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Artigo 34. O currículo da Educação Escolar Quilombola diz respeito aos modos de organização dos tempos e espaços escolares de suas atividades

1.6 MOVIMENTO QUILOMBOLA: DO LOCAL AO NACIONAL

Estimulado pelas conquistas históricas, sobretudo, no que se refere às bases legais, o movimento quilombola supera os limites da regionalização e se apresenta no cenário nacional. A força mobilizadora do movimento consegue alterar pautas de ações/políticas públicas, e colocar em debates, questões secularmente silenciadas. Essa mobilização se fortalece com a realização do I Encontro Nacional de Comunidades Rurais Quilombolas e com a Marcha Zumbi dos Palmares: Contra o

Racismo, Pela Cidadania e a Vida em 1995. Esses dois eventos fizeram parte das homenagens aos trezentos anos da imortalidade de Zumbi29. Ambos foram realizados em novembro de 1995 em Brasília/DF. A abrangência atingida pelo movimento quilombola incitou suas lideranças para a criação de um mecanismo de organização que representasse a população quilombola em todo o Brasil. Foi esse contexto que propiciou a constituição da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), que se consolidou no dia 12 de maio de 1996, em Bom Jesus da Lapa/BA, numa reunião avaliativa do I Encontro Nacional dos Quilombolas.

Devido à expressiva participação de lideranças de Conceição das Crioulas nas articulações das comunidades quilombolas em todo o país, a nossa comunidade passou a ser referência de organização e luta o que resultou em inspiração e encorajamento de muitas comunidades. Conjugado ao movimento pelo reconhecimento e consequentemente por conquistas e garantia de direitos historicamente não reconhecidos, ganha destaque a luta por uma educação escolar que fosse articulada com a vida da comunidade. E, nesse processo de (re)construção e (re)conceituação das práticas de ensino nas nossas escolas, chegamos ao entendimento que estávamos praticando, o que teoricamente, é chamado de “Educação Específica, Diferenciada e Intercultural”.

Nessa perspectiva, e, contrariando o poder regional, a comunidade quilombola de Conceição das Crioulas inaugura uma proposta de educação, que em pouco tempo passa a ser destaque na região. Esse reconhecimento se deu, segundo Silva:

“pelo processo de construção do projeto, envolvendo a comunidade desde a elaboração da proposta, definição de perfis de professores e professoras, o que seria considerado materiais pedagógicos, incluindo os materiais produzidos pela própria comunidade, a relação com o território e com suas lutas”. (Givânia Maria da Silva - em entrevista concedida em 27.01.2017).

O aperfeiçoamento organizacional da comunidade de Conceição das Crioulas contribuiu para que outras comunidades tradicionais despertassem para o engajamento na luta por uma sociedade mais justa. Para tanto, temas antes silenciados, passam a ser divulgados, discutidos e questionados e as agendas dos

29 A Marcha dos 300 (trezentos) de Zumbi dos Palmares não foi visto como um aniversário de morte e

sim, um momento para celebrar a imortalidade pelo o que significa Zumbi e o Quilombo dos Palmares para a organização e luta das comunidades quilombolas.

diversos segmentos da sociedade começam a ser, significativamente alteradas. As mobilizações das comunidades tradicionais ganham visibilidade no cenário nacional e internacional.

É importante ressaltar que, a comunidade quilombola de Conceição das Crioulas, enquanto protagonista do movimento quilombola, desempenha papeis importantes na CONAQ. Essa atuação deve-se à intensa participação de suas lideranças, através das instituições representativas do nosso povo, condições essas, bastante favoráveis ao fortalecimento do poder de articulação entre os movimentos sociais, fazendo nossas bandeiras de lutas ultrapassarem as fronteiras do nosso país.

A mobilização quilombola influenciou também no campo epistemológico. A conjuntura do momento provocou acadêmicos adeptos à causa quilombola não somente a reaprender a história do Brasil, mas também, a (re)ensiná-la. As descobertas feitas por esses estudiosos e pelos movimentos sociais, são instrumentos para a desconstrução de muitos dos conceitos que limitam os quilombos a ideia de um passado, obrigatoriamente, vinculado à escravatura. No entanto, muitos estereótipos construídos concernentes aos quilombos, ainda são reproduzidos nos mais diversos espaços sociais. Vale ressaltar, que a reprodução desses, sempre teve a seu favor a “eficácia” do capitalismo, da mídia, dos livros didáticos, entre outros.

