• Nenhum resultado encontrado

Motivações: contextualização de vontades e decisões

No documento MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (páginas 150-157)

CAPÍTULO 3 Da Constituição de uma Imagem de Centro Histórico

3.1 Motivações: contextualização de vontades e decisões

Importa aqui, antes de qualquer outra análise dos conceitos que sustentam a noção de “centro histórico” ou de patrimônio, observar as motivações que conduziram, em Vila do Conde, à decisão de atuação sobre o “núcleo antigo” e à sua definição como área prioritária de intervenção no quadro dos estudos urbanísticos da “política urbana”. Ou seja, importa verificar o contexto em que ocorre a decisão sobre as ações específicas para a “cidade existente”, quando os processos de transformação de todo o espaço urbano, em todas as cidades portuguesas, pediam, porventura, outro conjunto de prioridades e outra canalização de recursos.

Os conceitos e processos de intervenção na “cidade existente” têm evoluído significativamente nas últimas décadas e, em conseqüência, mudaram de intenção e de forma os instrumentos de planejamento e projeto, bem como a organização da gestão urbana. Por intervenção na “cidade existente” entendemos o conjunto de programas e projetos públicos ou de iniciativas autônomas que incidem sobre tecidos urbanizados dos aglomerados, sejam antigos ou relativamente recentes, tendo em vista; a sua reestruturação ou revitalização funcional (atividades e serviços): a recuperação ou reabilitação arquitetônica (edificação e espaços não construídos, designadamente os de uso público); a sua reapropriação social e cultural (grupos sociais que habitam e trabalham em tais estruturas, relações de propriedade e troca, atuações no âmbito do serviço social, educação, tempos livres). Esse conceito distingue- se, portanto, da produção urbana em extensão ou da criação de novos aglomerados, e distingue-se, também, das intervenções sobre o patrimônio que apenas visam o seu restauro monumental. E distingue-se, ainda, do conceito designado por “renovação urbana” (renewal ou renovation), corrente a partir do pós-guerra e enunciado em textos doutrinários como o conhecido por “Carta de Atenas”, publicada em 1933 pela mão de Le Corbusier, nos quais se postulava a substituição das estruturas físicas existentes como condição necessária da adaptação das cidades herdadas às “necessidades da vida moderna” (antes, houvera outra “Carta de Atenas”, essa em defesa do restauro e da conservação ambiental). O que não implica, note-se, que esse conceito de intervenção sobre a “cidade existente” sacralize toda a

141

edificação pelo fato de ela já existir, mas que toma como um dado econômico e cultural a estrutura e forma da cidade, dos seus bairros e centros, dos seus edifícios, ruas e quintais e, também, como um dado social a trama das relações sociais e de atividades que aquelas estruturas físicas suportam e refletem.

Em muitos países, e em Portugal a partir dos anos de 1970, foi-se criando a idéia de que a intervenção na “cidade existente” se traduz a encomendar “planos” de intervenção específica: na seqüência de encomendas de estudos de centros históricos e de “Planos de Salvaguarda” pelos organismos do Estado central de tutela da cidade e do patrimônio, não se descortina uma estratégia clara de política para esses espaços e ainda menos os critérios metodológicos e de intervenção urbana subjacentes. Começou a aceitar-se, como paradigma, que a mera existência de um “plano” seria a condição suficiente para a atuação, aceitando a separação entre plano e capacidade de intervenção, como, também, foram reduzidas a “catálogos”, algumas propostas de regulamentos à edificação, redesenho de estruturas para executar sem saber como e por quem, e que corrompe o próprio conceito de planejamento. O que têm de comum esses “planos” é, por um lado, o seu relativo isolamento dos órgãos de poder local e, por outro, o não terem sido concebidos em função de políticas ou programas de intervenção publica dirigidos à recuperação do parque edificado. Por que, além disso, eram instrumentos limitados a algumas variáveis “físicas” da questão. E nesse sentido, salvaguardadas as experiências reconhecidas e que têm servido de referência à formulação de novas abordagens (como a Guarda, Évora ou Guimarães), constata-se que esses estudos não têm permitido sequer uma avaliação da pertinências das análises ou dos efeitos das propostas que desenham. Em muitos casos tratam-se de aproximações, ou visões ampliadas e focalizadas dos planos de urbanização, acrescentando detalhes de forma (geralmente mais arbitrários), mas não realizando, por isso, uma maior aproximação aos agentes envolvidos, suas características e recursos.

