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Um novo contexto para a contratação pública socialmente responsável

Capítulo II A Reforma do Direito da União Europeia dos Contratos Públicos (2014)

1. Um novo contexto para a contratação pública socialmente responsável

consistência), preceitos vocacionados para a viabilização da contratação pública socialmente responsável. Sem prejuízo de um conjunto de fragilidades auscultadas, a generalidade das abordagens transpositivas dos Estados-Membros não se pautou por um completo insucesso nesse sentido, conforme vimos.

Subsequentemente registar-se-iam importantes desenvolvimentos na matéria. Em 2010, o “Relatório Monti”53 assinalou que reforçar as possibilidades de integração de objetivos de políticas

sociais deveria constituir um dos elementos centrais a visar em reforma futura do Direito da União Europeia dos Contratos Públicos. Tal revelar-se-ia vital no âmbito da própria “Estratégia Europa 2020”.

Com efeito, no seio da Comunicação “Europa 2020 estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo”54, a Comissão Europeia configurara a contratação pública como

um instrumento amplamente propulsor do paradigma de sustentabilidade preconizado pela União Europeia. Nesse sentido, cumpriria harmonizar com o máximo escrúpulo os vetores sociais com os económicos e os ambientais, dado que, em conjunto, determinariam o curso do desenvolvimento sustentável, na qualidade de seus três pilares.

Por conseguinte, em janeiro de 2011, a Comissão desencadeou o processo reformador do Direito da União Europeia da Contratação Pública, mediante o “Livro Verde sobre a modernização da política dos contratos públicos da UE – para um mercado dos contratos públicos mais eficiente na Europa” (“Livro Verde 2011”),55 documento gerador de um processo de consulta pública que

obteve uma resposta significativa por parte dos parceiros sociais, dos grupos de reflexão e das Organizações Não Governamentais (ONGs).

Comprometida a avançar com propostas legislativas «o mais tardar no início de 2012, com o objetivo de simplificar e atualizar a legislação europeia aplicável aos contratos públicos, a fim de

53 Cf. “Relatório Monti”, Uma nova estratégia para a o mercado único ao serviço da economia e da sociedade, Relatório para o Presidente da

Comissão Europeia Durão Barroso, por Mário Monti, 09.05.2010.

54 Cf. Comissão Europeia, “Europa 2020 estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo”, 03.03.2010., COM (2010) 2020 final. 55 Cf. Comissão Europeia, “Livro Verde sobre a modernização da política dos contratos públicos da UE – para um mercado dos contratos públicos

(…) permitir uma melhor utilização deste tipo de contratos para apoiar outras políticas», a Comissão Europeia enquadrou, no contexto deste “Livro Verde 2011”, as preocupações de índole social como desideratos a serem atendidos, não sob uma ótica meramente viabilizadora, mas, acima de tudo, de incentivo, rumo a um paradigma de contratação pública holisticamente apto a enfrentar os desafios colocados pelo imperativo de uma gestão cada vez mais eficiente dos fundos públicos.56

A permeabilidade à dimensão social continuaria a não poder traduzir-se na assunção de encargos desproporcionados ou bulir com a concorrência nos mercados dos contratos públicos, mas cremos que se assistia a uma mitigação do espírito subalternizador com que aquela era acolhida. Embora nunca tenhamos julgado adequada uma concetualização das políticas sociais como secundárias na contratação pública (conforme disséramos), não nos parece negável que as mesmas não constituíam uma das prioridades desta disciplina jurídica, não obstante toda a progressiva atinência de que eram objeto. Esse cenário, com o processo de reforma do Direito da União Europeia dos Contratos Públicos, começou a apresentar sinais de alguma inversão.

A tónica de perceção das variáveis sociais passava a residir, mais do que nunca, num alcance de complementaridade, ao invés de acessoriedade, face ao foco tradicional da contratação pública (a salvaguarda da concorrência, da transparência, e da igualdade no mercado da União Europeia dos contratos públicos).57

Em agudização dessa visão, no “Livro Verde”, a Comissão propunha, mesmo, que, além das regras procedimentais («como comprar»), as Diretivas fossem mais ambiciosas e impusessem requisitos obrigatórios às entidades adjudicantes ou previssem incentivos para orientar as suas decisões sobre os bens ou serviços a contratar («o que comprar»), o que colheria particular pertinência na inclusão dos cidadãos portadores de deficiência.