Apesar de esforços do movimento quilombola, somados a apoios da sociedade civil organizada e de intelectuais, grande parte da população brasileira ainda legitima a ideia de quilombo como uma realidade estática. No imaginário de muitas pessoas, os quilombos são sinônimos de isolamentos: são agrupamentos de pessoas hostis, todos são originários de fugas de cativeiros, são formados por pessoas despolitizadas e sem nenhum contado com o mundo moderno. E isso faz com que, muitas pessoas (físicas e jurídicas) continuem buscando a autenticidade das comunidades quilombolas a partir da existência de vestígios da escravidão como correntes, troncos, pilões, gente usando vestes de algodão cru, andando descalços, morando em taperas. O preconceito preestabelecido acerca dos quilombos é essencial para a manutenção da colonialidade defendida pelos que lutam para impedir que a regularização fundiária nas comunidades quilombolas aconteça. Cardoso (2008) afirma que:

[...] grupos advogam uma dicotomia absoluta entre fazenda e quilombo, porquanto, consideram que este esteve sempre localizado em lugares remotos e de mata, distante da ‗civilização„ e, portanto, do mundo regido pelas grandes plantações‖ (ALMEIDA, 2005, p. 6). Desconsidera-se, assim, um processo de construção histórica e a luta de tais grupos por direitos sociais, mesmo que se tenham construído de outras formas que não a imaginada por alguns agentes que possuem o monopólio do poder. (CARDOSO, 2008, p. 3)

A partir das mobilizações quilombolas, mais precisamente nos anos 70 e 80, novos conceitos foram construídos e introjetados no mundo acadêmico. Muitos desses, apesar de, aparentemente serem inovadores, mantiveram a essência consolidada nas bases coloniais. Todavia, vale salientar que, no processo de formulação de conceitos voltados para a desconstrução de estereótipos e resquícios criados e difundidos pelo eurocentrismo, alguns autores/as realmente, são fidedignos ao que são de fato, os quilombos.

Para reafirmar o que entendemos como distanciamento entre os conceitos de quilombos ora difundidos e o que estes são de fato, apresentamos a seguinte definição de Lopes (apud SOUZA, 2008, p.28):

“Quilombo é um conceito próprio dos africanos bantos que vem sendo modificado através dos séculos (...) Quer dizer acampamento guerreiro na floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão administrativa” (Lopes, 2006: 27-28). No Brasil, o termo "quilombo" passou a significar comunidades e agrupamentos autônomos de negros e negras escravizados fugitivos.

A definição apresentada acima, apesar da inserção de elementos considerados inovadores, quanto ao que historicamente foi entendido com características comuns dos quilombos, mantém a centralidade do conceito de quilombo homogêneo. Conceito esse que destoa totalmente da realidade de muitas comunidades quilombolas existentes no Brasil.

Para Silva (2012):

[...] Os quilombos guardam consigo características próprias, que se relacionam com a sua condição de ser, sua relação e pertencimento ao território, bem como suas formas e usos da terra/espaço, suas relações de parentesco, seus significados, sua organização etc. A incorporação dos elementos dessa composição das comunidades quilombolas não é necessariamente física, material, mas, muitas vezes, imaterial. São lugares que têm características próprias não exóticas. Quilombo é um espaço de liberdade e das práticas como um ato de pertencimento não folclorizado de um território inexistente. (SILVA, 2012, p.46-47)

Essa, portanto, é uma definição condizente com a realidade quilombola. Mas isso não significa dizer que os quilombos sejam singulares. Cada comunidade vive essas características de formas específicas. Além do mais, não podemos desconsiderar que haja riscos de que essa realidade pereça Uma vez que, a

organização, a autogestão, os costumes, as tradições desses povos, vêm sendo forçadamente alterado, principalmente por intervenções e políticas de governos.

A pesquisa realizada na comunidade quilombola de Conceição das Crioulas apresenta fatos e dados relacionados à efetivação da política de nucleação escolar, com potenciais devastadores para a vida da sociedade crioula. Baseando-se no resultado dessa pesquisa, podemos perceber que a desterritorialização dos processos educativos repercute em diferentes fatores específicos e estruturantes dos núcleos comunitários que compõem a comunidade em foco. Entre as circunstâncias que foram as mais apontadas pelas famílias destaca-se que ela (a) limita o tempo de convivência familiar, (b) provoca o desconhecimento da cultura local, (c) desprestigia os saberes próprios das comunidades, (d) impede a criação de vínculos com o território, (e) impossibilita a participação nos eventos realizados na comunidade, prejudica o desempenho escolar dos/as estudantes, aumenta os riscos de acidente.

O que presenciamos cotidianamente nas nossas escolas e ouvimos durante as nossas investigações, demonstram o quanto a nucleação escolar é mais uma forma perversa de infringir direitos, especialmente, das pessoas mais pobres, tirando destas, também a dignidade. Diante da complexidade própria do procedimento em questão, precisamos formular estratégias políticas que possam acionar instrumentos legais preexistentes, bem como constituir outros, com o intuito de impedir a continuidade dessa violência disfarçada de política pública. Para tanto a sociedade civil organizada precisa ser informada, instrumentalizada e provocada a, de maneira articulada, inserir nos debates e nas manifestações populares, o que de fato, significa o fechamento das escolas quilombolas e do campo de modo geral.

CAPÍTULO 2: POLÍTICA DE NUCLEAÇÃO: UM IMPASSE PARA A EDUCAÇÃO