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3   DEMOCRATIZAÇÃO E AMPLIAÇÃO DA POLÍTICA HABITACIONAL EM

3.2   Movimento popular de luta por moradia em Belo Horizonte até a década de 1990 35

O associativismo de base local em Belo Horizonte esteve presente desde a fundação da cidade. Somarriba et al. (1984) apontam que, apesar de planejada, Belo Horizonte apresentava já no seu nascimento um quadro grave de carência de infraestrutura – que atingia inclusive setores médios da sociedade – e de exclusão socioespacial, pois não foi permitido aos pobres ocupar o plano da nova capital.

As autoras afirmam que esse associativismo constituiu-se de forma distinta ao longo dos anos. Entre 1930-37, período do Estado Novo, as associações comunitárias da capital formavam- se dentro dos diretórios dos partidos políticos, “agregando aos objetivos de filiação partidária, reivindicações específicas dos bairros onde atuavam” (SOMARRIBA et al., 1984, p. 121). A partir de 1946, após a ditadura Vargas, esse associativismo vai se distinguir em dois tipos de organização: os Comitês Pró-Melhoramento, constituídos por população de bairros de periferia, e as Uniões de Defesa Coletiva (UDC), formados pela organização da população favelada.

Os primeiros se caracterizam por proposta de apoliticismo e, contraditoriamente, por ligações clientelistas com os políticos, mostrando sua integração ao modelo populista predominante no período. As Uniões de Defesa Coletiva marcaram sua presença, principalmente, através da reunião em forma de uma federação e da forma de encaminhar suas reivindicações. Enquanto os comitês utilizavam quase que só os políticos como intermediários para suas reivindicações, na atuação das UDCs ocorriam, frequentemente, tentativas de pressionar o poder público através de grandes concentrações de favelados (Op.cit).

Destacam-se, portanto, duas estratégias de ação do movimento organizado de luta por moradia em Belo Horizonte, uma apoiada na aliança com candidatos a cargos eletivos no Estado, outra nas mobilizações de massa. As autoras pontuam que a utilização da influência política era mais característica dos Comitês Pró-Melhoramentos e tornavam sua autonomia questionável, uma vez que: a) não confrontavam o Estado com relação ao status quo do processo de urbanização excludente que atingia essas comunidades; b) não favoreciam o envolvimento direto da população com a questão política, pois isso era feito por um intermediário profissional – a

liderança, o vereador ou o deputado; c) estabeleciam uma interdependência entre o sucesso da eleição de “políticos compromissados”, o atendimento das demandas comunitárias e a própria continuidade da atuação das Comissões, já que o potencial de mobilização comunitária desta última estava diretamente relacionado à sua capacidade de “produzir resultados” nas comunidades.

Somarriba et al. afirmam que as Uniões de Defesa Coletiva também utilizavam o apoio político como estratégia de atendimento. No entanto, dada a condição de insegurança na posse da terra dentro das favelas e a constante ameaça do poder público de removê-las, as UDCs também utilizavam estratégias de mobilização de massa, como passeatas, assembleias e ocupações organizadas em terrenos subutilizados da cidade. De acordo com as autoras:

Nesse momento, as reivindicações da população favelada tendiam a se articular estreitamente à proposta de “reformas de base” do governo populista. Através da chamada “reforma urbana”, o movimento de favelas, conduzido pelas UDCs, parece ter sido mais atuante na cena política da época.

Em 1964, suas organizações são duramente reprimidas, e mesmo extintas, como o caso da Federação dos Trabalhadores Favelados (SOMARRIBA et al., 1984, p. 44).

Com o golpe militar de 1964 e, principalmente, com o Ato Institucional nº 5 em 1968, as UDCs foram violentamente reprimidas em Belo Horizonte, enquanto um associativismo com forte mediação de vereadores foi mantido nos bairros de periferia. Somarriba et al. pontuam que entre 1964 e 1974 existiam duas entidades que reuniam as associações da cidade, a Federação dos Comitês e Associação Pró-Melhoramentos de Belo Horizonte e o Movimento Pró- Melhoramento dos Bairros e Vilas de Belo Horizonte.

A partir da segunda metade da década de 1970, com o processo de abertura política e o aumento das carestias urbanas provocado pelo processo excludente de urbanização na cidade, os movimentos populares reivindicativos voltam à cena política de Belo Horizonte. Somarriba (1996) aponta o crescimento das associações de moradores a partir desse período – se em 1980 a autora havia registrado 202 associações na capital e Região Metropolitana, sendo que cerca de 65% delas havia surgido entre 1974 e 1980, no princípio da década de 1990 esse número chegaria em 548.

A autora destaca que em 1980 havia duas organizações gerais do movimento de luta por moradia na capital, a União dos Trabalhadores de Periferia (UTP) e a Federação das Associações Comunitárias de Minas Gerais (FACEMG). A primeira reunia as associações de favelas, desempenhando papel semelhante ao da antiga Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte, fechada após o golpe de 1964. Inclusive, algumas associações afiliadas à UTP remetiam sua origem às antigas UDCs da segunda metade dos anos 1950, como as associações

da Vila Santa Rita (Morro do Papagaio), no Aglomerado Santa Lúcia, e a União Prado Lopes, na favela da Pedreira Prado Lopes.