Esse expediente de “plano desfocado” ocorria ao mesmo tempo em que muitos, dos mesmos, municípios mostravam empenho na revitalização e recuperação da cidade existente como espaços privilegiados de dinamização urbana, antes ainda instituir qualquer quadro valorativo do seu patrimônio, o que penhorava, à partida, a formulação de projetos mais ajustados e conseqüentes.

142

A contribuição inovadora ao tema da “cidade existente” que se formou, aliás, a partir da discussão sobre os centros históricos, resulta da confluência de fatores de natureza distinta: a) a ampliação do conceito de patrimônio arquitetônico, desde a identificação inicial com o monumento, depois com o quarteirão, a praça ou o conjunto típico para a “classificar” (tombar), para evitar a demolição ou adulteração, trabalhando-o como objeto de restauro (Le-Duc45), ou

de ambiente (Ruskin46), até às recentes concepções que procuram a integração física e social

de cada área no conjunto urbano, privilegiando seqüências de espaços públicos e lugares heterogêneos, mas sempre como testemunho de memórias coletivas (Rossi47)– mas não coíbe

operações pontuais sobre os tecidos herdados com a conseqüente marca formal de quem hoje faz e usa a cidade; b) a tomada de consciência, pelos órgãos da administração local, da importância do “stock” construído (para além do eventual valor monumental) e, portanto, da necessidade de contar com a sua plena utilização na programação das necessidades habitacionais ou outras, revendo as práticas convencionais de “cálculo de carências” - no mesmo sentido, vem a percepção do designado “desperdício imobiliário”, ou seja, o excesso do total de alojamentos urbanos sobre o total de famílias a alojar (fenômeno recorrente em muitas cidades européias), que coloca em questão a redistribuição e plena utilização do parque imobiliário existente e a aplicação dos recursos públicos; c) a emergência de movimentos sociais nos bairros históricos opondo-se à “erradicação” das famílias residentes a pretexto de intervenções de saneamento de condições ambientais (argumento corrente nos processos de “gentrificação”), ao mesmo tempo que profissionais das ciências e intervenção sociais descobrem capacidades de mobilização e mesmo de auto-organização de residentes, artesãos ou comerciantes para revalorizarem as suas áreas de fixação tradicionais – na mesma linha,

45 Eugène Emannuel Viollet-le-Duc (1814-1978), arquiteto françês, nas suas intervenções de restauro dos monumentos, buscava restabelecer a “situação original do monumento”, quase sempre suposta e não comprovada. Os acréscimos e intervenções ocorridos ao longo da história do monumento normalmente são desprezados em função da busca pela unidade estilística: "A palavra e o assunto são modernos. Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em dado momento".

46 John Ruskin (1818-1900), escritor e crítico inglês, em oposição a de Le-Duc, defendia a não intervenção nos monumentos antigos, por considerar que quaisquer interferências imprimem novo caráter à obra, tirando sua autenticidade. A partir da visão de Ruskin a história e a condição atual devem ser respeitadas, admitindo-se somente intervenções de conservação: A restauração é a destruição do edifício, é como tentar ressuscitar os mortos. É melhor manter uma ruína do que restaurá-la (...) a melhor forma de destruir um monumento é restaurá-lo (...); a solução reside em prevenir a destruição de qualquer tipo de monument /edifício antes que este esteja reduzido a ruínas.”

47 Aldo Rossi (1931-1997), arquiteto italiano. A perspectiva de Rossi é a teoria dos “fatos urbanos”, na qual a reflexão em torno dos monumentos e do patrimônio assume uma importância central, os quais são encarados como “monumentos urbanos”, ou seja, como fatos urbanos com “caráter de permanência”: “os monumentos, sinais de vontade coletiva expressos mediante os princípios da arquitetura, parecem colocar-se como elementos primários, quais pontos fixos da estrutura urbana.”

