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A busca à consulta médica no posto envolve, na maioria das vezes, múltiplos motivos, isto é, as pessoas consultam não apenas por uma doença aguda que tenha modificado ou alterado sua rotina, mas “aproveitam” para resolver vários problemas, sejam deles próprios ou de outros, como os da mãe, do filho, do marido, etc. E também tentam atualizar suas receitas, pedir exames para ver como anda sua saúde ou a evolução de sua doença.

Ao longo das entrevistas ficou difícil abordar apenas uma patologia ou um único motivo e com ele discorrer toda a entrevista. Algumas vezes os pacientes falavam de doenças mais presentes, que atrapalhavam no momento suas vidas. Em outros puxavam as doenças crônicas que possuem e discorriam sobre elas, suas origens e causas, e o que faziam com relação a elas. Muitas vezes outras doenças vinham à tona, especialmente as crônicas, quando se perguntava sobre as orientações médicas afora os medicamentos. Tais doenças crônicas parecem estar assimiladas pelas pessoas, fazendo parte de suas vidas, não mais como limitações recentes, mas com algo que deveriam aprender a conviver até a morte.

Dor de cabeça (enxaqueca), receita de remédios de uso contínuo, pedir requisição de exames, controle de doenças crônicas (diabetes e hipertensão), pré- natal, exames preventivos (Papanicolau), doença aguda (cistite), controle de outras doenças (nódulo mamário) e resultado de exames, constituem as principais demandas citadas pelos informantes deste estudo.

Aqui não se pode constituir um único Discurso do Sujeito Coletivo, pois não há um discurso homogêneo, mas vários discursos, ou seja, vários Discursos do Sujeito Coletivo. Como já comentado anteriormente, quando não se estabelece um discurso único pode-se pensar que exista um discurso muito complexo que necessite ser desdobrado ou que se apresentem discursos discordantes e pela questão metodológica não possam ser agrupados (Lefèvre & Lefèvre, 2000). Nesse

caso específico, quando se pergunta sobre o motivo da consulta tem-se que pensar nas múltiplas necessidades individuais que variam conforme a tolerância à dor, por exemplo, ou o que as pessoas entendem como saúde ou doença.

Os estratos sociais de baixa renda tende a sentir a doença como incapacidade para o trabalho (BOLTANSKI, 1984). Essa incapacidade pode não ser percebida se a pessoa estiver habituada a ela. Muitos indivíduos pesquisados não consideravam as dores como um problema em si, mas próprias de uma doença, desenvolvendo com o tempo uma tolerância maior à dor que outros indivíduos menos habituados às sensações do seu corpo. Assim, as pessoas de estratos sociais médios têm condições de perceber manifestações primárias do seu corpo podendo prevenir enfermidades mais graves, enquanto aquelas de estratos que detêm menor poder aquisitivo procuram ajuda somente quando a doença avança e incapacita.

A doença é, então, o resultado de múltiplos fatores que estão relacionados com os “modos de andar a vida” “num sentido amplo no qual o organismo biológico é visto como um todo muito maior do que a soma de seus órgãos e estruturas” (QUEIROZ, 1991, p. 117). Embora esse conceito seja do conhecimento dos profissionais que atuam no setor da saúde, a unidade de saúde de Jaguari não possui uma equipe multidisciplinar que trate o paciente no seu meio social, com ênfase na saúde coletiva, e que aborde questões não somente ligadas à saúde, mas sim que considere o paciente em seu complexo sistema biopsicossocial. É muito presente a organização medicocêntrica aqui. As enfermeiras até realizam coleta de exames preventivos, mas alguns ginecologistas da unidade informam a seus pacientes que não acreditam na fidedignidade desses dados e orientam-nas a realizarem tais procedimentos somente com profissionais médicos, segundo informações obtidas na sala de espera. Mas os médicos também reclamam da demanda excessiva e não dão conta de resolverem os problemas apresentados tanto pelos pacientes ou pelo sistema de saúde vigente.