Já a FACEMG foi uma organização criada com o incentivo indireto do governo do Estado, que tinha como objetivo congregar associações comunitárias de toda Minas Gerais. A Federação teve vida curta e acabou reunindo majoritariamente associações provenientes de Belo Horizonte, grande parte delas localizadas na Regional Venda Nova. Somarriba afirma que a maior herança dessa organização foi a ideia de se constituir um organismo congregador das associações de bairro na Regional Venda Nova, onde mais tarde foi criada a União das Associações de Venda Nova (UNAVEN).

Outro organismo de união associativa destacado pela autora foi a Federação de Bairros, Vilas e Favelas de Belo Horizonte (FAMOBH), criada em 1983. Ela aponta a FAMOBH e a UTP como principais congregações de luta pela moradia em Belo Horizonte na década de 1980, ressaltando, inclusive, que elas disputavam entre si o monopólio da representatividade das associações oriundas de favelas19.

De acordo com Somarriba, as reivindicações da FAMOBH eram concentradas no acesso à moradia popular. A entidade auxiliava grupos de sem casa na organização de suas demandas junto ao poder público e nas ocupações de terrenos vazios na cidade. Sua atuação abrangia também a organização da população que havia recebido lotes em assentamentos organizados pelo poder público, os quais foram implantados sem condições mínimas de infraestrutura urbana – casos dos conjuntos Paulo VI, Capitão Eduardo e Taquaril, entre outros.

Como desdobramento da atuação de militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) na FAMOBH, foi criada em 1988 a Federação de Associações de Moradores do Estado de Minas Gerais (FAMEMG) que tinha o objetivo de reunir associações de moradores de todo o Estado, mas que em princípios da década de 1990 tinha uma inserção pequena em associações de fora de Belo Horizonte.

Através de pesquisa realizada entre as décadas de 1970 e 1980, Somarriba caracteriza da seguinte forma a atuação do movimento popular de luta por moradia belo-horizontino desse período: a) baixo nível de envolvimento dos moradores nas tarefas da associação. Segundo a autora, era comum a delegação de tarefas a dirigentes que negociam com o poder público as reivindicações da associação e que, quando necessário, mobilizam a comunidade para ações de protesto, assembleias etc.; b) baixa interação do movimento popular de luta por moradia com

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As organizações também divergiam quanto à forma de reivindicação pelo direito à moradia. Enquanto a UTP priorizava negociações diretas com o Poder Executivo – algumas lideranças da União chegaram a assumir cargos no governo estadual em 1983 –, a FAMOBH enfatizava as iniciativas de mobilização de massa para chamar atenção da opinião pública para o problema da falta de moradia na capital (SOMARRIBA, 1996, p.61).

outros tipos de movimentos sociais urbanos, em especial o operário/sindical; c) certa ambiguidade na relação das associações de moradores com a política e os políticos. Mas a autora afirma que, em geral, as associações prezavam a ideia de que uma determinada melhoria urbana em sua comunidade não era um favor da Prefeitura, ou de um vereador-padrinho, mas um direito daquele bairro ou favela de possuir condições dignas de moradia. Portanto, era necessário à associação, à federação ou ao movimento ter uma postura crítica perante o Estado. Todavia, a alternativa de recorrer a contatos políticos dentro da administração pública para conseguir um determinado benefício, não estava completamente afastada pelas lideranças das associações estudadas:

Poderíamos dizer, então, que a heterogeneidade das organizações comunitárias expressa- se não só na coexistência de associações do tipo ideológico e do tipo pragmático, mas, também pela presença da orientação ideológica e da orientação pragmática numa mesma associação. E, ao que tudo indica, as organizações desse terceiro tipo, misto, são amplamente majoritárias [em Belo Horizonte] (SOMARRIBA, 1996, p. 70).

À guisa de conclusão, aponta-se que o quadro de organização dos movimentos populares de luta por moradia em Belo Horizonte no princípio da década de 1990 era composto por associações de moradores de bairros e de favelas, associações de sem casa, agremiações que congregavam associações de bairros e de favelas – com destaque para a UTP, FAMOBH e FAMEMG –, além de outras entidades da sociedade civil que prestavam assistência aos movimentos de sem casa, que não foram citadas neste tópico – como o Centro de Apoio aos Sem Casa da Ação Social Arquidiocesana (CASA/ASA). Como característica marcante, destaca-se, em geral, a coexistência de uma prática reivindicativa que incorpora a dimensão do direito à cidadania, mas que ainda carrega resquícios de uma tradição clientelista de ação política.

Avritzer (1995) defende que a democratização de um dado sistema político não pode ser julgada apenas pelo viés do seu desenho institucional e que é necessário considerar que a democracia também é construída pelos significados que os atores políticos atribuem a ela. Nesse sentido:

[...] tratar-se-ia de perceber que existe um hiato entre a existência formal de instituições e a incorporação da democracia às práticas cotidianas dos agentes políticos. (...) As práticas dominantes, neste caso, não são puramente democráticas nem puramente autoritárias. Podemos, portanto, supor a existência de duas culturas políticas e apontar a disputa entre elas no interior do sistema político (AVRITZER, 1995, p.4).

Da mesma forma, pode-se inferir que a ação política dos movimentos populares de moradia desse período também vai conservar traços de uma cultura política nem puramente democrática, nem completamente clientelista.

No item a seguir será abordada a construção dos mecanismos de democratização da política habitacional de Belo Horizonte, que envolveu técnicos, gestores públicos e movimento

popular. Se, por um lado, essa construção conjunta fez parte do processo de significação de uma prática democrática para os agentes políticos envolvidos, por outro, é possível observar no desenvolvimento de programas e ações da política habitacional o hiato entre o desenho institucional e as práticas dos agentes políticos.