• Nenhum resultado encontrado

Motivações em competição

No documento UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (páginas 35-39)

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.2. Motivações em competição

A discussão das vertentes formalistas e funcionalistas e sua implicações dentro da teoria variacionista envolve necessariamente discutir a possibilidade de atuarem motivações em competição. Quem primeiramente utilizou essa noção foi Du Bois (1985) numa obra em que o autor discute amplamente a relação entre iconicidade e arbitrariedade. No formalismo do estruturalismo clássico, a iconicidade se revela uma anomalia que operaria contra a visão de que a linguagem é um sistema inteiramente auto-suficiente.

A postulação do princípio da arbitrariedade do signo linguístico feita por Saussure é extremamente importante por restringir a conexão do signo com os fatos positivos do mundo externo, tornando-o regulável por forças completamente internas e autônomas do próprio sistema linguístico em que reinam soberanas as relações opositivas e negativas entre os signos no âmbito de relações paradigmáticas.

Em função desse princípio de autonomia do sistema, Saussure separa nitidamente os fatos que devem compor a linguística interna dos fatos que compõem o que ele denomina de linguística externa; esta deveria incluir fenômenos dos tipos mais diversos que estão no escopo de áreas atuais como a Fonética Articulatória, a Etnografia da Linguagem, a Sociolinguística, a Geografia Linguística, a Linguística Antropológica e a Análise do Discurso. Como os princípios de organização que operam num domínio não afetam o outro, a langue seria, em princípio, independente das forças estruturadoras que se originam fora dela.

No arcabouço teórico do estruturalismo clássico, que Du Bois (1985) chama de “estruturalismo autônomo”, a iconicidade é claramente considerada uma anomalia por operar contra a visão de que a linguagem é um sistema completamente autônomo com o conceito de arbitrariedade no centro. Dessa forma, nenhum grau de iconicidade é permitido, a não ser os emanados das próprias relações internas ao sistema, nem mesmo os signos onomatopéicos,

que são vistos também como produtos das convenções que dirigem as relações arbitrárias no interior de cada sistema linguístico.

O estruturalismo autônomo estabelece uma forte distinção entre a linguística interna ou linguística propriamente dita, que é o estudo da língua, e a linguística externa, que abarca um conjunto diversificado de aspectos mais ligados à esfera da fala. Entende Du Bois (1985) que essa distinção é necessária, já que é nela que esse autor se apóia para mostrar que certos fenômenos podem ser simultaneamente imotivados a partir do ponto de vista sincrônico e motivados a partir de um ponto de vista metagramatical, que trata as gramáticas como sistemas adaptativos, na medida em que são tanto parcialmente autônomos, e daí sistemas, quanto parcialmente suscetíveis a pressões externas ao sistema, daí adaptativos. Segundo o autor, essa distinção é frutífera apenas se reconhecermos a existência de motivações em competição e o subsequente desenvolvimento de arcabouço teórico para, inicialmente, descrever e analisar a interação das motivações com contextos específicos e, posteriormente, para prever a resolução da competição entre elas.

Nessa perspectiva chamada de “estruturalismo autônomo” por Du Bois (1985), as únicas forças que organizam a linguagem são as internas ao sistema, consideradas por Saussure (1997) como forças que operam permanente e universalmente em todas as línguas, e nenhum tipo de motivação externa é capaz de atingir o sistema. O principal arcabouço teórico a herdar de Saussure esse forte comprometimento com a autonomia da gramática é a Gramática Gerativa em suas diversas versões.

Em contraste com essa perspectiva, o “funcionalismo transparente” assume o princípio de que fatores sintáticos aparentemente autônomos constituem, na realidade, os resultados transparentes dos objetivos funcionais do falante, de modo que não é necessário postular nenhum mecanismo sintático arbitrário para a língua. Em outros termos: as únicas forças que governam a “sintaxe” são as forças positivas da linguística externa, exemplificadas por Du

Bois como mecanismos de processamento de base biológica, intenções do falante etc. (DU BOIS, 1985).

