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Ao meu amigo Francisco Xavier Crato

Em vão! em vão ansiamos a ventura! Somos na terra qual viajante exausto! Que ouve o sussurro d’escondida fonte E morre à sede sem poder tocá-la!…

(Soares de Passos) I

(Continuação.)

II * * *

No dia seguinte, ou fosse efeito da singular predisposição d’espírito que de nós se apodera ao entrarmos no hospital, ainda mesmo de perfeita saúde, ou que realmente me não desse bem com aqueles ares, amanheci com a cabeça torva e pesada, nervoso, sen- tindo um incómodo geral e uma irritação de espírito que aumentou com a entrada do servente dos quartos, com o qual comecei por embirrar solenemente por me levar chá em lugar de café, a que estava habituado pela manhã.

– São as ordens! disse-me o tratante com a maior placidez, poisando a bandeja em cima duma cadeira à cabeceira da cama.

– Pois chame já o sr. enfermeiro! – Presente! disse uma voz de falsete.

Era o tio Olifo II, que tinha deslizado no quarto atrás do servente.

– É preciso pedir primeiro ao doutor. A sua dieta é de chá… Ouvindo isto, acabei de perder as estribeiras.

– Levem os diabos o chá, mais a dieta e o doutor!… O senhor bem sabe…

– Chiton III!… fez-me o enfermeiro com um gesto expressivo, indicando o servente.

Engoli em seco… e para disfarçar fui IV

também engolindo o chá, com as competen-

tes fatias.

O criado saiu levando a bandeja, e eu comecei a queixar-me ao enfermeiro da indis- posição que sentia.

– Parece-me que estou realmente doente! concluí, com voz lamentosa.

– Tanto melhor! respondeu-me o tio Olifo, sacudindo a cinza do cachimbo. Pois não era o que o senhor queria?…

– Não, sr…. entendamo-nos! o que eu quero é a licença.

– Não se pescam trutas a bragas enxutas… É preciso pelo menos que o sr. se queixe dalguma coisa ao doutor…

– Sem dúvida, mas…

– Mas… que mais quer o sr. Cunha?… Segundo os sintomas que dá, temos doença pronta, uma gastrite magnífica!…

– Hein?!… exclamei eu, assustado.

– Deixe lá as calças, homem!… Olhe que não deve levantar-se antes da chegada do doutor…

– Mas, sr. sargento… isso de gastrite…

– E então?… Cura-se logo, e depois apanha a sua licença, um mês pelo menos, para tomar águas férreas na Brava…

Com esta perspetiva, resignei-me à duma gastrite, tanto mais que só o anúncio dela como que me curou por milagre das veleidades nervosas que sentia.

Chegou a hora da visita clínica, e tendo o enfermeiro dado conta do caso ao faculta- tivo… bem entendido, somente o caso da gastrite… o doutor formulou, contentando-se apenas com tomar-me o pulso, olhando-me de revés com aquela vista d’águia de certos facultativos, que parecem dizer-nos nas bochechas:

– Ah! seu maganão!… você o que tem é uma grande manha no corpo: mas espere, que já lho digo…

Zás! um purgante que nos põe logo fracos e mansinhos, que nem uns cordeirinhos.

Abstenho-me de contar ao leitor as demais peripécias deste primeiro dia do hospital, empregado exclusivamente em não fazer coisa nenhuma e em aborrecer-me de morte, com a única distração da palestra dalguns enfermeiros meus conhecidos e a visita de um ou dois dos meus amigos e colegas que foram saber da minha importante saúde e causticar-me com fartos epigramas, pois acreditavam tanto na minha doença como nos

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milagres de Mafoma.

O facto é, porém, que fui buscar lã e vi-me tosquiado, pois, efeito do purgante, pro- vavelmente, na manhã do segundo dia acordei com falta de respiração e o fígado in- chado… o que fez esfregar as mãos de contente ao maroto tio Olifo.

– Bravo! disse ele. Agora temos hipertrofia do fígado! O amigo não apanha menos de dois meses de licença…

– Dois dardos que o atravessem, malvado! gritei eu, exasperado. Se você sabia que o purgante me faria mal, por que mo deixou tomar?…

– Para o limpar… é boa! Pois um purgantezinho faz lá algum mal?…

Tive tentações de esganar aquele maldito, mas contive-me, esperando não ter de aturá-lo senão uns três dias, tempo suficiente para poder apresentar-me à junta.

