• Nenhum resultado encontrado

3 A RELAÇÃO DO TOTALITARISMO COM A MORALIDADE

3.4 MORAL KANTIANA

Quando Arendt cita Kant sobre ao abordar essa questão, ela pretende reforçar o ponto de vista de que a filosofia, no aspecto moral, inicia um caminho separado da religião a partir

14 KANT, Immanuel, Critique of Pure Reason. Trad. Norman Kemp Smith (Nova York: St. Martin’s Press),

1965, A819, 644. [N.E]

15 Cf. ARENDT. 2008a, p. 128. “A tradução literal do inglês obedeceu literalmente a colocação do adjetivo antes

do substantivo, que torna a expressão um tanto pejorativa, mas o correto seria aplicar expressão “vida boa”. [...] O primeiro trata do cidadão, o último das instituições civis; o primeiro precede o último, porque “a boa vida” do cidadão é a raison d’être da polis, a instituição da cidade.”

da razão e do imperativo categórico, como veremos a seguir. Trazendo à tona o tema que influenciou Kant em relação ao comportamento humano sobre a conduta, que se centrava na afirmação do indivíduo em uma relação do categórico com os mandamentos divinos. A autora utiliza o conceito de Kant para reforçar a afirmação de que em relação à conduta o ser humano depende primeiramente do relacionamento consigo mesmo. Isso aponta para a antiga relação implícita da obrigatoriedade do imperativo categórico com a obediência aos mandamentos de Deus, reforçando valores religiosos que a autora descarta como um fator que seja preponderante na ação dos atos maus.

Em Kant como em toda a filosofia depois da Antiguidade, existe dificuldade adicional de como persuadir a vontade a aceitar o ditame da razão. Se deixarmos as contradições à parte e concentrarmos a atenção apenas no que Kant quis dizer, então ele evidentemente pensou na boa vontade, como a vontade que, ao escutar, “Farás”, vai responder: “Sim farei”. E para descrever essa relação entre duas faculdades humanas que claramente não são a mesma coisa e em que certamente uma não determina a outra de modo automático, ele introduziu a forma do imperativo categórico e sorrateiramente retomou o conceito de obediência (ARENDT, 2008a, p.136).

Arendt vai interpretar de maneira diferente o “imperativo categórico” de Kant, como uma lei a ser tomada de maneira universal, à medida que eu obedeço a mim mesmo, obedecendo à própria razão, e valendo para os seres que me rodeiam. Assim, não há contradição da própria pessoa, mesmo que a pessoa se torna o legislador do mundo ou indivíduos, como seres autônomos capazes de produzirem seus próprios valores. A autora (2008a, p.134) mostra que a interpretação de Kant estaria no plano da proposição, na qual “um ato moral é aquele que estabelece uma lei universalmente válida”. A questão está, então, em fazer uma conexão da razão com a vontade. Pois a razão um imperativo de uma ordem que é dada que coage a vontade ou, em outras palavras, determina a si mesma, ou seja, a vontade torna-se uma espécie de órgão executivo da razão. Mas essa vontade, que determina as ações, passa pela proposição moral. Na interpretação de Arendt, a moral propositiva, a qual aparece na forma de lei obrigatória, tem significado ambíguo, pois as leis morais, diferentemente das leis de Deus, da natureza ou das leis no sentido políticos, distanciam-se das leis da liberdade moral, que para Kant, não contém necessidade, mandamentos ou obediência. Sendo assim, há uma grande diferença entre as leis da moralidade, nesse sentido propositivo, e a legalidade no sentido de leis políticas ou religiosas, visto que a legalidade é moralmente neutra, pois não carrega a obrigatoriedade. Assim, a lei interna do ser humano

está acima das outras leis, nas quais o ser humano age de modo que a máxima de seu ato se torne uma lei universal.

Portanto, Kant, sabendo que a vontade pode dizer “não” à razão, entendeu como necessário impor uma obrigação. A razão categórica de Kant não consegue sobrepor-se a Deus - quando ele representa um vingador, no sentido de punição aos pecados - sobre a vontade e temor de si próprio indo, então, opor-se ao castigo divino, mas “lutando” com o seu próprio eu. Para a autora, a obrigação não é absolutamente evidente por si mesma, e nunca foi provada sem que se exceda o âmbito do discurso racional. Por trás do dever e do não dever fazer algo, está uma condição de castigo. Caso alguém haja de modo “inadequado”, está a ameaça por uma sanção imposta por Deus /vingador, pelo consentimento da comunidade ou pela consciência, que é ameaça de autopunição, que comumente chamamos de arrependimento. Mas Arendt vai sustentar que a voz interior predomina e nos diz que: “Aqueles que temem o desprezo por si próprio ou contradizem-se a si mesmo, são, mais uma vez, aqueles que vivem consigo mesmos e acham as proposições morais evidentes em si mesmas, não precisam da obrigação” (Arendt, 2008a, p.142).

Arendt afirma que “a noção antiga e ainda assim estranha de que posso amar a mim mesmo pressupõe que posso me inclinar para mim mesmo, assim como me inclino para fora de mim mesmo em direção aos outros, sejam objetos ou pessoas” (ARENDT, 2008a, p.145).. A autora interpreta que na linguagem de Kant, “inclinação” significa ser influenciado por coisas fora de si mesmo, coisas que a pessoa pode desejar ou com as quais talvez sinta uma afinidade natural, o que é incoerente com a liberdade humana. Se o ser humano é repelido ou atraído por algo, então já não é um agente livre. A inclinação, por natureza, é incoerente com a liberdade por ser atraída externamente por algo que não somos. Essa liberdade, então, estando vinculada à lei moral, que não tem necessidade nem obediência externa, também não tem essa inclinação. Essa lei ligada à vontade tem como pressuposto que não se pode ser livre e mau ao mesmo tempo. A maldade, então, vinculada a inclinação externa, é um absurdo moral (ARENDT, 2008a, p.145-146).

Na visão de Arendt, a partir de Kant, o agir moralmente toma outro rumo, e a conduta moral, antes de tudo, passa a depender do relacionamento do homem consigo mesmo, não se colocando em contradição com seus princípios a ponto de que o homem tenha que se desprezar. Para a autora, isso deveria bastar para que se evitasse o comportamento moral errado, citando que Kant coloca os deveres individuais à frente dos deveres para com os outros. Arendt, sobre a dignidade e orgulho humano afirma que é uma questão de humildade,

e isso não é uma preocupação com o outro, mas uma preocupação consigo mesmo, uma questão de respeito por si mesmo (ARENDT, 2008a, p.131).

Documentos relacionados