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CAPÍTULO 2 – O LUTO E OS ACONTECIMENTOS DE VIDA ENQUANTO

2.2 A morte no Ciclo de Vida

“Somente as pessoas capazes de amar profundamente podem também sofrer uma grande desilusão, mas esta mesma necessidade de amar serve para neutralizar o seu luto e curá- las”

Tolstoy

No Monólogo da Morte, Fernando Pessoa (1990) revela quanto pode ser angustiante e pavorosa a abordagem da morte: “Só uma cousa me apavora/ A esta hora, a toda a hora: / É que verei a morte frente a frente / inevitavelmente. Outra perspectiva curiosa é a de José Cardoso Pires que após convalescença, no seu livro De Profundis, Valsa Lenta (2000), compara a morte a algo de tons claros, ou seja, define-a como “morte branca”, equiparando-a a um glaciar.

Numa outra perspectiva, alguns filósofos, nomeadamente Epicuro (3 sec. A.C.) e Lucrécio (1 sec A.C.) referenciados por Blackburn (1997), defendem que uma vez que a morte é o fim da vida, não podemos ter experiência dela, nem pode ser um mal nem objecto de medo. Esta perspectiva é reforçada pelo insuportável fardo da imortalidade, referido no caso de Makropoulos, em que, numa obra de Karel Capek (cit. in Blackburn, 1997), um personagem toma o exilir da vida, tornando-o imortal; só que a determinada altura, a falta de sentido da sua existência, leva a concluir que a vida eterna não é realmente desejável, e que o ser humano tem sorte de poder morrer.

Morin (1988) realçando a crise dos anos sessenta, e o ressurgimento dos grandes recalcados, nomeadamente o sexo e a morte, reforça a ideia de que, assim como o sexo, também a morte será novamente, mesmo que em moldes diferentes, explorada e mitificada.

Tendo como referência alguns destes pensamentos e de concepções relacionadas com a abordagem da morte, tenta-se uma melhor percepção de vários aspectos relacionados com a morte. Assim, esta reflexão tem por base, na

sua essência dois conceitos, como sejam a morte e o morrer, bem como a abordagem que pode ser efectuada a estas realidades: “não tenho medo da morte, mas tenho medo de morrer” (Montaigne, cit. in Crolard, 2001)

A Vivência da Morte ao longo dos tempos

Uma das questões levantadas, quando se fala da abordagem da morte ao longo dos tempos, prende-se com o facto de existir, ou não, uma evolução na forma como, em termos comportamentais, o homem aborda a morte.

Na baixa Idade Média, a morte constituída uma importante cerimónia pública, vivenciada num contexto social familiar. Considerava-se que o moribundo deveria mostrar um arrependimento sincero pelos pecados cometidos em vida (Feijó,1992), assumindo a sua finitude física, sem qualquer tipo de temor, desprezo, orgulho ou desespero, compreendo e aceitando o seu destino – comum a todas as pessoas - de forma natural.

Do século XII ao século XIV, a morte converteu-se no momento em que o ser humano analisava, contava, pesava e julgava todas as particulariedades da vida – daí resultando a salvação da sua alma ou a sua condenação. Evidencia-se então um sentimento mais pessoal, interior e consciente da morte de si próprio.

Segundo Áries (1989), a morte era considerada como domesticada, ou seja, o moribundo normalmente não morria sem ter tido tempo de saber que ia morrer. A espera da morte efectuava-se no leito, com um cerimonial de carácter público, onde se encontravam vizinhos, parentes e amigos. Neste cerimonial, de acompanhamento do moribundo, realça-se a presença das crianças em todo o processo, em oposição às preocupações dos tempos modernos que afastam as crianças de todas as componentes que envolvam a morte.

A morte foi assim vista, durante séculos, como familiar, próxima, atenuada ou indiferente, em oposição às atitudes que, nos tempos que correm, são tomadas perante a morte, passando esta a ter um carácter “selvagem”. Esta concepção tem o seu início a partir do século XVIII, dado que, no Ocidente, a morte adquire um novo sentido, passando a ser exaltada, dramatizada e dominadora. Também a

partir desse século o que é verdadeiramente receado não é a própria morte, mas sim a separação inadmitida de um ente querido, da pessoa amada – a morte do outro. A humanidade começou a distanciar-se da morte em si mesma, ocultando o afrouxamento das antigas familiariedades.

A partir de meados do século XIX, segundo Tager (2001), a negação da morte tornou-se mais vincada, realidade esta que fica a dever-se ao declínio das crenças religiosas nos meios científicos e filosóficos. É a partir desta altura que a evocação da morte se torna incómoda, dado que é colocada em causa a fundamentação que a classificava como passagem para o Além, ganhando corpo as afirmações que sustentam o “fim de tudo”.

No que concerne ao luto, até ao século XIII era vivenciado de forma espontânea, aberta e violenta. A partir desta altura, até ao século XVIII, começa a sofrer uma longa ritualização para passar a representar a exaltação dramática da dor e a mitologia fúnebre (Oliveira,1999).

Referindo ainda Áries (1988), este relata os tipos de comportamentos, existentes em finais do século XVII, no que concerne à abordagem da morte. Assim, segundo este autor, era corrente naquela época a insensibilidade, a resignação e a familiariedade em relação à morte. “O moribundo dá a sensação de aceitar a fatalidade”.

Outras das referências de Áries (1998), incide sobre uma vertente, no mínimo curiosa, de cariz erótico, resvalando mesmo para o erotismo macabro. Esta aproximação entre pulsões de vida e de desejo com pulsões de morte, entre “Eros e Thanatos”, é referida em várias situações em que o contacto “amoroso” com mortos é desejado e concretizado. A esta situação muito provavelmente não seria alheio o facto de existir uma “excessiva” familiaridade, quer com a morte, quer com os locais de sepultura, fazendo estas realidades parte do quotidiano.

Em termos antropológicos constata-se que, pelos indícios conhecidos, na generalidade, quase todos os povos primitivos pensavam na vida para além da morte. As ideias subjacentes a esta orientação variam quando se fala da natureza do espírito do morto, para onde ia, o tipo de “vida” que levaria. No entanto, a

crença de uma existência post mortem era, para os povos primitivos, uma realidade para além de qualquer dúvida (Murphet, 1998).

Actualmente, na perspectiva de Oliveira e Amâncio (1999), o relacionamento humano com a morte depende do contexto psicossocial em que nos situamos, resulta de múltiplos factores interrelacionados e, no que se refere particularmente à nossa civilização ocidental, tem sofrido grandes alterações ao longo dos séculos. Assim, “a morte constitui um tema quase intocável e infindável, mas apaixonante, que nos conduz ao limiar da vida e nos leva a reflectir profundamente acerca da mesma” (Oliveira e Amâncio).

No entanto, é difícil para uma civilização industrializada, automatizada e tecnicista iludir o destino e “como não há nada mais capaz de gerar preocupações metafísicas nos seres humanos do que o …(…) factum da morte, talvez haja então uma razão para se evitar o tópico da morte por parte daqueles que insistem na mundaneidade da prática social” (Feijó, Martins e Pina Cabral, 1985, p.14). Ainda segundo Coelho (1991) “à roda da morte e do culto dos mortos há todo um conjunto de sentimentos e rituais que constituem talvez o que de mais profundo existe na nossa condição humana. (…) Porque é a vida que, acima de tudo, nos interessa.”