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3 AS CIDADES E O ESPAÇO PÚBLICO

3.1 Movimentos de ocupação

Num momento de desintegração da cidade como espaço social, movimentos sociais como o Duelo de MCs se mobilizam para resgatar seu uso público. Num contexto de economia transnacionalizada, em que as metrópoles atuam como catalisadoras das transações econômicas, eles atuam de forma cidadã e promovem a ocupação de avenidas, ruas, parques e praças. Na maioria das vezes, são motivados pelo fim das desigualdades e injustiças sociais e pela preservação ambiental e de identidades culturais.

Entre os exemplos contemporâneos que demonstraram o poder da sociedade civil em se reunir em prol de grandes mudanças, especialmente em relação às políticas neoliberais – que prestam socorro aos bancos e deixam milhões de pessoas à deriva –, o movimento Occupy Wall

Street, que tomou as ruas do centro financeiro de Nova Iorque em setembro de 2011, foi um caso

emblemático. A articulação de movimentos sociais mostrou sua capacidade de dar projeção a questões políticas e criar novos mecanismos de mobilização social.

Por ter se organizado num dos principais centros de poder da economia capitalista mundial, o movimento Occupy Wall Street deu notoriedade à indignação da sociedade civil perante a atuação de um Estado autoritário e exclusivamente a serviço das classes dominantes, num contexto de crise social e econômica iniciada em 2008 nos Estados Unidos.

Aliás, o Occupy Wall Street procura ocupar um espaço público central, como um parque ou uma praça, próximo a muitos bastiões do poder. Ao mobilizar cidadãos, transforma a área num espaço de discussão e debate sobre os problemas trazidos por esse poder e as melhores formas de se opor ao seu alcance.

O início das últimas manifestações populares pelo mundo, com a visível participação de jovens politizados e conscientes de seus direitos, aconteceu na Tunísia no final de 2010, após a autoimolação do vendedor ambulante Mohamed Bouazizi, de 26 anos, que se revoltou ao ser proibido pela polícia de vender frutas pelas ruas da cidade de Sidi Bouzid. Após o episódio, milhares ocuparam as ruas do país e conquistaram a derrubada do presidente Ben Ali.

O episódio tunisiano desencadeou a Primavera Árabe, uma onda de ocupações das ruas em vários outros países da região. Os protestos organizados pela juventude egípcia, inspirados na vizinha Tunísia, culminaram com a saída de multidões às ruas do Cairo e a renúncia do presidente Hosni Mubarak.

Além disso, a mobilização no Mundo Árabe culminou em grandes levantes populares na Líbia, Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Síria, Omã e Iêmen e protestos menores no Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental. Todos os movimentos, laicistas e democráticos, pediam o fim dos governos autoritários, há vários anos no poder. Em alguns países, houve êxito nas reivindicações, com a queda ou renúncia de governos.

Também palco de protestos, Istambul, capital da Turquia, teve a praça Taksim ocupada por manifestantes no início de junho de 2013, após a decisão do governo de destinar a área da

praça e do parque Gezi para a construção de um shopping center. O aumento no número de pessoas nas ruas, inclusive em outras cidades turcas, engrossou o coro dos insatisfeitos, que pediram a renúncia do primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, há mais de dez anos no poder.

Na Espanha, as manifestações do movimento Los Indignados, de 15 de maio de 2011, que acampou na Puerta del Sol, uma das principais praças de Madri, para protestar contra a grave crise econômica e os altos índices de desemprego no país, reverberaram em outros países europeus, como Portugal, com a Geração à Rasca, e na Grécia, com a ocupação da praça Syntagma. Na América Latina, destaque para os protestos dos estudantes no Chile, que exigiram nas ruas uma educação pública e gratuita no país.

