• Nenhum resultado encontrado

O mosaico de contradições em Nova York

Annie Hall (1977)

Um mosaico de contradições: biografia e autocrítica

Eu estava na cidade dos meus sonhos. Todas as noites de ano-novo, eu sentava em frente à nossa televisão de 21 polegadas Predicta Philco e assistia à descida da bola da virada na Times Square. Nova York era aquela parede-com-parede de vários arranha-céus. Era o oposto da pequena Santa Ana, ou até mesmo, de Los Angeles. Era a Times Square, o Empire State, a Estátua da Liberdade, e também o edifício Chrysler. Mas, acima de tudo, era a noite de ano-novo. Era aquela centena de milhares – não, milhares – de pessoas reunidas ali para celebrar a passagem do ano-novo. Eu queria estar lá com eles também, ali mesmo [...].166

Em sua autobiografia, Diane Keaton retoma o momento em que se mudou para Nova York, descrevendo o seu encantamento com os arranha-céus da cidade. A atriz nasceu em Los Angeles, na Califórnia, em 1946. Assim como Woody Allen, Diane Keaton é um nome inventado. Allen usa o nome de nascimento de sua ex- companheira, Diane Hall, para compor um jogo de palavras no título do filme Annie

Hall. Nesse sentido, o título do filme possui semelhança fonética com o advérbio

anyhow (de qualquer maneira), mas também remete ao substantivo “anedonia;” que designa a incapacidade de sentir prazer ou divertir-se; ou ainda, o título permite inferir outro significado da palavra anedonia como uma “forma especial de rigidez afetiva em consequência de experiências traumáticas de vida (por exemplo, passagem de um indivíduo por um campo de concentração).”167 Tendo em vista que se trata do casal ícone da cidade, espécie de estratégia de marketing às avessas “I Love NY/Annie

Hall,” o cartão-postal apresentado pelo filme fotografa um momento de ruptura. Um sintoma desta perda pode ser encontrado na memória dos cidadãos. Na composição do cartão-postal de Woody Allen, a “Nova York delirante”168 priva os cidadãos do prazer. Na famosa acepção de Rem Koolhaas, o manhattanismo enseja uma declaração profética de guerra entre “cidades-estado arquitetônicas:”

É uma declaração profética que desencadeia um dos temas mais recorrentes do manhattanismo: doravante, cada novo edifício da espécie mutante luta para ser “uma cidade dentro de outra cidade.” Essa ambição

      

166 Keaton, Diane. Then Again. New York: Random House, 2011, p.47-48.

167 Definição de “anedonia” de acordo com o dicionário Houaiss: http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=anedonia

168 Koolhaas, Rem. Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan; trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

truculenta faz da metrópole uma coleção de cidades-estado arquitetônicas, todas numa potencial guerra entre si.169

Nesse sentido da disputa entre arranha-céus espalhados pelo mundo e da revogação do desejo compartilhado, o filme faria parte do trabalho de luto de uma promessa utópica de cidade nos EUA, aquela fruto de um projeto coletivo sonhado pela classe trabalhadora nos anos da Frente Cultural e retomado pela luta pelos direitos civis. Annie Hall pode ser entendido como um retrato do processo de desmoronamento do movimento de contracultura dos anos 1960, transformado em miragem, hedonismo e no culto do “eu” espetáculo-corporativo.

Olhando para a câmera, Alvy Singer apresenta-se para os espectadores de

Annie Hall como um membro esclarecido do clube, de modo que a identificação entre o personagem e a plateia de Allen faz parte do teorema montado pelo filme. O fluxo de consciência do personagem documenta a tentativa melancólica de reconstituição de uma perda com o personagem recrutando adeptos para a sua versão narcísica do desfecho. Olhando para a câmera, ele profere o seu monólogo:

Há uma velha piada. Duas senhoras estão em um resort nas montanhas de Catskill. E uma delas diz: “A comida deste local é horrível.” A outra replica, “É verdade, e em porções tão pequenas.” Bem, é exatamente assim que eu me sinto sobre a vida: cheia de solidão, miséria, sofrimento e infelicidade e tudo acaba muito rápido. A outra piada importante para mim é uma que normalmente é atribuída ao Groucho Marx, mas eu acho que ela aparece originalmente em Os chistes e sua relação com o inconsciente, do Freud. E apresenta-se assim, estou parafraseando: “Eu não quero pertencer a nenhum clube que me aceite como sócio.” Essa é a piada central da minha vida adulta em termos das minhas relações com mulheres. Ultimamente, os pensamentos mais estranhos vêm à minha mente, porque fiz 40 anos, e acho que estou enfrentando uma crise ou algo assim, não sei. Não estou preocupado em envelhecer. Não sou desse tipo. Apesar de que estou ficando um pouco careca. Isso é o pior que você pode dizer de mim. Eu acho que ficarei melhor conforme envelhecer. Acho que serei do tipo careca, viril, em contraste com o tipo do grisalho distinto, por exemplo. A não ser que eu não seja nenhum desses dois. A não ser que eu seja um desses caras com saliva saindo pela boca que fica vagando num café, segurando uma sacola de compras e gritando sobre o socialismo. [Suspira] Annie e eu terminamos e eu ainda não consigo entender. Fico tentando filtrar os pedaços do nosso relacionamento na minha cabeça e examinando a minha vida e tentando entender onde começou o estrago. Há um ano atrás nós nos amávamos. E é engraçado. Eu não sou do tipo melancólico. Não sou um tipo depressivo. Eu era uma criança razoavelmente feliz. Fui criado no Brooklyn durante a Segunda Guerra Mundial.

O próprio fluxo de consciência de Alvy já apresenta a sua negação, de maneira que as suas afirmações devem ser entendidas ao revés. Na cena seguinte, no       

consultório médico no Brooklyn, o flashback de Alvy revela a criança deprimida durante a Segunda Guerra Mundial, porque “o universo está se expandindo.” A mãe repreende o garoto: “O que o universo tem a ver com a sua lição de casa? Você está no Brooklyn. O Brooklyn não está expandindo!” Fumando durante a consulta, o médico compartilha o discurso do personagem adulto e sorri: “Nós temos que aproveitar enquanto estamos aqui.” A imagem da casa da infância de Alvy, embaixo da montanha-russa em Coney Island e dos personagens caricaturais que parecem sair de uma história em quadrinhos reafirmam a questão da “imaginação hiperativa” do personagem que compõe suas memórias dentro de um parque de diversões: “eu tenho um pouco de problema entre fantasia e realidade.” Essa tendência intensifica-se na conversa entre Alvy e Rob (Tony Roberts), na qual a paranoia de Alvy com a questão do antissemitismo explicita-se. Neste plano da calçada da rua 66 no Upper East Side em Manhattan, a imagem é dos pedestres desconhecidos caminhando e da Manhattan House,170 empreendimento modernista de apartamentos residenciais, lançado nos anos 1950 e transformado em patrimônio histórico da cidade em 2007. A sequência externa, na qual os pedestres caminham pela cidade enquanto conversam, é característica do cinema de Woody Allen. A técnica ressalta o cotidiano da cidade, deixando os personagens fora do campo de visão do espectador. Ouve-se o ruído do trânsito e a voz off de Alvy e Rob, os quais, aos poucos, caminham em direção à câmera:

Alvy: Eu ouvi claramente. Ele murmurou baixinho: “Judeu.” Rob: Você é louco.

Alvy: Não, não sou. Nós estávamos saindo da quadra de tênis. Ele estava lá comigo e com a mulher dele. Ele olhou para ela, depois os dois olharam para mim e bem baixinho, ele disse: “judeu.”

Rob: Alvy, você é totalmente paranoico.

Alvy: Como sou paranoico? Eu percebo essas coisas. Estava almoçando com uns caras da NBC, e eu disse: “Você já comeu?”171 E o Tom Christie respondeu: “Não. Judeu?” Não, “Jácomeu?”, mas “Jud-eu?” Entende? Rob: Ah... Max –

Alvy: Para de me chamar de Max.