Desta vez, o doutor fez-me deitar a língua de fora e receitou cataplasma de linhaça, e outra coisa… que rejeitei redondamente no nariz do tio Olifo.

– Basta de brincadeiras! disse-lhe eu. Antes quero ir-me embora e ficar sem licença, do que deixar a vocês embutir-me no buxo toda a trapalhada, e afinal apanhar alguma doença a valer… Nada! nada!… E depois, já estou morto de aborrecimento! Se ao menos pudesse levantar-se e passear levantar-me baforadas por aí… V

O velho diabo expeliu umas poucas de baforadas do seu inseparável canhoto VI, e

retorquiu-me com toda a placidez:

– Como quiser… Mas sempre lhe digo que o sr. tem muito medo e se aborrece mui- to depressa… Olhe, se estivesse aqui há três meses, sempre de cama, e de mal a pior, como esse pobre D. JOÃO…

– Ora até que afinal entra em cena o D JOÃO! exclamará neste ponto o leitor, ata- lhando o meu espanto e as explicações do tio Olifo.

Que prespicácia a do leitor! e há que tempos não terá ele adivinhado que D. João era meu vizinho de quarto, e que mais hora ou menos hora havíamos de travar conhe- cimento, e chegar às confidências!…

Já não se pode fazer fortuna, hoje, com surpresas de romances!! e decididamente… não conto mais!

(Continua.)

(Continuação.)

IV

E as asas molhem meus beijos em tua boca vermelha, como no orvalho das rosas se molha a doirada abelha.

(Coroas fluctuantes) VII

Joaninha era a minha décima-terceira prima da Brava, exatissimamente aquela a quem nunca fui capaz de apanhar o mais insignificante e inocente beijinho primacial… nem mesmo capaz de lho pedir… valha a verdade!… Uma timidez de que não sei dar conta… mas é tal e qual!

As borboletas voam para as flores, e a loira abelha não pede licença à rosa vermelha para molhar as asas no seu cálice perfumado…

E Joaninha era uma botão de rosa desabrochado num sorriso da aurora… como diria o Artiaga, o mais descambado poeta que eu conheço.

E eu, que não tenho asas, mas que sou tão guloso como qualquer abelha (e note o sr. Abelha que não se trata de s. ex.a)… eu gostaria… gostaria também de molhar a minha

sopa…

Mas via então como um espelho, em que se refletem muitas coisas bonitas, o cristal da água, o azul do céu, o carmim das flores… mas que, se lhe bate de repente um raio de sol, obriga-nos a fechar os olhos.

Joaninha era assim… O seu olhar era o espelho, e o raio de sol a sua inocência. Sorrindo, fascinava. Olhando, e olhando de certo modo… produzia um deslumbra- mento. Era duma graça infinita a surpresa cândida que se lhe retratava no olhar, quando o anjo tinha de defender-se dalguns indícios de adoração menos estática. A sensitiva retraía-se, mas não tinha espinhos. Não havia indignação naquele olhar, nenhum bafo podia empanar o cristal daquele espelho[,] havia só o deslumbramento da pureza, que se impunha.

Enfim, não sei contar estas coisas!… A verdade é que nunca fui capaz de afrontar a limpidez daquele olhar, de aspirar o perfume das rosas daquelas faces, e, muito menos, de molhar os lábios no cristal puríssimo daquele sorriso.

O leitor que imagine uma Joaninha toda sua… sim, a sua, embora dando-lhe o no- me que mais doce lhe seja… imagine, e deixe-me em paz quando eu lhe disser que o D. João é que lhe deu, a ela, o primeiro beijo…

E isto foi de repente… por surpresa… doido… numa noite de luar, em que eles es- tavam a olhar-se havia já três horas sem se fartarem… Nem sequer tinham tomado

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chá!… De repente, o atrevido do D. João agarrou naquela formosa cabecinha às mãos ambas, e imprimiu-lhe na boca um beijo louco…

Ela curvou-se toda, fremente e pálida, a destacar-se-lhe da cor do vestido escuro a alvura da tez, como uma rosa esmaecida pelo palor da lua…

E a lua sorria-se por entre as clareiras arrendilhadas dos bosques de bananeiras que põe[m] manchas escuras na aldeia de Pé da Rocha.