143

uma maior atenção incide sobre as transformações, quer das funções econômicas, quer da composição social e etária dos residentes e na emergência de novos modos ou estilos de vida; d) a crise dos conceitos e “receitas” da arquitetura urbana face à decepção com o resultado das novas urbanizações dos anos de 1960 em diante, que leva os profissionais a voltarem a aprender com a cidade existente, a valorizar as seqüências de espaços públicos bem identificáveis, animados pela mistura das atividades e gerações, influenciando as autoridades locais a privilegiarem intervenções setoriais ou sistemáticas de melhoria do existente.

Por essas razões, entre outras, a “nova política urbana” rompeu, sucessivamente, com as duas concepções dominantes da fase de anterior de reconstrução e desenvolvimento da Europa do pós-guerra. Primeiro, com a “renovação urbana” através da substituição sistemática da edificação antiga das zonas mais centrais, quer por grandes operações de infra-estrutura e emparcelamento, como desejava a “Carta de Atenas” do CIAM (Congresso Internacional da Arquitetura Moderna), quer lote a lote para aumento de volume de construção como desejava a Lei 2030 (de 22 de junho de 1948); em segundo lugar, com o conceito de centro histórico “classificado”, limitado a certos episódios de patrimônio arquitetônico e objeto de medidas de conservação e restauro que não tinham cuidado de outras dimensões econômicas e sociais do sistema urbano.

Assim, essa “nova política” mostrava-se mais sensível a certos sintomas de mudança nas tendências, como a, ainda discreta, saturação da procura de nova habitação coletiva (cultivando-se o gosto pela casa individual periurbana), assim como de espaços comerciais e de escritórios; tratava-se, já, de preocupações políticas de defesa da residência central de camadas populares e do emprego disseminado nos centros urbanos. Assim, mais do que a expansão da oferta de novos bairros, a administração local estava confrontada com a necessidade de gerir a plena utilização de um vasto parque residencial (mas também de escritórios, comercio e oficinas), que só poderiam ser revalidados com o empreendimento ações de reabilitação de edifícios, de saneamento e arranjo de espaços públicos. Essa nova abordagem postulava a melhor utilização coletiva do “capital-fixo” – a cidade -, considerando a intervenção no existente e a nova expansão como ações complementares e, portanto, interdependentes em termos de atribuição de investimento e preocupações dos serviços municipais.

144

Mas não apenas isso: mais importante que as “pedras” seriam as “pessoas” – um “capital social” (designação à qual não seria indiferente o conceito, então, divulgado por Pierre Bourdieu) que se articula com o edificado através de complexas relações econômicas, jurídicas ou afetivas – o que significa que essa dimensão do problema escapa sempre ao “planejamento urbano convencional” e remete para ações que não têm sede única nem clara e para as quais os municípios se encontravam ainda mal equipados: serviço social, educação, animação cultural, regime de inquilinato ou emprego.

A mudança apontada nessas novas abordagens da “cidade existente” implicava, necessariamente, uma mudança institucional e a busca de instrumentos operativos adequados aos critérios e objetivos das intervenções visadas. Não será certamente, por acaso, que a evolução dos conceitos e as novas práticas se verificam ao mesmo tempo em que o “poder local” ganhava na maioria dos países o protagonismo na condução da política urbana. Com efeito, a chave do êxito da intervenção na “cidade existente” parecia residir na capacidade de conjugar diversos agentes e diversos níveis de atuação num processo que é eminentemente horizontal, no sentido da articulação de responsabilidade, ou transversal, se entendido na contribuição dos saberes. Sobre um mesmo território, aglutinados num mesmo programa, deveriam registrar-se medidas tão diferentes como a concessão de licenças de obras, aquisição de terrenos livres, a regulação do tráfego, a concessão de crédito a proprietários e inquilinos para melhoria das residências, a implantação de novos equipamentos ou a reativação de outros existentes para diversos fins sociais, a plantação de árvores ou a reforma da iluminação pública, a organização local de cooperativas de consumo, de produção ou de habitação.