Com relação à busca de ajuda psicológica, a demanda também é excessiva e a unidade possuía apenas um profissional no momento da pesquisa, que não conseguia dar conta da procura. Alguns médicos também não acreditam que tal profissional possa resolver os problemas dos pacientes, enquanto outros fazem questão de encaminhar seus pacientes a esse profissional, porém, sem deixar de

prescrever medicações psicotrópicas. Não há psiquiatra na rede municipal, sendo a maioria dos médicos clínicos gerais, que tratam os casos específicos, e encaminham os mais graves aos hospitais de referência em Santa Maria ou Lajeado.

A consulta médica também aparece nesta pesquisa como uma rotina, um evento que faz parte da vida das pessoas. Tanto é que os usuários da unidade de saúde analisada escolhem os dias (se são mais movimentos ou não) que querem ir consultar, pedir receitas, solicitar exames, ver como estão controlando suas doenças. Há inclusive um “senso comum” no município e na unidade de saúde de que quem consulta são sempre os mesmos. Para tanto, é necessário “estranhar” esses comentários, isto é, “romper com o senso comum”. A origem dessas falas parte, em sua maioria, daqueles que trabalham na unidade de saúde, médicos, pessoal da enfermagem e atendentes. Também alguns pacientes, que se dizem menos frequentadores da Unidade referem-se a essas pessoas que estão sempre no posto. Por ocasião dessa pesquisa pode-se observar realmente a frequência maior de alguns moradores do bairro mais populoso e mais carente de recursos do município. Na época em que eu fazia parte da equipe da saúde da Família e esse bairro era parte da área delimitada da atuação desse programa, foi constatada uma diminuição das consultas na unidade central de saúde, uma vez que o atendimento realizado pela equipe da saúde da família se fazia em um local distante do posto.

Essa prática recorrente de visita ao posto de saúde, não exclusiva do município estudado, pode suscitar algumas reflexões. Uma delas é realmente a orientação médica de que os pacientes consultem por qualquer problema de saúde e não tentem resolver em casa através de outros meios, que não os oficiais, quer dizer, por conta própria, se automedicando. Também há o caso da concessão de medicamentos. Conversas informais no posto de saúde citam casos em que as pessoas retiravam receitas iguais com vários médicos para manterem um estoque de medicamentos para não ficarem sem, caso ocorresse uma falta dessas medicações na unidade22. A unidade de saúde tenta, com algum sucesso, informatizar esse controle de retirada por paciente de medicações, mas o controle

22 A aquisição de medicamentos pela Unidade de Saúde se dá normalmente por duas formas.

Uma delas é que o Ministério da Saúde repassa os medicamentos considerados essenciais. Relatos há que às vezes os atrasos são muito comuns nesse repasse. Outra forma de aquisição é a compra realizada diretamente pela Prefeitura Municipal, através de licitações. Como esse processo demanda tempo e procedimentos legais, às vezes ocorre demora na aquisição da medicação e alguns pacientes relatam que falta medicação no posto. Outra causa para a demora na compra das medicações é relatada quando da troca de governos, tanto na esfera municipal, estadual ou federal.

total ainda não foi obtido. O controle deveria se dar pelos médicos que manteriam fichas atualizadas dos pacientes e nelas colocariam as datas das últimas receitas. Mas, muitos profissionais não atualizam essas fichas e agora o controle está se fazendo por fichas de pacientes que constam na farmácia da unidade de saúde.

Outra reflexão sobre essa prática de visitas frequentes de algumas pessoas ao posto de saúde pode ser pensada a partir do que se entende por saúde e por doença. Para Canguilhem (apud Caponi, 2003) ao falar-se de “saúde deficiente, estamos falando da restrição da margem de segurança, da limitação do poder de tolerância e da compensação às agressões do meio ambiente” (p. 61). Isso nos ajuda a compreender porque a resistência à dor, a busca por auxílio médico e o entendimento do que é considerado saúde e doença varia de indivíduo a indivíduo, dependendo tanto de suas características físicas quanto do ambiente social no qual encontram-se inseridos.