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O movimento natural ou locomoção

Capítulo 3 – A teoria do movimento revista na Meteorológica

3.1 A natureza como princípio de movimento e repouso

3.1.2 O movimento natural ou locomoção

Aristóteles inicia o livro II da Física fazendo uma distinção entre aquilo que é natural, ou por natureza (φύσις), e o que é pela técnica (τέχνη). Natural é dito tudo aquilo que possui em si mesmo um princípio de movimento, seja com relação ao lugar, ou com relação ao crescimento ou diminuição, ou qualquer outra alteração. Contudo, poderíamos dizer que, mesmo os corpos que são através da técnica, possuem em si um princípio de movimento, uma cama de madeira, por exemplo, deixada ao relento tende a apodrecer. De fato, a questão, entretanto, é que a cama não possui esse princípio de mudança em si mesma, mas por ser feita a partir dos quatro elementos. Ou seja, a cama não apodrece por ser cama, mas por ser uma mistura dos quatro elementos, como expõe o próprio Aristóteles61:

Das coisas que existem algumas existem por natureza, algumas são por outras causas. Por natureza os animais e suas partes, as plantas e os corpos simples (terra, fogo, ar e água) – pois dizemos que esses e seus semelhantes existem por natureza. Todas as coisas mencionadas claramente diferem das coisas que não são constituídas por natureza. Pois cada uma delas tem em si um princípio de movimento e repouso (em relação ao lugar, ou ao crescimento, ou à diminuição ou em relação à alguma mudança). Por outro lado, cama e veste e qualquer coisa desse tipo, na medida em que recebem essas designações – i.e., na medida em que são produtos da técnica – não têm em si nenhum impulso à mudança. Mas, por acontecer de serem compostos de pedra e de terra ou de uma mistura dos dois, têm tal impulso e apenas nessa medida – o que parece indicar que a natureza é princípio ou causa de ser movido e estar em repouso e que isso pertence aos corpos primariamente, por si mesmos e não por acidente. (192b9 – 23)

Assim, os conceitos de natureza e movimento estão intimamente ligados. Além disso, vimos nos capítulos anteriores que os elementos são os constituintes últimos de tudo que existe no mundo, ou seja, tudo o que há na região terrestre ou é um dos quatro elementos, que chamaremos corpo simples, ou então, é constituído por uma mistura de elementos. Os corpos são, portanto, simples ou compostos de corpos simples.

Da mesma forma, o movimento também é simples ou composto e se, como apontamos anteriormente, tudo aquilo que é por natureza têm em si um princípio de movimento, sendo que o movimento simples deve naturalmente pertencer aos corpos simples e o movimento composto aos corpos compostos, como diz Aristóteles:

60 Nessa seção, sigo de perto os argumentos que Aristóteles apresenta nos capítulos 2 e 3 do livro I do de Caelo. 61 Uma descrição detalhada da relação sobre o movimento natural pode ser encontrada no artigo de Fátima Évora

Corpos são ou simples ou compostos de tais e por corpos simples digo aqueles que possuem um princípio de movimento em sua própria natureza, tais são o fogo, a terra e seus tipos e qualquer coisa semelhante a eles. Necessariamente, então, os movimentos devem ser simples ou de alguma forma compostos – simples no caso dos corpos simples e composto no caso dos corpos compostos – e o movimento é de acordo com o elemento preponderante (268b27 – 269a3)

