se desfazer da pressão do colonialismo, começando pela crítica ao ensino colonial que Amílcar Cabral rejeita, referindo:
“Toda a educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre apresentado como um ser superior e o africano como um inferior. As crianças africanas adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem a temer o homem branco e a terem vergonha de serem africanos. A geografia, a história e a cultura de África não são mencionadas, ou são adulteradas, e a criança é obrigada a estudar a geografia e a história portuguesa.”643
Cabo Verde incluía-se no rol dos países africanos sob o domínio colonial e, nesse sentido, era necessário resgatar a sua origem e reafricanizar os seus espíritos. Para que isso
acontecesse, segundo Amílcar Cabral, tornava-se necessário ultrapassar “todas as
dificuldades, fugindo às tentações, libertando-se dos compromissos de alienação cultural (e, portanto, política)” e, efectivamente, Cabo Verde “soube reencontrar as suas próprias raízes, identificar-se com o seu povo.”644 O desejo que se queria satisfazer, foi o de atingir um
Estado livre, em que fossem cultivados os seus traços, sem a exploração do domínio colonial. Todo esse processo teve início quando um grupo de estudantes, possivelmente com alguns recursos económicos, se integra na metrópole, e daí começa a delinear uma nova forma de pensar e de modelar a identidade nacional, subscrita na contradição das gerações precedentes,
641 MANUEL DE JESUS MONTEIRO DUARTE, Caboverdianidade e Africanidade, e outros textos, Praia, Spleen,
1999, p. 51.
642 JOÃO VASCONCELOS, Espíritos lusófonos numa ilha crioula: língua, poder e identidade em São Vicente de
Cabo Verde, op. cit., p. 177.
643 AMÍLCAR CABRAL, Unidade e Luta: A Arma da Teoria, Lisboa, Seara Nova, 1978, p. 64. 644 Idem, p. 99.
161 isto é, a da consciência regionalista. Essa geração defendia a unificação da nação e o retorno à mãe África, bem como a liberdade de poder reagir à opressão do regime imperial, com luta, se assim fosse necessário.
O grupo de intelectuais da geração de consciência nacionalista teve a oportunidade de ir
para a metrópole estudar nas universidades645, pois, nessa altura, como nos relata Mário Pinto
de Andrade, os que terminavam o liceu viam-se forçados a ir para a metrópole, caso desejassem frequentar o ensino superior. Mas, mesmo assim, só frequentaria o ensino superior
quem tivesse meios financeiros.646 Onésimo Silveira salienta que “os jovens da nossa
geração pensam que Cabo Verde é um caso de regionalismo africano. Esta inversão dos termos do problema decorre do influxo do renascimento africano, que revitaliza todos os campos de actividade e todos os momentos de espiritualidade do homem negro ou negrificado.”647 Esta nova geração acabou por se afastar da ideia perpetrada pelos claridosos
na defesa de Cabo Verde como região autónoma de Portugal Continental. Mário Pinto de Andrade chama a atenção para o facto de que já era altura de incluir também a realidade da
cultura afro-negra na literatura nacional cabo-verdiana, e, desta forma, para o autor, “Cabo
Verde, por exemplo, cuja literatura se vem individualizando há alguns anos, talvez seja necessário e útil rever o processo da sua formação social e situar o lugar que cabe aos negros e consequentemente à cultura negro-africana no devenir crioulo.”648
Gabriel Mariano destaca a importância e valorização dos traços culturais africanos na
formação da sociedade e da cultura cabo-verdiana. Para o autor o “processo de formação
social do caboverdiano operou-se mais por uma africanização do europeu do que por uma europeização do africano.”649 É evidente a necessidade do retorno às origens, o que
pressupunha a tomada de uma consciência, a da ligação do arquipélago com o continente africano. Para a geração dos anos 50, essa era a condição sine qua non, para a construção da identidade nacional plena.
Amílcar Cabral reconhece que o importante nesse processo, é que o povo cabo-verdiano teve, efectivamente, consciência da sua condição, defendendo e conhecendo mormente a sua
645MANUEL DE JESUS MONTEIRO DUARTE, Breves notas sobre a literatura Cabo-verdiana, in Raízes, N˚ 21,
Praia, Julho 1984, pp. 3-8.
646MÁRIO PINTO DE ANDRADE, As Origens do Nacionalismo Africano: Continuidade e ruptura nos movimentos
unitários emergentes da luta contra a dominação colonial portuguesa 1911-1961, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, (s/p).
647 ONÉSIMO SILVEIRA, Consciencialização na literatura caboverdiana op. cit., p. 22.
648 MÁRIO PINTO DE ANDRADE, Cultura negro-africana e assimilação, in Antologia da poesia negra de
expressão portuguesa, Paris, Pierre Jean Oswald, 1958, p. XIII.
649 GABRIEL MARIANO, A mestiçagem: seu papel na sociedade caboverdiana, in Suplemento Cultural, de Cabo
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terra de origem. Para Cabral é “necessário e indispensável que o cabo-verdiano conheça a
sua terra, isto é, possua um mínimo de conhecimentos acerca das circunstâncias e dos problemas que condicionam a sua vida, a fim de que, conscientemente, possa dar o devido apoio em toda e qualquer medida tendente a melhorar a sua existência.”650 Para uma unidade
plena, em que triunfe o princípio da igualdade para todos os africanos, no caso particular, a unidade e igualdade entre os povos de Cabo Verde e Guiné-Bissau, como preconizava Amílcar Cabral, era necessária a resistência perante o império colonial português, o que
culminaria com o fim da acção colonizadora, defendendo que, “na nossa terra, para criarmos
um estado novo, diferente na base da justiça, do trabalho e da igualdade de oportunidade para todos os filhos da nossa terra, na Guiné e em Cabo Verde” e, portanto, “destruir tudo quanto seja obstáculo ao progresso.”651 Mediante esses e outros argumentos defendidos por
Cabral, viria o pressuposto central, que consistia em acreditar na capacidade intelectual, enquanto legítimo representante das aspirações dos povos africanos. Segundo Sérgio Gonçalo Duarte Neto “porém, em breve desenganado da possibilidade de reformar e inflectir o rumo da política colonial num sentido mais autonomista, Cabral abraçaria a acção directa.”652
Esta acção desembocaria na luta armada pela defesa e unidade de Guiné-Bissau e Cabo Verde, por intermédio do PAIGC.
A única solução, segundo Amílcar Cabral, para a salvaguarda desta unidade, seria a luta
armada, e isso constituiu o “último recurso” para responder às agressões por parte do
colonizador e alcançar a liberdade e independência nacional. Desta forma ele reconhece que o
recurso à violência foi “utilizada pelas forças de libertação nacional, para não só
responderem à violência do imperialismo mas também para garantirem, através da luta, a vitória final da sua causa, isto é, a verdadeira independência nacional.”653