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3   DEMOCRATIZAÇÃO E AMPLIAÇÃO DA POLÍTICA HABITACIONAL EM

3.1   Democratização e ampliação da política habitacional no Brasil 29

3.1.1   Movimento pela Reforma Urbana e a democratização da gestão da política

O Movimento Nacional pela Reforma Urbana foi um movimento social surgido no contexto de elaboração de emendas populares para o texto da Constituição de 1988, que conseguiu articular, através da plataforma de reforma urbana, diversos “movimentos e entidades populares, entidades sindicais, de defesa dos direitos humanos, de ensino e pesquisas urbanas, e (...) de assessoria aos movimentos populares” (SILVA, 1991, p. 2), com o objetivo de redigir e defender a emenda popular sobre a reforma urbana na Constituinte.

Reflexo das mudanças ocorridas no cenário político nacional a partir de meados dos anos de 1970 – que envolvem o afrouxamento da ditadura militar, a deterioração da qualidade de vida nas grandes cidades (principalmente para a população mais pobre) e o (re)surgimento de movimentos sociais urbanos na cena política nacional18 –, o MNRU conseguiu congregar atores políticos que reivindicavam até então questões tópicas – luta por creche, luta por transporte, luta

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Em geral associados a movimentos de luta popular pela melhoria das condições de vida nas cidades – movimentos por equipamentos coletivos, serviços públicos, moradia etc. –, os movimentos sociais urbanos também compreendem outros tipos de luta que não necessariamente estão conectadas com as reivindicações populares – como o movimento feminista, ecologista, antirracista etc. (CARDOSO, 1987).

por urbanização etc. – numa bandeira que visava um horizonte mais amplo de transformação social, a reforma urbana.

É relevante destacar, entretanto, que a criação do MNRU está intimamente relacionada à emergência da ideia de cidadania trazida por esses movimentos sociais que vieram a integrá-lo. Analisando o processo de surgimento e atuação dos movimentos sociais a partir da década de 1970, Vigevani sublinha a importância do (re)surgimento desses movimentos no cenário político e cultural do país, sobretudo, por causa de “seu papel como instrumento de inserção e ampliação no Brasil do conceito de cidadania” (VIGEVANI, 1989, p. 93). De acordo com o autor, os movimentos “conseguiram impor ao Estado, ou a alguns de seus segmentos e agentes, a necessidade de diálogo e até mesmo o reconhecimento de sua legitimidade e da necessidade de atendimento a suas reivindicações” (Op.cit., p. 95).

A ampliação do conceito de cidadania através da reivindicação por uma prática democrática da gestão das cidades talvez seja o grande diferencial do MNRU em relação às demandas de outros movimentos sociais do período, já que a consolidação da reforma urbana ultrapassa a garantia de acesso aos serviços urbanos básicos para toda a população. Para Silva, a reforma urbana pode ser “entendida enquanto uma nova ética social que assume, como valor básico, a politização da questão urbana através da crítica e denúncia do quadro de desigualdade social que marca o espaço urbano das cidades do país” (SILVA, 1991, p.7). Pode-se defini-la, portanto, como um projeto de futuro para as cidades brasileiras, que visa combater a segregação socioespacial e romper com os mecanismos geradores da desigualdade e da discriminação social dentro do espaço urbano.

Nesse sentido, a estratégia de luta pela reforma urbana não pode se privar da politização do conflito sobre a produção do espaço urbano, o que implica em refletir sobre dois pontos fundamentais ao menos: I) o cenário de segregação socioespacial das cidades brasileiras não é uma mera consequência da “falta de planejamento” urbano ou da “falta de investimento” em habitação e serviços urbanos; ele é, sobretudo, resultado de uma lógica capitalista de produção do espaço; II) a reversão desse quadro de exclusão socioespacial não pode ser feita sem a ampliação da cidadania e da democracia na gestão das cidades.

Afirmar que existe uma lógica capitalista de produção do espaço responsável pela “lógica da desordem” das grandes cidades brasileiras (CAMARGO, 1976) traz à tona alguns aspectos não mencionados anteriormente. Lefebvre defende que o capitalismo só pode ser mantido através de sua expansão no espaço, “transbordando dos lugares de seu nascimento, de seu crescimento, de sua potência: as unidades de produção, as empresas, as firmas internacionais e supranacionais” (LEFEBVRE, 2008, p.117). Esse transbordamento não implica apenas no

crescimento, ou migração, dos locais de produção para outros lugares; ele tanto diz respeito à transferência para a vida cotidiana da lógica das relações sociais vividas dentro das fábricas e empresas, como também se refere à lógica de produção e uso do espaço.