      

170 O status de patrimônio histórico para a Manhattan House foi conferido tendo em vista que o empreendimento modernista, assinado pelo arquiteto Gordon Bunshaft do escritório Skidmore, Owings & Merrill, reflete o conjunto de novos arranha-céus residenciais construídos em Nova York, após a Segunda Guerra Mundial. “Concluída em 1951, a Manhattan House ocupa um bloco entre as ruas 65 e 66 e a Segunda e Terceira avenidas, o edifício reflete as teorias de Le Corbusier, o renomado arquiteto francês do século 20 que, entre outras coisas, ficou conhecido por construir enormes blocos de edifícios de apartamentos em espaços abertos.” Entre os seus mais famosos inquilinos, a atriz Grace Kelly e o clarinetista de jazz Benny Goodman. A justificativa completa da Comissão de Patrimônio Histórico da cidade de Nova York para a concessão do título para a Manhattan House está disponível em: <http://www.nyc.gov/html/lpc/downloads/pdf/press/10_30_07-30.pdf>. Acesso em 27 out. 2015. 171 Em inglês, a semelhança fonética entre: Did you eat? e Jew eat? confere o aspecto cômico da cena.

Rob: Por quê, Max? É um bom nome para você. Max, você vê conspirações em tudo.

Alvy: Não, eu não vejo. Estava em uma loja de discos. Escute isso. Então, sabe, tem um cara grande, alto, loiro, do tipo malandro que trabalha lá e ele estava olhando para mim de um jeito estranho e disse: “Esta semana nós temos uma promoção do Wagner.” Wagner, Max. Eu sei o que ele está realmente querendo me dizer. Muito significativamente, Wagner.

Rob: Claro, Max. Califórnia, Max. Vamos sair dessa cidade maluca. Alvy: Pode esquecer, Max.

Rob: A gente se muda para a ensolarada L.A. Todo mundo do show

business está lá, Max.

Alvy: Não, eu não posso. Você continua trazendo esse assunto, mas eu não quero viver em uma cidade onde a única vantagem cultural é virar à direita no farol vermelho.

Rob: Tá certo, Max, esqueça. Você não vai se atrasar para encontrar a Annie?

Alvy: Vou encontrá-la em frente ao Beekman. Acho que ainda tenho uns minutos, certo?

Fora do campo de visão do espectador, a cena proporciona distanciamento em relação ao discurso de Alvy, o judeu paranoico que ouve comentários antissemitas por onde passa, como também aproxima os personagens, os quais inicialmente são apresentados como opostos – Rob, defensor da ensolarada capital do show business Los Angeles, e Alvy, patrono cultural de Nova York –, por meio do uso do nome Max. O passeio pela cidade revela o espaço urbano “revitalizado” pela cosmética cultural: Rob e Alvy são caracterizados como agentes da gentrificação; para o espectador do filme, a frase “o universo está se expandindo,” proferida pela criança no Brooklyn, caracteriza-se tanto como um comentário irônico sobre o expansionismo americano como sobre os efeitos do empreendedorismo urbano em Nova York.

Na calçada do antigo cinema de arte Beekman, Alvy espera por Annie preocupado com o atraso da namorada e com a “ameaça do estranho” em uma área da cidade em transformação. O filme documenta as mudanças ocorridas no espaço urbano em Nova York172 entre os anos 1960-70, principalmente no Upper East e West Sides: da remoção de moradias da classe trabalhadora para a construção de novos empreendimentos imobiliários para a classe alta. Alvy é uma celebridade da televisão, reconhecido pelos fãs pelas ruas da cidade. O homem que aborda Alvy é caracterizado pelo protagonista como “parte do elenco do Poderoso Chefão.” Para o espectador de

Annie Hall, a citação remete à atuação de Diane Keaton no filme de Francis Ford Coppola, de 1972, aproximando o universo cultural do filme de Allen à caracterização       

172 Existem muitos sítios eletrônicos que reuniram as locações utilizadas em Annie Hall, todos eles são categóricos em afirmar que o espaço urbano nova-iorquino retratado no filme de 1977 já não existe mais.

da máfia que comanda a cidade, na obra de Coppola. Em Annie Hall, a cena na calçada da rua em frente ao cinema de arte desvenda o preconceito de Alvy: ele representa o medo das classes médias instruídas de “invasão dos estranhos,” aqueles que não são sócios de seu clube. A diversidade étnica, o multiculturalismo, que estão entre os principais elementos de propaganda da cidade de Nova York, dão lugar ao preconceito de classe. Nesse encontro “fortuito” no cinema de arte entre a celebridade e o fã, proporcionado pelo trabalho de Alvy na televisão, não há nenhuma chance de correspondência entre o desconhecido e o artista/intelectual. Conforme discute Sharon Zukin, as pressões para utilizar a cultura para “estabilizar” os bairros vieram das classes médias instruídas:

O aumento dos valores das propriedades sugeriam diferentes usos, prédios mais altos, formas mais densas: mais residências para a classe média alta do que para a classe trabalhadora, apartamentos para os ricos, uma nova topografia física e social para o Upper East e o West Sides.173

No espaço privado da fila do cinema, Alvy, como um apresentador de TV trazendo a próxima atração de seu show, chama o especialista em meios de comunicação Marshall McLuhan para contestar o personagem pedante, professor responsável pela disciplina “TV, Mídia e Cultura” na Universidade de Columbia. Na competição por referências, os personagens igualam-se e o filme expõe o esnobismo dos sócios do mesmo clube.

Por conta do atraso de Annie, o cinéfilo e pontual Alvy perde a sessão de Face

à Face (1976), de Ingmar Bergman e acaba re-assistindo ao documentário sobre o nazismo de Marcel Ophüls, A Dor e a Piedade (1969). É exatamente na fila para o documentário, na qual artistas e intelectuais engalfinham-se, que o filme dá início à comparação entre o universo dos personagens de Annie Hall em Manhattan e dos colaboradores nazistas e da Resistência Francesa entrevistados por Ophüls para A Dor

e a Piedade. O documentário retrata a França de Vichy sob a ocupação nazista, o processo de transformação dos cidadãos franceses em fanáticos defensores de uma Europa hitlerista e a Resistência. Como explica Hobsbawn, a distinção entre fascistas franceses convictos, colaboradores pró-alemães e agentes do governo Vichy era muito tênue:

Hitler foi levado ao poder por uma coalizão da direita tradicional, que ele depois suplantou. O general Franco incluiu a então não muito importante Falange espanhola em sua frente nacional porque o que ele representava

      

era a união de toda a direita contra os espectros de 1789 e 1917, entre os quais ele não fazia distinções sutis. Foi por mera sorte que não entrou na Segunda Guerra Mundial do lado de Hitler, mas enviou uma força de voluntários, a “Divisão Azul,” para combater os comunistas ateus na Rússia lado a lado com os alemães. O marechal Pétain certamente não era fascista nem simpatizante nazista. Um dos motivos pelos quais foi tão difícil após a guerra distinguir entre fascistas franceses convictos e colaboradores pró-alemães, de um lado, e o corpo principal de apoio ao regime de Vichy do marechal Pétain, de outro, era que na verdade não havia uma linha nítida que os separasse. Aqueles cujos pais tinham odiado a Dreyfus, os judeus e a cadela-República – algumas figuras de Vichy tinham idade suficiente para tê-lo feito pessoalmente – transformaram-se sem sentir em fanáticos defensores de uma Europa hitlerista. Em suma, a “natureza” da aliança da direita entre as guerras ia dos conservadores tradicionais, passando pelos reacionários da velha escola, até os extremos da patologia fascista. As hostes tradicionais do conservadorismo e da contra-revolução eram fortes, mas muitas vezes inertes. O fascismo forneceu-lhes a dinâmica e, talvez mais importante ainda, o exemplo de vitória sobre as forças da desordem. (O argumento proverbial em favor da Itália fascista não era que “Mussolini fez os trens rodarem no horário?”) Do mesmo modo como o dinamismo dos comunistas exerceu uma atração sobre a esquerda desorientada e sem leme após 1933, também os sucessos do fascismo, sobretudo depois da tomada nacional-socialista da Alemanha, deram a impressão de que ele era a onda do futuro.174

Por sua vez, os personagens Alvy e Annie são ícones da onda do empreendedorismo urbano, transformando-se em marca do sucesso corporativo com a vestimenta da contracultura. O figurino de Diane Keaton, criado por ela mesma para o filme, o terno e a gravata desalinhados, virou sinônimo do uniforme cult nos escritórios das transnacionais: o filme de 1977 trata da ascensão da mulher corporativa, figura feminina que será retomada ao longo da carreira de Allen. Esse processo de transformação de Annie Hall em mulher-empresa (por meio do “cultivo” intelectual, patrocinado por Alvy, que paga não apenas pelas sessões de terapia da namorada, como também por cursos universitários e, por fim, presenteia-a com um relógio, símbolo, por excelência, do controle do tempo do trabalho) relaciona-se no filme de Allen com a Crônica de uma cidade francesa durante a Ocupação, de Ophüls.175 A forma do filme em Annie Hall guarda semelhanças com a do documentário de Ophüls por adotar uma estrutura narrativa que estabelece-se por meio de um “mosaico de contradições.”176 Esse método, que será retomado no período       

174 Hobsbawn, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991; Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.126-127.