No Brasil, os protestos que começaram em março de 2013 – cujo ápice se deu durante as “Jornadas de Junho” –, foram motivados pelo reajuste nas tarifas do transporte coletivo, tendo em vista a péssima qualidade de um serviço que é público, mas gerenciado por um pequeno grupo de empresas. No entanto, as manifestações ganharam força com o repúdio da população aos altos investimentos feitos para a realização da Copa do Mundo de 2014 no país. Durante a Copa das Confederações, em junho de 2013, várias passeatas tomaram ruas de diversas cidades do país e houve confrontos com a polícia.

Dessa forma, a proliferação de manifestações e iniciativas de ocupação do espaço público tornou-se a senha para milhares de jovens protestarem em várias cidades no mundo.

Uma eclosão simultânea e contagiosa de movimentos sociais de protesto com reivindicações peculiares em cada região, mas com formas de luta muito assemelhadas e consciência de solidariedade mútua. Uma onda de protestos sociais tomou a dimensão de um movimento global. (...) Em todos os países houve uma mesma forma de ação: ocupações de praças, uso de redes de comunicação alternativas e articulações políticas que recusavam o espaço institucional tradicional (CARNEIRO, 2012, p. 7).

Como resposta, o Estado autoritário e clientelista adota a violência para excluir o público de seu próprio espaço e criminalizar quem não acata suas decisões soberanas. Apoiado pela classe capitalista, se diz o único a ter o direito de regular o espaço público e dele dispor como julgar conveniente.

Com que direito os prefeitos, os chefes de polícia, os oficiais militares e as autoridades do Estado dizem para nós, o povo, que eles podem determinar o que é público em “nosso” espaço público, bem como quem pode ocupá-lo e quando?

Quando é que eles presumem expulsar-nos, o povo, de qualquer espaço que nós, o povo, decidimos coletiva e pacificamente ocupar? Eles dizem que agem de acordo com o interesse público (e usam as leis para prová-lo), mas nós somos o povo! Onde está “nosso interesse” em tudo isso? E, aliás, não é “nosso” dinheiro que os bancos e financistas usam tão descaradamente para acumular “seu” bônus? (HARVEY, 2012, p. 62).

Chomsky (2011) diz que iniciativas como a do Occupy Wall Street precisam de uma ampla e ativa base popular, chamando a atenção das pessoas para o valor de uma ação coletiva. No entanto, ele atenta para a importância de um trabalho de educação e ativismo, ou seja, aprender a participar, a fazer parte de uma coletividade.

Entre os aspectos mais interessantes do movimento, ele destaca a construção de vínculos. Esses laços podem se manter e gerar novos frutos, como novas campanhas que coloquem a sociedade numa trajetória mais humana. E como os resultados não vêm a curto prazo, é preciso esperar e entender que grandes mudanças acontecem com o tempo.

Ao afirmar que a difusão social da produção contribuiu para desocultar novas formas de opressão e que o isolamento político do movimento operário facilitou a emergência de novos sujeitos sociais e novas práticas de mobilização social, Santos (2008) destaca a atuação dos Novos Movimentos Sociais (NMSs). Ao advogar um novo paradigma social menos focado na riqueza e no bem-estar material e direcionado para a cultura e a qualidade de vida, denunciam os excessos de regulação da modernidade.

Esses excessos atingiriam, além do modo como se trabalha e produz, a maneira como se descansa e vive. Evidenciariam as assimetrias econômicas e sociais como reflexos do desequilíbrio entre os sujeitos, que são atingidos não mais pelo viés da classe social, mas como grupos sociais transclassistas da sociedade no seu todo.

Em relação às reivindicações dos NMSs contra as formas de opressão e exclusão, não são atendidas suficientemente apenas com a concessão de direitos; exigem uma reconversão dos processos de socialização, inculcação cultural e modelo de desenvolvimento. Além disso, exigem mudanças concretas imediatas e locais.

É importante destacar o contexto para o surgimento dos NMSs que hoje lutam contra os abusos do neoliberalismo, seja na América Latina ou Europa. A maioria deles teve origem na organização da sociedade civil na década de 1970, cujo papel foi decisivo na democratização de Estados antes governados por governos militares e/ou autoritários.