A tempo, a avó de Joaninha, que esbugalhava o seu rosário, à porta, a pouca distân- cia dos dois, que estavam sentados no terreiro da casa, teve afinal a perceção de que o sereno da noite podia fazer mal à menina, e chamou-a para dentro.

E ela foi, sem se despedir do D. João, confusa, quase indignada, talvez mesmo com dor de cabeça por efeito do sereno…

Pobres e santas avós!…

Mas o bonito foi no dia seguinte, quando o D. João apareceu com cara de penitente, sem se atrever a erguer os olhos para ela… Joaninha, envolvida no seu alvo penteador, com os formosos cabelos castanhos esparsos em ondas opulentas pelas costas e erriça- dos na frente como um diadema, sob o qual resplandeciam as esmeraldas de seus olhos límpidos e sorridentes, tomou entre as mãozinhas a cabeça do grande criminoso, obri- gando-o a erguer os olhos para ela, que lhe dizia no olhar e no sorriso: «Eu sou a ino- cência! eu sou o anjo! Mas, D. João, sou também a virgem animada pelos primeiros eflúvios do amor… D. João! amo-te!…»

E foi ela que, mesmo nas barbas da avó, lhe restituiu, purificado, o beijo roubado na véspera…

Parece que depois disto D. João partira à conquista de fortuna para a noiva, como fazem todos os filhos da Brava, mas que no caminho surgira-lhe o diabo, sob a forma duma bonita pequena, que o recambiou direitinho para o hospital da Praia…

……… – Ó sr. António Zé da Cunha! onde é que está vm.?

– Aqui, tio Olifo! debaixo das acácias… sub tegmine fagi VIII

– Lá está o sr. com o seu latinório!… Ora venha para dentro, que são horas de lhe dar a sua tintura de iodo…

Já íamos no iodo, leitores! A inflamação do fígado saltara-me ao baço à força de ca- taplasmas, e destas passáramos ao iodo, que eu não consentia, contudo, senão em dose que mal chegava a colorir-me a pele: e à primeira vez que o senti morder, meia hora depois de aplicado, agarrei num cabo de vassoira e fiz finca-pé atrás da porta resolvido a quebrar os ossos ao danado tio Olifo, que por fortuna sua adivinhou-me as caridosas intenções, e disparou-me da janela o seu mais pardo sorriso, acompanhado duma cas- quinada maquiavélica.

Felizmente, ao cabo duns oito dias pude apresentar-me em junta, e consegui engro- lar toda a faculdade, menos o dr. Bernardo, que sustentou teimosamente que eu não tinha coisa nenhuma, no que estive quase tentado a dar-lhe razão… Mas assim mesmo, sempre tive a fortuna de abichar quinze dias de licença para convalescer em qualquer dos pontos mais saudáveis do arquipélago; e como a Brava passa pelo primeiro, ou um dos melhores… Parti!!! ……… (Conclui.) I

Trata-se de uma passagem do poema «A vida.», incluído – com variantes de pontuação – no li- vro Poesias (Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1856, p. 7).

II No testemunho vem Olifus, embora nas ocorrências posteriores surja a forma Olifo, razão pela

qual optámos pela uniformização. Supomos que Guilherme Dantas terá ido buscar o nome a uma novela de Alexandre Dumas, Les Mariages du Père Olifus, de 1849, incluída em Les Mille et Un

Fantômes, cuja edição portuguesa, formada por 4 tomos em 2 volumes, saiu quase de imediato, em

1849-1850 (Lisboa: Typ. Lisbonense).

III

chitom – (interj.) caluda.

IV

No testemunho, certamente por gralha, foi.

V

Parece haver falha no testemunho, sendo provavelmente a seguinte a forma correta: Se ao me-

nos pudesse levantar-me e passear levantando baforadas por aí…

VI

canhoto – cachimbo.

VII

Da autoria de Joaquim Pinto Ribeiro Júnior (*1822 †1882), Coroas fluctuantes teve duas edi- ções, em 1862 e 1863 (ambas do Porto – de onde o autor era natural –, na Typographia de Sebastião José Pereira). A passagem usada por Guilherme Dantas ocorre na p. 107, na terceira parte do poema «Á Luz do Crepusculo».

VIII

Conhecida expressão que ocorre no verso inicial da primeira das Bucólicas de Vergílio e que significa «debaixo de uma frondosa faia».

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