175 A parceria entre Ophüls e Allen é antiga. Ophüls é mencionado nos agradecimentos de Annie Hall e, em 2000, Allen foi o responsável pela restauração e lançamento em DVD de A Dor e a Piedade. 176 A expressão foi utilizada por Bill Desowitz em artigo sobre o lançamento em DVD do documentário de Marcel Ophüls. Ver: Desowitz, Bill. “The Long Shadow of ‘The Sorrow and the Pity,’” The New York Times, Nova York, 7 de maio de 2000. Disponível em: http://www.nytimes.com/2000/05/07/movies/film-the-long-shadow-of-the-sorrow-and-the-pity.html

exílico de Woody Allen, compõe-se por meio da incorporação de referências exteriores. Conforme argumentaremos a seguir, A Dor e a Piedade é estruturante para entender o cinema de Woody Allen e, notadamente em Annie Hall, o documentário de Ophüls é retomado em três momentos centrais da narrativa.

O primeiro fragmento de A Dor e a Piedade apresentado em Annie Hall não é o do início do documentário, mas aquele que, situado na primeira parte, mas não na primeira cena, introduz o título da obra e fotografa a imagem dos soldados sorrindo, durante a apresentação do cantor Maurice Chevalier. No filme de Allen, a apresentação de Chevalier aos prisioneiros da Resistência no campo nazista não aparece.

No entanto, a inclusão do breve trecho do documentário de Ophüls alterado tem o intuito de reapresentar A Dor e a Piedade para os espectadores de Annie Hall. Sobre os créditos do documentário, a música extra-diegética de uma marcha militar e a imagem congelada dos rostos dos soldados sorrindo, a voz over narra: “14 de Junho, 1940, o Exército alemão ocupa Paris. Por todo o país, as pessoas estão desesperadas por qualquer pedaço de comida disponível.” Ao inserir o documentário de Ophüls em

Annie Hall, Allen retoma o debate da cidade sob ocupação nazista e o papel dos cidadãos na França de Vichy. Há um espelhamento entre o público de Chevalier, os soldados franceses no campo nazista, e a plateia que assiste ao documentário de Ophüls no cinema de arte de Nova York.

Na montagem deste mosaico de contradições sobre Nova York, um corte abrupto, após o fragmento documental de Ophüls, conduz o espectador do filme para o quarto do casal em Manhattan, onde Annie, sentada na cama, lê um livro sobre sexualidade. Em voz off, uma das técnicas utilizadas por Ophüls para compor a apresentação de Chevalier aos soldados, Alvy comenta sobre A Dor e a Piedade: “Esses caras da Resistência Francesa eram realmente corajosos, sabe? Ter que ouvir o Maurice Chevalier cantar por tanto tempo.” Alvy caracteriza a apresentação de Chevalier como uma forma de tortura, ao passo que Annie sente-se culpada, lê e questiona se seria capaz de resistir. Enquanto ela imagina se aderiria à Resistência, Alvy a ridiculariza e censura, reduzindo sua companheira à lógica do consumo: “Você? Está brincando? A Gestapo tiraria o seu cartão de crédito da Bloomingdale’s e você contaria tudo para eles.” No teorema exposto pelo filme, o chiste com o cartão de crédito da loja de departamentos de luxo Bloomingdale’s reinsere a questão do

mercado: na afirmação de Alvy sobre o posicionamento político de sua companheira, a Resistência transforma-se em colaboração para manter um alto padrão de consumo.

Como um contador de desempenho ou um consumidor que deseja incessantemente a sua mercadoria, Alvy reclama da frequência sexual do casal.

Documentos relacionados