• Nenhum resultado encontrado

Motivo, contextos

No documento Diários visuais sonoros (páginas 62-65)

3 O DIÁRIO COMO INSTRUMENTO DE EMPODERAMENTO DAS

3.1 Motivo, contextos

Você pode aguentar qualquer coisa, desde que a ponha no papel. (Louise Bourgeois)

O caráter empoderador do diário, embora pareça uma novidade insólita para alguns, é um assunto abordado no século XX pelo crítico literário francês Phillipe Lejeune, um dos poucos e mais comprometidos autores que se dedica aos estudos sobre o tema da autobiografia.

Em 1995, Lejeune publica o artigo “Diários de garotas francesas no século XIX:

Constituição e transgressão de um gênero literário”

,

onde o autor analisa tais diários

apontando a inversão da função da escrita, que torna-se por necessidade um instrumento de emancipação e contestação. A pesquisa do gênero pelo autor deu origem ao livro Le Moi des Demoiselles, ainda sem tradução para o português, no qual ele reconcilia diário e criação.

Por que a produção diarista feminina foi tão pouco estudada? Esta é uma questão complexa, que não cabe aqui aprofundar, entretanto, na seguinte afirmação Lejeune nos dá alguma pista:

Tudo começou após a leitura de alguns diários manuscritos de uma jovem garota, Clair Pic, que vivia próximo a Lyon por volta de 1860. Fiquei fascinado pelo texto: aqui estava uma menina inteligente e sensível, aprisionada à uma criação religiosa rígida, tentando se expressar, dizer “eu”, em quatro cadernos grossos que, juntos somam mais de mil páginas. O diário foi interrompido um pouco antes de seu casamento (...) pus-me a imaginar se tal documento seria o único do tipo: centenas de outros como ele podiam estar esquecidos em sótãos e armários pela França. (LEJEUNE, P. 1996, p.100)

63

Podemos deduzir que se algo conteve por tanto tempo tal pesquisa, isto certamente se relaciona com os poderes hegemônicos, reconhecidos nas instituições religiosas, na ciência, na filosofia e na arte.

O autor se depara com a realidade de que, no século XX, os diários eram dados geralmente pelas mães ou professoras às adolescentes, e estas recebiam também um modelo de diário a ser seguido, ao que o diário é mantido até os 15

anos, momentos antes do casamento. Lejeune então constata: “O diário é

antiinstitucional. Através dele busca-se a identidade num movimento contra os pais e a escola”. (LEJEUNE, 1995, p.19).

Seguindo adiante nos deparamos com suas constatações sobre a forma dos manuscritos:

Os diários manuscritos não permitem uma leitura rápida. É impossível folhear o texto ou antecipar a página seguinte. Caligrafias grandes, inclinadas, letras maiúsculas enfeitadas e a cor muito clara da tinta desbotada impedem uma leitura fácil. Essa lentidão é, no entanto, uma vantagem. O tempo que necessito para ler o diário é também o tempo que levo para entendê-lo. Ele permite mais empatia. (LEJEUNE, 1995, p.102)

Curioso observar como a estética dos diários, mesmo que siga um modelo dado pela mãe ou professora, revela particularidades, singularidades de cada mulher e o momento da vida em que é escrito. Eu mesma me recordo de um momento da minha adolescência em que minha caligrafia era quase ilegível e eu tinha dificuldade de escrever nas provas da escola, pois rasurar ou ser ilegível era determinante para uma possível reprovação, junto com as implicações disto. A tradição que exclui as diferenças não estancou no século XXI.

Na sua observação dos diários de jovens francesas, Lejeune destaca algumas características que se apresentam tanto na escrita quanto na visualidade. São lacunas, repetições, o implícito (dados biográficos ou sociais não são dados necessariamente)...

Assuntos relacionados ao corpo e à sexualidade são evitados nos diários analisados, o que é muito curioso, pois trata-se de uma forte autocensura ainda que numa escrita de si e para si, sem pretensões de exposição.

Sabemos que a história da humanidade foi escrita por homens. Em todas as áreas do conhecimento isto é verificado. Nas artes, as produções de mulheres por muito tempo ficaram na invisibilidade e esquecimento, em conformidade com uma

64

norma do silêncio. Os bons modos ditados às mulheres pelo antigo paradigma social, se tratam de um conjunto de repressões; um perverso silenciamento e clausura por tanto tempo naturalizados. As consequências disso são desastrosas, resultando numa sociedade dividida, incompleta e violenta.

Mesmo depois das transformações sociais em torno da questão da emancipação da mulher e o aflorar dos debates sobre diferenças de gênero, ainda verificamos de forma ostensiva em nosso cotidiano uma estrutura patriarcal dominante e opressora, porque milenar e arraigada. É, portanto necessária a conscientização da opressão, que por ser naturalizada, quase sempre passa despercebida num cotidiano cada vez mais vertiginoso.

Entretanto, podemos encontrar algumas mulheres na história que em seus diários lidaram com as interdições de forma a subvertê-las, expressando neste espaço suas vivências, situações de opressão, sexualidade, gênero; são posicionamentos políticos que ali muitas vezes se apresentam, conteúdos carregados de densidade e que mesmo reservados ao confinamento das páginas que nunca serão lidas, urgem ser expressos como instrumento de autoconhecimento e resistência ao apagamento social e histórico.

É interessante observar que diário, como qualquer outra, é uma palavra carregada histórica e culturalmente. Lejeune aponta para o fato de que é comum o tom de desprezo das pessoas em geral em relação a este objeto. Haveria um preconceito generalizado de que esta seria uma atividade de lazer e trivial, como o bordado, além de ser um instrumento pessoal onde uma pessoa simplesmente fala de si, ou seja, tudo que o outro não gostaria de saber. Mas é justamente nisso que reside a potência de tal instrumento. Será que não é o momento de, ultrapassando o risco do narcisismo que rege nossa época, olhar para o outro? Para a outra? E olhando para a outra exercitar o desprendimento dos velhos preconceitos e julgamentos?

Ao que parece, atravessar a confissão e o narcisismo implica um reconhecimento dos processos de esvaziamento do sujeito que se nos impõe a sociedade através de mecanismos da cultura de massa, todos orquestrados pelo

bem da produção e do consumo exacerbados – consumismo não só material, mas

também de ideias. Seria preciso desvendar as camadas de função a que o diário, uma prática antiga, teria sido submetido ao longo da história.

65

Pelo que podemos notar, o diário se insinua como um instrumento estratégico para cada período histórico, e incorpora seu espírito, tal como a Arte. É uma prática que não se situa como literatura nem como arte, estando numa zona de indefinição, não captável, sendo objeto da própria vida, de uso cotidiano, dependente da experiência, mesmo que seja uma experiência do nada.

Diante deste panorama, a literatura e as artes visuais se encontram neste objeto, o diário, e aqui parecem convergir no que Roland Barthes chamou de “o grau zero da escritura”.

No documento Diários visuais sonoros (páginas 62-65)