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Noções conceituais de diário

No documento Diários visuais sonoros (páginas 32-34)

No presente capítulo, serão trazidos alguns conceitos norteadores relacionados ao campo da escrita, da arte e do vídeo. Considerando importante observar as possíveis noções do que vem a ser diário para o desenvolvimento desta pesquisa,

nos remetemos a sua definição no dicionário Aurélio. Em seguida, nos remetemos

aos conceitos elucidados pelo filósofo francês Michel Foucault, de onde faremos uma breve contextualização histórica dos diários íntimos para adentrar a noção de campo expandido trazida por Rosalind Krauss e a proposição de diferentes meios enquanto possibilidades para o diário, dialogando com o multiartista Dick Higgins, sobre o campo intermídia.

Para que possamos inserir o diário num contexto mais abrangente formal e conceitualmente, faremos um traçado histórico da escrita enquanto tecnologia em convergência com as linguagens artísticas e nos lançaremos no território da experiência do cotidiano, onde o conceito proposto de diário intermídia irá se fundamentar.

(di.á.ri:o)

adj.

1. Que se faz ou sucede todos os dias; cotidiano.

sm.

2. Relação do que se faz ou sucede em cada dia. 3. Registro dessa relação.

4. Jornal.

5. Caderno ou similar em que se registram os acontecimentos diários.1

A prática da escrita remonta aos gregos, como parte de um conjunto de práticas para o cuidado de si. Por cuidado de si, ou epiméleia heautoû, compreende- se “uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento” (FOUCAULT, 2010, p.12); é converter o olhar para si mesmo. Esta noção, muito importante na Antiguidade, envolve um conjunto de ações, exercícios de purificação e transformação do sujeito. Sócrates já ressaltava a importância do cuidado de si para se ter acesso à verdade, quando incitava os cidadãos atenienses a se ocuparem consigo mesmos. Daí o famoso preceito do oráculo de Delfos,

1 FERREIRA, A. B. H. Mini Aurélio: o dicionário da Língua Portuguesa. 6ª. ed. rev. e atualizada.

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“Conhece-te a ti mesmo”, que aponta para um autoconhecimento, sem o qual descoberta alguma teria outro efeito senão o da própria descoberta. Eles opunham um modo de saber distanciado a um modo de saber relacional, onde o conhecimento adivinha da convivência.

Em grego, a palavra epiméleia se aproxima do substantivo meléte e do verbo meletân, que quer dizer exercício e meditação. Aqui meditação possui uma conotação diferente da que hoje em dia estamos habituados, e está associada ao exercício do pensamento. Consiste da apropriação de um pensamento, de tal modo que lhe pareça seu; é estar em relação de identificação com a coisa na qual se pensa.

Ademais, facilmente compreendemos que, sendo a leitura assim concebida como exercício, experiência, e não havendo leitura senão para meditar, a leitura seja imediatamente ligada à escrita. Daí um fenômeno de cultura e de sociedade seguramente importante na época de que lhes falo: o lugar relevante [aí] assumido pela escrita, a escrita de certo modo pessoal e individual. (FOUCAULT, 2010, p.320)

Observamos aqui a importância da escrita pessoal e individual para o pensamento grego, helenístico e romano, e que mais tarde terá papel importante na espiritualidade cristã com os Monastikós, ou, os escritos feitos por monges.

De acordo com Foucault (2010), a escrita assume dois diferentes formatos principais, relativos à sua função e contexto. São eles Hypomnémata e monastikós.

O primeiro trata-se de anotações de lembranças, pelas quais podemos nos remeter no exercício da memória (FOUCAULT, 2010, p.322). “Mas pode ainda designar notas e reflexões pessoais, tomadas no dia a dia, sem que se trate necessariamente de citações” (cf. P. Hadot, La Citadelle intérieure, op. Cit., pp.38 e 45-9 apud FOUCAULT, 2010, p.330).

É no século XVI, na Europa, que esses modos de escrita irão se renovar na forma de diário íntimo, diário de bordo, diário de bordo da existência, e também [de] correspondência (FOUCAULT, 2010). E neste momento a autobiografia ocupará um lugar importante. Embora essa prática ressurja no seio do cristianismo como Monastikós, atrelada a certa obrigatoriedade do dizer-verdadeiro sobre si e tenha um caráter confessional - e disso o pensamento na Antiguidade grega seja contrário - será um momento importante na história da subjetividade ocidental.

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Se os hypomnémata ainda não são narrativas de si, é nos monastikós que a escrita pessoal se desenvolverá no sentido mais íntimo, confessional e narrativo na forma de diários íntimos. Posteriormente, será observada uma hibridização dessas duas formas.

Surgindo em meio ao ambiente renascentista, no século XVI, o diário íntimo desenvolve-se como fruto de um contexto burguês, onde a esfera do privado ganha um contorno mais relevante, definindo sua cultura agora a partir de uma perspectiva mais individualista.

É na Modernidade, século XVIII e XIX, que a subjetividade se estabelecerá no reduto da esfera privada. Com a clara separação entre a vida pública e a vida privada nesse período, o interesse pela escrita de si aumenta entre a classe burguesa. A noção do que é adequado à exposição pública ou não influencia diretamente a necessidade de criação de um dispositivo de autoexpressão do universo íntimo.

Esse tipo de escrita desenvolve-se em paralelo a um contexto de repressão da sexualidade, assunto que será abordado no capítulo 4 desta dissertação, onde será aprofundada a questão do lugar de fala da mulher nos diários íntimos.

O diário desenvolve-se ao longo da história como um espaço ambíguo. Ao mesmo tempo em que se apresenta como confessionário e confinamento assume também um caráter libertador e curativo. Isto se evidencia nos diários de artistas, que claramente se apresentam como instrumentos de criação e resistência, os quais mais à frente serão abordados.

No documento Diários visuais sonoros (páginas 32-34)