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Capítulo II A Reforma do Direito da União Europeia dos Contratos Públicos (2014)

I) Motivos sociais de exclusão obrigatória

As mais recentes diretivas da contratação pública colocam, pela primeira vez, dois motivos de natureza social entre os de exclusão obrigatória.

Com efeito, ao abrigo da alínea d) do n.º1 do artigo 57º da Diretiva-clássica, do n.º1 do artigo 80º da Diretiva-setores especiais e da alínea f) do nº4 do artigo 38º da Diretiva-concessões, as entidades adjudicantes devem excluir dos procedimentos de contratação pública e de concessão operadores económicos que tenham sido condenados por decisão transitada em julgado por

trabalho infantil e outras formas de tráfico de seres humanos, tal como definidos no artigo 2º da Diretiva 2011/36/UE.107

Entre essas outras formas de tráfico de seres humanos, são abrangidos o recrutamento, transporte, guarida ou acolhimento de pessoas, incluindo a troca ou a transferência do controlo sobre elas exercido, através do recurso a ameaças ou à força ou a outras formas de coação, rapto, fraude, ardil, abuso de autoridade ou de uma posição de vulnerabilidade, ou da oferta ou obtenção de pagamentos ou benefícios a fim de conseguir o consentimento de uma pessoa sobre outra para efeitos de exploração.

A obrigação de excluir operadores económicos à luz deste fundamento aplica-se também caso as pessoas condenadas por decisão transitada em julgado sejam membros dos órgãos administrativos, de direção ou de supervisão desses operadores económicos ou tenham poderes de representação, decisão ou controlo nesses órgãos.

Além deste, o outro motivo excludente obrigatório de cariz social encontra-se previsto no n.º2 do artigo 57º da Diretiva 2014/24/UE, no n.º1 do artigo 80º da Diretiva 2014/25/UE e, no âmbito dos procedimentos de adjudicação de concessões, no n.º5 do artigo 38º da Diretiva 2014/23/UE. Os operadores económicos são excluídos dos procedimentos de contração caso as entidades adjudicantes tomem conhecimento de que aqueles não cumpriram as respetivas obrigações em matéria de pagamento de impostos ou de contribuições para a segurança social e se tal tiver sido determinado por decisão judicial ou administrativa transitada em julgado e com efeito vinculativo de acordo com as disposições legais dos países em que se encontrem estabelecidos ou com as dos Estados-Membros das entidades adjudicantes.

Lamentamos que o legislador a União não tenha estendido, nesta sede, a obrigação de excluir os operadores económicos aos casos em que as pessoas condenadas, nos termos referidos, fossem membros dos órgãos administrativos, de direção ou de supervisão desses operadores económicos ou tivessem poderes de representação, decisão ou controlo nesses órgãos. Conforme sublinha ALBERT SANCHEZ GRAELLS, quando a falta de pagamento fosse relativa à atividade dos operadores económicos, justificar-se-ia tal aplicabilidade, mesmo não tendo sido as pessoas coletivas o destinatário direto das aludidas decisões judiciais ou administrativas determinantes do incumprimento das obrigações em matéria de pagamento de impostos ou de contribuições para

107 Cf. Diretiva 2011/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres

a segurança social.108 Com efeito, nessas circunstâncias, o juízo de desconfiança deveria, a nosso

ver, ser extensível aos operadores económicos em causa, porque atinente à respetiva atividade. Podem, contudo, existir derrogações às duas exclusões obrigatórias que referimos, por força do n.º3 do artigo 57º da Diretiva-clássica, do n.º1 do artigo 80º da Diretiva-setores especiais e do n.º 6 do artigo 38º da Diretiva-concessões.

Destarte, os Estados-Membros podem prevê-las, nas respetivas leis nacionais, a título excecional, por razões imperiosas de interesse público, como sejam a saúde pública ou a proteção do ambiente. A esse elenco ilustrativo, e em atenção ao artigo 36º do TFUE (que, muito embora referente a justificações às restrições quantitativas à importação e à exportação de mercadorias entre Estados-Membros, densifica o conceito de ‘razões de interesse público’ em termos que nos podem ser úteis), parece-nos teoricamente possível aditar-lhe razões de moralidade pública, ordem pública e segurança pública; proteção do património nacional e do valor artístico, histórico ou arqueológico; ou de proteção da propriedade industrial ou comercial.