Essa programação e coordenação articulada (leia-se horizontal) das práticas sobre a cidade existente entendiam como necessário, ou pelo menos conveniente:

a) Um quadro de planeamento e programa,ao municipal que verifique com a coerência dos objectivos e da delimitação das áreas de intervenção e que permita avaliar os impactos prováveis dos outros programas municipais, como os de transportes, equipamentos importantes, conjuntos de habitação social ou loteamentos privados (...)

b) Um conhecimentos dos padrões de comportamento dos diversos agentes privados ou públicos com que se conta na operação (...) Pode dizer-se que este tipo de reconhecimento qualitativo só por acaso se retira dos estudos prévios que se fazem e pagam para os Planos e que não são orientados para a acção. Por outro

145

lado, a participação dos interessados é quase sempre pós-projecto, destinada a obter consenso tardio sobre as soluções, e raramente um processo de conhecimento/motivação conducente à organização dos mesmos interessados por forma a descobrir recursos e capcidades de auto-organização, que em geral se subestimam (...)

c) a criação de condições no município para conduzir o processo forma realista não só nas fases fáceis dos inquéritos e projectos, mas sobretudo na continuidade da gestão (...) Este enfoque opões-se à tendência culturalista de provocação pelo desenho quando a provocação salta por cima das condicionantes reais do problema dado (e, especialmente, dos recursos disponíveis), porque, no fundo, os próprios projectistas não acreditam que as coisas cheguem a realizar-se. Mais do que em qualquer outro campo, o desenho urbano, o desenho dos procesos e a gestão dos recursos têm de estar estritamente ligados e dae que não acreditemos numa intervenção eficaz baseada na encomenda de projectos se existir antes e depois, no terreno, um sólido gabinete de gestão das operações. 48

Estas são algumas das dificuldades ou conflitos de interesses que as equipas técnicas do município de Vila do Conde e os representantes políticos conheciam como condicionantes ao priorizar a intervenção sobre a “cidade existente”. Mas também lhes era evidente que tão falível como o abandono do existente à sua “sorte” seria, igualmente comprometedora, a política exclusiva de “renovação” (que em alguns meios acadêmicos parecia tornar-se uma ideologia) que, além dos aspetos patrimoniais e sociais, via na reabilitação uma arma contra o capitalismo imobiliário (ao mesmo tempo que abria um campo privilegiado para os investimentos especulativos) – que sobrevive à custa da “valorização” artificial da oferta e da transformação do solo rústico barato em urbano caro. Por outro lado, sabia-se que uma excessiva rigidez na formulação e aplicação de medidas condicionadoras induziria a tentativas de mudança por via “subterrânea”, acantonando a gestão municipal perante o “fato consumado” da demolição “acidental” ou de tentativas de contornar o “regulamento” por via do ato administrativo de exceção. Experiências recentes, como Guimarães e Évora, resultantes da avaliação das operações pioneiras, avisavam, como alternativa, que essas áreas de intervenção deveriam ser dotadas de mecanismos de atuação diferenciados onde se pudessem experimentar desde incentivos aos proprietários e aos inquilinos, às atuações diretas sobre o patrimônio municipal, procurando que o controle administrativo funcione supletivamente, e apenas quando a auto-regulação dos agentes locais conduza a distorções relevantes que legitimem a substituição ao mercado.

146

Assim as propostas para a constituição do “lugar histórico” não decorreu, em Vila do Conde, da adoção de um “Plano”, tipificado em lei, ou da adesão ingênua a uma vaga de estudos sobre os “centros históricos”, mas decorre de uma decisão concertada sobre a formação da imagem da cidade, no sentido alargado de intervenção, na qual a prioridade de atuação sobre a “cidade existente” e seus bairros antigos conduziria a um processo de qualificação dos modos de fazer cidade e, induziria, num âmbito territorial, à consolidação de práticas de organização do espaço urbanizado.

147

No documento MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (páginas 150-157)

Documentos relacionados