Ao “Livro Verde” seguiram-se, em dezembro de 2011, três propostas de Diretivas no domínio dos contratos públicos, apresentadas com o intuito de reformar a legislação da União Europeia na matéria. Uma das prioridades ínsitas àquelas propostas era a de alargar as possibilidades de utilização da contratação pública em abono de objetivos sociais.58

Destarte, após longas negociações entre o Parlamento Europeu e o Conselho (o qual, entre outros, revelava algum ceticismo quanto a um acolhimento extensivo da contratação pública social), o pacote legislativo destinado a modernizar e a sociorresponsabilizar o Direito da União

56 Em sentido semelhante, cf. MARIA JOÃO ESTORNINHO, Curso de Direito…, p. 417-419.

57 Cf. ROBERTO CARANTA, “Sustainable Procurement” in MARTIN TRYBUS, ROBERTO CARANTA e GUNILLA EDELSTAM, EU Public Contract Law…,

p. 166.

Europeia da Contratação Pública foi adotado a 26 de fevereiro de 2014. Escrutinar-lhe-emos a substância no ponto seguinte.

De qualquer modo, afigura-se-nos oportuno assinalar que reformar o Direito da União Europeia dos Contratos Públicos em prol de desideratos de bem-estar social não se esgota numa opção política; acima de tudo, importa enquadrá-lo enquanto desígnio que não se encontra a descoberto do Direito da União Europeia originário.59

Com efeito, o artigo 2º do Tratado da União Europeia dispõe que a União se funda, entre outros valores, no respeito pela dignidade humana, na igualdade e na observância dos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Por conseguinte, esses valores são comuns aos Estados-Membros numa sociedade em que a solidariedade impera. A União Europeia assume um pendor marcadamente social.60

Além disso, ao abrigo do nº3 do artigo 3º do Tratado da União Europeia, a promoção da justiça e da coesão sociais, aliada à luta contra a exclusão e as discriminações, assume centralidade na estruturação de uma economia social de mercado. Por conseguinte, entendemos que o estabelecimento do mercado interno, tal-qual decorre do preceito em análise, não assenta em moldes meramente economicistas ou associais. Pelo contrário, o pleno emprego, o progresso e o bem-estar sociais não são desarticulados do conjunto dos desideratos visados por um mercado que se ambiciona altamente competitivo. Numa palavra: modelo económico e valores sociais apresentam interconexão e interdependência no Direito da União Europeia, não se revelando a matriz de qualquer um deles passível de alheamento em relação ao outro.

Por seu turno, encontram-se consagrados importantes princípios nesta matéria no seio do Tratado de Funcionamento da União Europeia. O princípio da integração das políticas sociais (artigo 9º) implica que a União, na definição e execução das suas políticas e ações, atente às exigências relacionadas com a promoção de um nível elevado de emprego, a garantia de uma proteção social adequada, a luta contra a exclusão social e um nível elevado de educação, formação e proteção da saúde humana. O princípio da promoção da igualdade de género (artigo 8º) convoca a eliminação das desigualdades nesse domínio na esfera de todas as políticas da União. Afigura-se-nos relevante assinalar, ainda, que, nos termos do artigo 10º, a luta contra a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou

59 Cf. BEATE SJAFJELL e ANJA WIESBROCK, “Why should procurement be about sunstainability?” in BEATE SJAFJELL e ANJA WIESBROCK,

Sustainable Public Procurement under EU Law: new perspectives on the State as a Stakeholder (eds)., Cambridge, 2015, p. 4.

orientação sexual é, igualmente, visada na definição e execução das políticas e ações da União Europeia (principle of non-discrimination integration61).

Novamente a respeito da complementaridade entre os modelos económico e social da União Europeia, e se algum resquício de dúvida pudesse subsistir nesse sentido, cumpre-nos referir o princípio geral da coerência das políticas da União, constante do artigo 7º do Tratado de Funcionamento da União Europeia. A União deve assegurar consistência entre as suas diferentes políticas, com vista a um ponto ótimo de harmonia entre as económicas e as sociais (e ambientais), únicas coordenadas em que se torna alcançável o compromisso autoafirmativo duradouro de sustentabilidade e congruência que analisamos.

Do aludido conjunto de disposições, acrescido à consagração de um leque de direitos sociais na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia62, é-nos possível apurar que a União se

encontra adstrita à prossecução genérica de um modelo social (o modelo social da União Europeia), ainda que respeitando os dos Estados-Membros.63

Dito isto, é nosso firme entendimento que a contratação pública, domínio da máxima relevância jurídico-económica na União Europeia, não poderia furtar-se à extração das devidas consequências de se evidenciar também como instrumento propulsor do modelo social preconizado originariamente no Direito da União. A essa luz, afigura-se-nos que a reforma de 2014 das Diretivas da contratação pública, sob o signo (entre outras variáveis, mas para o que nos interessa) da responsabilidade social, colhe aprioristicamente o maior acerto enquanto seu reforço concretizador64, cujos méritos substantivos indagaremos.