Os corpos simples, ou os elementos, são fogo, ar, água e terra, e os movimentos simples são o para cima, o para baixo e o circular. Em suma, são dois movimentos, pois para cima e para baixo são espécies do movimento retilíneo. Como apontado em nossa discussão sobre o lugar natural, essas direções são absolutas, o para baixo não é para qualquer direção, mas sim em direção ao centro do mundo, o para cima é o movimento a partir do centro do mundo e o circular ao redor desse centro (cf. 208b11-25). Então, rigorosamente há dois movimentos simples: o linear e o circular, como diz Aristóteles “a linha reta e a circular são as únicas magnitudes geometricamente simples” (268b20). No caso dos corpos compostos, esses se movem de acordo com o elemento preponderante na mistura (cf. 269a4ff.), uma mistura, portanto, em que prevaleça a terra move-se naturalmente para baixo, e se prevalece o fogo, para cima. Assim, apresentamos o movimento natural dos quatro elementos, logo aquele que o corpo descreve quando não há nada que o impeça de se mover. Mas, todo movimento é natural ou contrário à natureza (cf. 255b30 - 256a5), embora, pela violência os corpos podem assumir quaisquer trajetórias, assim por exemplo, pela violência pode-se fazer a terra mover-se para cima (269a7ff.). De qualquer forma, o movimento que é contrário à natureza de um corpo é natural a outro como terra e fogo (269a34ff.).

A questão que resta, portanto, é: como pode-se explicar a existência do movimento circular? Pois tal movimento é visto na revolução dos céus. A primeira coisa é descobrir se esse é um movimento natural ou não. De fato, o movimento circular não pode ser nem natural, nem contranatural a nenhum dos elementos terrestres. Pois, se os quatro elementos terrestres se movem linearmente por sua própria natureza e, se temos que uma coisa simples tem um contrário simples, (269a10-15), os movimentos para cima e para baixo são contrários entre si. Para que se estabeleça a contrariedade entre dois movimentos é preciso que tanto tenham destinos contrários como também que todos os pontos de contrariedade sejam percorridos. Logo, se o movimento circular não é nem natural, nem contranatural a nenhum dos quatro elementos, então deve pertencer a um outro elemento de forma natural ou contranatural.

Se for contranatural, a pergunta é qual movimento lhe seria natural, não podemos assumir nesse caso que seja um movimento retilíneo, pois isso levaria à conclusão de que esse corpo seja um dos quatro elementos, o que já mostramos ser impossível. Resta, então, que o

movimento circular é natural a algum corpo simples diferente de tudo que encontramos cá na Terra. Como diz o próprio Aristóteles “está claro que há entre os corpos simples e primeiros algum que se move naturalmente em círculo, como faz o fogo para cima e a terra para baixo” (269a 31ff.). Esse elemento é a matéria de toda a região celeste e responsável por seu movimento circular. Ou seja, assumida a teoria do movimento natural de Aristóteles é evidente a necessidade de um quinto elemento preenchendo os céus.

Devemos investigar, pois, se há algum movimento que seja contrário ao circular. A primeira possibilidade é imaginar que os movimentos horário e anti-horário sejam contrários entre si. Imagine, então, um ponto A sobre um círculo e que a partir de A percorremos o círculo, ora no sentido horário, ora no sentido anti-horário, em ambos os casos, saímos e retornamos ao ponto A, logo esses movimentos não são contrários, pois não têm destinos contrários. A segunda possibilidade é imaginar dois pontos A e B sobre o círculo, esses pontos estando diametralmente opostos seriam destinos contrários. Contudo, se formos de A para B pelo semicírculo superior S temos que voltar de B para A pelo semicírculo inferior I, o que é óbvio, pois se formos e voltarmos pelo mesmo semicírculo não temos um movimento circular. Nesse caso, contudo, embora os destinos sejam contrários, não percorremos todos os pontos de contrariedade. Finalmente, existe um número ilimitado de círculos que passa pelos pontos A e B. Sendo assim, o movimento circular não admite contrariedade.

Assim, não admitindo contrariedade, Aristóteles considera que o movimento circular seja superior, sendo um movimento superior, também deve ser superior o corpo que, por natureza, se move circularmente. De fato, de acordo com Aristóteles, o círculo pertence à classe das coisas perfeitas. A reta, em contrapartida, não é perfeita porque, se infinita, não tem extremidades e, se finita, pode ser sempre prolongada. Portanto, estabelecemos quais são os movimentos naturais de cada um dos cinco elementos, como também que aquilo que se move em círculo pela natureza é distinto e superior.

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