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2 CULTURAS PÓS-MODERNAS

2.1 Movimentos culturais

O direito à cultura tem sido uma das grandes conquistas dos movimentos sociais nos últimos anos. Apesar do avanço das indústrias culturais e do processo de marginalização como consequência das políticas neoliberais, esses grupos, especialmente da juventude, têm se organizado para reivindicar questões relativas à produção, disseminação e fruição de suas práticas culturais.

Assim como na maioria dos países, a globalização provocou grandes mudanças nos movimentos culturais na América Latina e os tornou transculturais e híbridos. Seja pela diferenciação nos modos de produção, pela segmentação dos mercados de consumo cultural ou pela expansão da indústria cultural, eles expandiram suas fontes de influência, o que inevitavelmente repercutiu em suas formas de expressão.

Para que garantam espaços de reafirmação de suas identidades, especialmente os grupos culturais periféricos, é importante que tenham apoio em iniciativas de empoderamento e autonomia. Ao discorrer sobre as classes subalternas, Spivak (2010) diz que a relação entre o capitalismo global, representado pela exploração econômica, e as alianças dos Estados-nação, que exercem a dominação geopolítica, é macrológica e não pode ser responsável pela textura micrológica do poder. As teorias da ideologia e a formação dos sujeitos são micrológicas, ainda que muitas vezes reforcem macrologias.

A autora remete a Foucault, em que tornar visível o que não é visto pode significar avanços para o processo de reconhecimento das micrologias subalternas. “Para o ‘verdadeiro’

grupo subalterno, cuja identidade é a sua diferença, pode-se afirmar que não há nenhum sujeito subalterno irrepresentável que possa saber e falar por si mesmo” (SPIVAK, 2010, p. 60- 61).

Yúdice (2006) cita o caso do Viva Rio, no Rio de Janeiro, que abarcou vários estratos sociais e focou sua atuação nas áreas desassistidas pelo Estado neoliberal, sobretudo no cruzamento de questões ligadas às classes média e baixa. O movimento também provocou a valorização do funk como uma das características culturais mais importantes da cidade.

Sobre a diferença de se categorizar a identidade, exposta num encontro internacional de grupos indígenas nos Estados Unidos, com representantes de mais de 25 comunidades latino- americanas – o que possibilitou a expansão do conceito de indígena americano –, alguns grupos consideraram que a participação, e não a identidade, seria a forma de se determinar o pertencimento, e que não se tratava de uma questão de sangue ou de raça. Para eles, trata-se do conjunto de suposições, pressupostos, crenças, mitos, valores, experiências e laços, definidos pelos pesquisadores como o “território do significado”.

A identidade nacional brasileira é alvo de críticas dos movimentos de rap da juventude negra, tecidas no campo político, cultural e racial. A partir de suas letras de música, sejam de funk ou rap, jogam por terra o estereótipo do Brasil idealizado como local de harmonia entre vários grupos étnicos e propõem a autonomia de múltiplas identidades locais, construídas por vários grupos sociais.

Como espaço de representação de uma identidade híbrida, construída a partir da construção social da juventude negra periférica belo-horizontina, com o culto a um estilo musical afro-americano e que traz em suas letras a realidade de conflito social vivida por esses jovens no Brasil, o Duelo de MCs traz à tona uma identidade brasileira repertoriada por influências plurais, distante dos ideais de nação anteriormente pregados. Ao evidenciarem sua cultura nas letras que criam, seja em batalhas entre MCs ou pocket shows, reafirmam sua identidade como brasileiros.

No entanto, essa heterogeneidade de perfis sociais não se traduziu na livre circulação pelos espaços das grandes metrópoles mundiais. O território se apresenta dividido e, nesse contexto, as populações economicamente pobres se tornam prisioneiras em suas próprias vizinhanças. Em muitos casos, o Estado detém aqueles que atravessam áreas que “não lhes pertencem”, expurgando aqueles desprovidos de “direito” em prol dos que acessam a “cidadania”.

O pânico da classe média, criado pelos meios de comunicação com as imagens dos arrastões pelas praias cariocas, sobretudo a partir de meados da década de 1980, trouxe reação das juventudes populares, que, por intermédio dos movimentos de funk e hip-hop, buscaram transmitir sua mensagem ideológica contra o racismo, que inclusive tinha a cumplicidade do Estado. Dessa forma, se colocaram no centro do debate da esfera pública sobre cultura, exigindo que as autoridades revissem seu papel enquanto representantes da coletividade e comunicando um novo sentido de cidadania, pertencimento e participação.