O autor destaca que os NMSs representam a afirmação da subjetividade perante a cidadania e que a emancipação por que lutam é, antes de política, pessoal, social e cultural. Quanto ao modo de organização, eles se pautam por formas organizativas, e seus protagonistas são grupos sociais com contornos definidos por interesses coletivos, muitas vezes localizados mas potencialmente universalizáveis. A incidência dos NMSs ocorre no marco da sociedade civil e eles mantêm uma distância calculada em relação ao Estado, da mesma forma com partidos e sindicatos tradicionais.

Portanto, criam uma nova maneira de se organizar politicamente, baseada na independência e isonomia entre seus integrantes:

A ideia da obrigação política horizontal, entre cidadãos, e a ideia da participação e da solidariedade concretas na formulação da vontade geral são as únicas susceptíveis de fundar uma nova cultura política e, em última instância, uma nova qualidade de vida pessoal e colectiva assentes na autonomia e no autogoverno, na descentralização e na democracia participativa, no cooperativismo e na produção socialmente útil. A politização do social, do cultural e mesmo do pessoal abre um campo imenso para o exercício da cidadania (SANTOS, 2008, p. 263).

Ao instaurarem um modelo de democracia participativa, segundo Santos, os NMSs criam uma relação de tensão e difícil convivência com a democracia representativa. E dessa relação conflituosa muitas vezes saem as energias emancipatórias necessárias para a redefinição do campo político e a reforma das instituições. Portanto, são um sinal de transformações globais no contexto político, social e cultural da contemporaneidade, e sua luta estará permanentemente na agenda política dos próximos anos.

Considerados movimentos sociais que recusam a adoção de táticas ilegais e cujos manifestantes têm consciência moral e senso de justiça social, eles também coincidem, segundo Carneiro (2012), no reconhecimento do precariado, “uma nova forma de proletariado informal e terceirizado, um novo tipo de trabalhador cujas habilidades intelectuais são exploradas por meio da precarização, desregulamentação e perda dos direitos sociais do welfare state das gerações anteriores do proletariado industrial” (CARNEIRO, 2012, p.13).

Ao denunciarem a situação do precariado, esses movimentos pregam o igualitarismo democrático radical, que fundamenta as tradições intelectuais e correntes políticas progressistas.

O objetivo é criar oportunidades para que todos tenham o mesmo acesso a recursos, além de serem partícipes das tomadas de decisão, principalmente daquelas que lhes afetam diretamente.

Para Alves (2012), os NMSs representam as reivindicações de um contingente populacional jovem vinculado à condição de proletariedade e à ausência de perspectivas futuras. Em sua diversidade e amplitude de expectativas políticas, expressam uma consciência crítica e dizem não ao status quo de um sistema capitalista como modo de produção da vida social.

Dessa forma, ressignificam o cotidiano como espaço de reivindicação coletiva de direitos usurpados. Portanto, em detrimento à lógica neoliberal privatista, que privilegia os espaços do consumo e da fruição intimista, querem reconquistar pacificamente o espaço público urbano, considerado o local compartilhado por todos, sejam praças, largos ou ruas.

Portanto, evidencia-se como o interesse público, que leva em conta os desejos coletivos e representa as demandas da população, é ignorado pelos governos em prol de uma elite, que acaba impondo sua visão economicista e distorcendo a função pública do espaço urbano. Em face desse modelo autoritário de cidade, o Duelo de MCs é um exemplo de movimento de resistência cultural e política que leva para o Centro de Belo Horizonte algumas das principais reivindicações de segmentos desassistidos da sociedade.

É a partir de movimentos de mobilização popular, com a ocupação de espaços públicos e atos simbólicos, seja contra a exploração econômica ou a ausência do Estado de bem-estar social, que a população pressiona por mudanças e conquista direitos. Nesse sentido, discute-se, no próximo subcapítulo, como a aquisição da cidadania (MARSHALL, 1967) tem, ao longo da história brasileira, corrigido distorções e desigualdades no país, e os desafios a serem enfrentados para que ela seja alcançada de forma igual por todos os grupos sociais.