Nesse sentido, o espaço produzido dentro da lógica capitalista de produção envolve tanto a transformação em mercadoria de algo que é dado pela natureza – o meio, o lugar material da vida cotidiana –, como também a produção (ou não) de lugares novos a partir dessa base material comercializada, lugares esses que, por sua vez, também irão adquirir seu valor de troca no mercado. Pode-se, dessa forma, afirmar que no mercado imobiliário não é apenas comercializada a localização, a infraestrutura e as amenidades desses espaços, como também é produzida uma dinâmica que influi para a produção de espaços que sejam bem localizados, servidos com infraestrutura, que possuam amenidades etc.. De acordo com Lefebvre:

[...] Nesse plano, percebe-se que a burguesia (...) dispõe de um duplo poder sobre o espaço; primeiro pela propriedade do solo, que se generaliza por todo o espaço... Em segundo lugar, pela globalidade, a saber, o conhecimento, a estratégia, a ação do próprio Estado. Existem conflitos inevitáveis entre esses dois aspectos, e notadamente entre o aspecto abstrato (concebido ou conceitual, global e estratégico) e o espaço imediato, percebido, vivido, despedaçado e vendido. No plano institucional, essas contradições aparecem entre os planos gerais de ordenamento e os projetos parciais dos mercadores de espaço (LEFEBVRE, 2008, p. 57).

Argumentar, portanto, que a “desordem urbana” é “culpa” da ausência de planejamento ou de investimento nas cidades por parte do Estado, é negar que existem fatores sistemáticos que excluem uma parcela considerável da população do acesso à cidade formal. Esse argumento negligencia também o fato de que determinados atores políticos têm muito mais influência sobre as prioridades de investimento, planejamento e ação do Estado do que outros.

É fundamental para a reforma urbana, portanto, que o direito de propriedade dos imóveis não se sobreponha ao direito de viver na cidade com qualidade de vida – ou seja, com acesso à moradia digna; aos equipamentos públicos e serviços básicos de água, esgoto, energia elétrica, transportes; à preservação do patrimônio cultural e ambiental; e a espaços ricos e diversificados culturalmente. É crucial também que a cidadania e a democracia na gestão das cidades sejam ampliadas, de forma a incluir aqueles atores políticos que se encontram fora do jogo. Essa ampliação dá-se tanto através da criação de novos desenhos institucionais que aumentem o poder de decisão desses atores políticos excluídos, como da articulação de práticas dentro das políticas públicas capazes de compreender o outro como indivíduo, ou grupo, apto a escolher, julgar e participar da gestão da coisa pública (SILVA, 1991).

A iniciativa do MNRU foi fundamental para a aprovação de vários artigos relacionados à reforma urbana no capítulo de política urbana da Constituição Federal de 1988. Após essa primeira batalha, o movimento articulou-se em um fórum permanente de discussão e luta pela

reforma urbana, o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), que foi protagonista em várias outras conquistas para a política urbana brasileira:

(i) na elaboração da emenda constitucional de iniciativa popular em torno do capítulo de política urbana durante a Constituinte de 1987-1988; (ii) na discussão e aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, que regulamentou os instrumentos que definem a função social da cidade e da propriedade; (iii) na elaboração do Projeto de Lei de Iniciativa Popular, que criou o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que reuniu 1 milhão de assinaturas e foi sancionado pelo governo Lula, em 2005, depois de 10 anos de tramitação; (iv) na criação do Ministério das Cidades em 2003 (MARICATO; SANTOS JUNIOR, 2007, p.169).

Antes de lograr boa parte das transformações na política urbana nacional a partir da década de 2000, o MNRU/FNRU influenciou profundamente as mudanças nos arranjos institucionais de algumas prefeituras brasileiras a partir da década de 1990. Houve mudanças que visavam, principalmente, aliar a retomada do investimento em políticas sociais nesses municípios à participação da sociedade civil nos processos decisórios do mesmo.

Nesse sentido, Cardoso & Valle (2000) apontam uma grande diversidade de arranjos institucionais e de experiências participativas desenvolvidas por prefeituras brasileiras entre 1993-1996. Segundo os autores, as alterações mais substantivas foram verificadas nos municípios governados por partidos progressistas – notadamente nas gestões do PT –, que entendiam a participação como: a) um valor em si, pois era uma tentativa de ruptura com práticas heterônomas de gestão; b) uma estratégia para inverter a prioridade de investimentos, principalmente através do programa de orçamento participativo; c) uma prática que fortalece os movimentos sociais, na esperança de ultrapassarem reivindicações tópicas; d) um meio de fiscalizar diretamente a gestão pública.

Além da diversidade de formas de ampliação de gestão observada pelos autores – algumas mais abrangentes do que outras –, também foi por eles apontada a existência de diferenças de apropriação dos processos participativos por parte dos movimentos populares. “Em vários casos, a maior organicidade da participação aparece intimamente ligada ao estágio anterior de organização e mobilização dos movimentos populares” (CARDOSO; VALLE, 2000, p. 57). Belo Horizonte foi uma cidade representativa da observação dos autores nesse aspecto, pois possuía tanto um histórico de mobilização e organização dos movimentos populares, como uma Administração Municipal que colocou a democratização da gestão da política habitacional como um de seus compromissos políticos, como será visto mais adiante.