Cremos que o signo restritivo a impor às derrogações acolhidas deve afigurar-se particularmente premente, nas leis nacionais, quanto à exclusão obrigatória decorrente de condenação por decisão transitada em julgado com fundamento em trabalho infantil e outras formas de tráfico de seres humanos, em consideração à gravidade que é inerente a estes crimes e que merece, por conseguinte, um cuidado agudizado.

Em adição, as legislações nacionais dos Estados-Membros podem, ainda, prever especificamente uma derrogação à exclusão obrigatória relativa ao incumprimento de obrigações em matéria de pagamento de impostos ou de contribuições para a segurança social (incumprimento determinado por decisão administrativa ou judicial transitada em julgado e com efeito vinculativo), caso a exclusão se afigure manifestamente desproporcionada, nomeadamente quando se trate apenas de pequenos montantes de impostos ou contribuições para a segurança social que não foram pagos; ou quando os operadores económicos foram informados dos montantes exatos das suas dívidas (por incumprimento das suas obrigações de pagamento de impostos ou de contribuições para a segurança social) num momento em que não podiam regularizar essas situações, antes de expirado o prazo de apresentação dos pedidos de participação ou, nos concursos públicos, o prazo de apresentação das propostas.

108 Cf. ALBERT SANCHEZ GRAELLS, “Exclusion, Qualitative Selection and Short-listing” in FRANÇOIS LICHÈRE, ROBERTO CARANTA e STEEN

Em virtude da ausência de densificação, nas diretivas, do que constituiriam “pequenos montantes de impostos ou de contribuições para a segurança social”, esta matéria pode revelar- se problemática e geradora de incongruências e de disparidades nas leis nacionais dos Estados- Membros. De qualquer forma, parece-nos que, nas legislações nacionais estabelecedoras dessa derrogação, tal não deve conhecer moldes sobremaneira extensivos que, escudados na tutela do princípio da proporcionalidade, comprometam o caráter excecional da derrogação e, por conseguinte, a própria eficácia da exclusão obrigatória.

No acórdão Libor109, ainda no contexto da vigência das diretivas de 2004, o TJUE pronunciou-

se no sentido da não desconformidade com o Direito da União de uma legislação nacional que obrigava a entidade adjudicante a excluir do procedimento de adjudicação de um contrato de empreitada de obras públicas um proponente responsável por uma infração em matéria de pagamento de contribuições para a segurança social se a diferença entre os montantes devidos e os montantes pagos fosse superior, simultaneamente, a 100 euros e a 5% dos montantes devidos.

Todavia, conforme sublinha SYLVIA DE MARS, um único exemplo de um “montante não menor” (non-minor amount), ao abrigo das diretivas de 2004, não olvidaria a jurisprudência do Tribunal de Justiça que respeitasse a um “pequeno montante” (minor amount) nesta matéria, à luz das diretivas de 2014.110

Sem prejuízo do que foi dito, não nos iludamos: a densificação escrupulosa do que se entenderia por “pequenos montantes de impostos ou de contribuições para a segurança social” neste domínio seria sempre quase impossível ao Tribunal de Justiça, a menos que estabelecesse judicialmente um limiar de minimis para o motivo de exclusão.111

Resta-nos, ainda, ressalvar que esta última exclusão obrigatória não subsiste quando os operadores económicos tiverem cumprido as suas obrigações, pagando ou celebrando acordos vinculativos com vista a pagar os impostos ou contribuições para a segurança social em atraso, incluindo, se for o caso disso, os eventuais juros acrescidos ou multas. Assim dispõem o nº2 do artigo 57º in fine da Diretiva-clássica, o n.º1 do artigo 80º da Diretiva-setores especiais e o n.º5 do artigo 38º in fine da Diretiva-concessões.

109 Cf. Acórdão do TJUE Consorzio Stabile Libor Lavori Pubblici, de 10 de julho de 2014, proc. C-358/12.

110 Cf. SYLVIA DE MARS, “Exclusion and self-cleaning in Article 57: discretion at the expense of clarity and trade?” in GRITH SKOVGAARD ØLYKKE e

ALBERT SANCHEZ GRAELLS, Reformation or Deformation of the EU Public Procurement Rules, Edward Elgar, 2016, p. 271.

111 Cf. ALBERT SANCHEZ GRAELLS, “Exclusion, Qualitative Selection and Short-listing” in FRANÇOIS LICHÈRE, ROBERTO CARANTA e STEEN