Na medida em que sejam reconhecidas como teorias, o estruturalismo autônomo e o funcionalismo transparente devem ser entendidos como inerentemente opostos e aparentemente irreconciliáveis; entretanto, estudos recentes em gramaticalização têm posto ênfase nas relações entre discurso e gramática, e tentado integrar parcialmente esses dois enfoques.

A gramaticalização, conforme Du Bois (1985), é um processo de mudança de construções relativamente livres no discurso, cuja forma idiossincrática é motivada somente pelos objetivos do falante em função do evento de fala imediato, para construções relativamente fixas na gramática. Na visão de Du Bois (1985), um tratamento adequado do processo de gramaticalização numa teoria que preveja a relação entre discurso e gramática, terá que forçosamente reconhecer que, embora a gramaticalização esteja envolvida com influências dos fenômenos do discurso externos ao sistema, a própria noção de gramaticalização implica que essas influências interagem com as da língua em si como um sistema gramatical. (DU BOIS, 1985, p. 347).

Um pré-requisito para o enfoque da variação multidimensional de categorias linguísticas, como a marcação de pluralidade, é o princípio de, que nesse processo, interagem motivações em competição. Duas motivações que competem para o controle de um único paradigma linguístico, categoria ou morfema podem ser tanto ambas internas quanto ambas externas ou mesmo pode ocorrer que uma das motivações seja interna enquanto a outra seja externa.

Em primeiro lugar, para duas motivações competirem no mesmo âmbito funcional deve haver o que Du Bois (1985) chama de “bem limitado”, pelo qual elas competem. O

“bem limitado” é o domínio da forma linguística, sobre as quais forças motivadoras múltiplas não podem prevalecer completamente.

Segundo Du Bois, o grau de preparação de que dispomos para aferir o significado da teoria linguística se dá a partir de uma perspectiva que vê as gramáticas como sistemas adaptativos e que, portanto, reconhece, em primeiro lugar, a interação entre forças internas e externas. Quando as forças que se originam de fenômenos externos penetram no domínio da língua, elas encontram e interagem com as forças internas. Os fenômenos internos, reconhecidos como intrinsecamente linguísticos, devem ser, na perspectiva de Du Bois (1985), forças dinâmicas em vez de estruturas fixas, categorias ou entidades de qualquer tipo.

Quando se diz que a linguagem é adaptativa, na medida em que responde a pressões do contexto externo, deve-se de pronto rejeitar a teoria do estruturalismo autônomo, que é limitada na tentativa de explicar a estruturação da linguagem, por reconhecer apenas forças motivadoras internas. Quando se diz, por outro lado, que a linguagem é um sistema, e que, como tal, tem certo grau de continuidade de existência, deve-se rejeitar o arcabouço teórico do funcionalismo transparente, que falha em explicar o fato de que categorias gramaticalizadas são preservadas, por assim dizer, numa forma reificada mais ou menos congelada. Mais importante ainda que isso talvez, ele falha em construir apropriadamente o aspecto interno mais fundamental da gramática, o processo de gramaticalização em si mesmo. Como alternativa para as versões rigidamente ortodoxas do estruturalismo autônomo e do funcionalismo transparente, Du Bois (1985) propõe a busca de uma síntese entre os dois arcabouços, um novo marco teórico que seja capaz de lidar com a interação de forças externas e internas, assim como com a resolução sistemática da competição que as envolve. A tarefa metodológica inicial é construir um arcabouço para uma linguística real da fala, que seja capaz de incorporar as descobertas dos estudos modernos do discurso.

desta pesquisa, pois, em grande medida, foram essas razões teóricas que organizaram os procedimentos metodológicos para o processamento dos dados, ou seja, com base em uma metodologia que favorecesse o enfoque da marcação de pluralidade nas estruturas predicativas a partir de duas diferentes perspectivas, a formal e a funcional. A dimensão formal explica as motivações internas, enquanto a dimensão funcional, acrescida dos fatores extralinguísticos, explica as motivações externas. Nesse caso, o ‘bem limitado’, na visão de Du Bois (1985), é o domínio da variável em busca de resolução seja em direção da categorialidade mediante predomínio de uma das variantes, seja em direção de estabilidade mediante distribuição por diferentes comunidades sociais como indício de identidade cultural.

No documento UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (páginas 35-39)