Yúdice reforça o papel da juventude brasileira como vetor de múltiplas manifestações culturais. O autor cita jovens com diferentes perfis, como rappers politizados, caras-pintadas que celebraram o triunfo democrático sobre o presidente Collor, surfistas, funkeiros, metaleiros, punks, motoqueiros, neo-hippies, neonazistas, nacionalistas, muçulmanos negros, rastafáris, jovens que cultivam a música e as práticas culturais da diáspora africana, entre outros.

Portanto, é pelo viés da cultura que os jovens brasileiros criam seu próprio espaço de participação social e dão notoriedade a reivindicações e denúncias de violação de direitos. Ao se mobilizarem e estabelecerem uma pertença coletiva a partir de uma identidade cultural comum, compartilham ideais e buscam a conquista de direitos. Para integrantes e simpatizantes do Duelo de MCs, a cultura hip-hop cria a possibilidade de vínculo e compartilhamento de experiências entre os sujeitos. Além disso, estabelecem um espaço de discussão política sobre o direito à cidade, o papel do Estado em promover serviços públicos de qualidade e a conquista da cidadania.

Em menor escala que os movimentos culturais, os coletivos culturais vêm crescendo no país. Ao criarem projetos comuns e compartilharem valores e ideais profissionais e pessoais, artistas vêm se juntando em coletivos e construindo em conjunto uma concepção artística de grupo. Especialmente presentes nas áreas de música e teatro, também são observados na dança, no cinema, na literatura, no jornalismo. Em relação ao trabalho, se organizam de forma desierarquizada e atuam de modo colaborativo. Inseridos nos Novos Movimentos Sociais (NMSs), os coletivos culturais vislumbram, segundo Downing (2001), avanços que “em grande medida, independem do que o Estado pode conceder – objetivos que guardam uma relação muito mais próxima com um senso de crescimento e identidade pessoais em interação com a subcultura do movimento” (DOWNING, 2001, p. 57).

No caso do hip-hop, por se tratar de uma expressão cultural de favelas e outras áreas periféricas da cidade, muitos coletivos de rap são formados a partir do convívio entre amigos ou vizinhos de bairro. Em muitos casos, grupos se formam e se desfazem no próprio bairro, sem se tornarem conhecidos (DAYRELL, 2005).

Yúdice (2006) questiona a sobrevivência dos movimentos sociais, considerados uma esperança para uma sociedade civil que não se identifica com o capitalismo consumista. Com atuação à parte do Estado e por não participarem da política eleitoral, correm o risco de se tornarem marginais, condenados à desintegração e à extinção quando cessarem as razões que os fizeram emergir. Ademais, ao se tornarem os principais representantes das demandas da sociedade civil e justificarem a ausência dela, se encaixam na maneira pela qual as elites tentam eximir o Estado de suas obrigações e responsabilidades. Portanto, ao se institucionalizarem, precisam manter a constante tensão com o Estado, com a legalidade, com o mercado e com as entidades transnacionais.

Sendo assim, ONGs e movimentos sociais devem considerar que, dentro de sua estratégia de levar adiante ações que reconheçam os direitos de uma população tradicionalmente marginalizada, é preciso o envolvimento do Estado, polícia, organizações de direitos humanos, comércio, mídia, organismos internacionais, entre outros setores envolvidos. “O reconhecimento da diversidade não pode substituir a responsabilidade estatal nem a implicação dos setores do mercado, não pode ser um mero substituto” (YÚDICE, 2006, p. 259).

Dessa forma, o Duelo de MCs torna-se um dos principais movimentos contemporâneos de luta por cidadania por parte de grupos sociais periféricos de Belo Horizonte. Como espaço de resistência cultural e de reflexão política sobre a cidade e os direitos da população, põe em xeque o papel do Estado, que deve cumprir sua função de criar políticas públicas que deem conta da pluralidade das manifestações culturais e das demandas de grupos sociais subalternos.

A seguir, discute-se a importância de se criar políticas públicas de cidadania cultural que reconheçam o direito à cultura no Brasil e possibilitem a criação de novos espaços de significação e de pertença coletiva a grupos sociais, especialmente aqueles historicamente marginalizados e oriundos de áreas periféricas, como vilas e favelas. Para isso, destaca-se o conceito de cidadania cultural de Chauí (2006) e o valor de políticas culturais que promovem a participação solidária, o protagonismo e o empoderamento social.