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Movimentos de transformação na escola

Parte I Enquadramento teórico

5. Movimentos de transformação na escola

Ao processo de resistência (física, mental ou ambas) do ser humano ou de outro animal por períodos relativamente longos de tempo dá-se o nome de estamina. A resistência física pode ter impactos negativos na capacidade de força, a não ser que se disponha ao treino da resistência para neutralizar esse efeito. Neste caso, o treino consiste na prática de exercício físico de baixa intensidade por períodos longos de tempo, como a corrida ao longo de muitos quilómetros, esforçando-se por compensar a luta e alcançar um fim.

No caso da resistência de professores numa escola, dever-se-á ter em conta a capacidade de força para se manterem numa instituição, num determinado tempo e espaço. Ao analisar a resistência de professores, poderá também ser útil refletir sobre o treino dessa resistência. Como resistir numa escola? Tal como o treino de uma resistência física, pode questionar-se o treino de uma resistência emancipatória, sujeitando o professor a treinos de baixa intensidade por períodos longos de tempos.

Uma resistência como meio de emancipação dos professores, tal como se definiu no capítulo anterior, pressupõe um diálogo crítico e libertador sobre o ser e o agir dos professores. Neste processo, a formação contínua poderá desempenhar um papel importante no treino da resistência. Numa situação de formação contínua de professores, o treino pode ser entendido de baixa intensidade, porque o professor se encontra a atuar no domínio de uma reflexão conjunta. O professor, em contexto de formação, encontra-se a questionar as suas atuações, evocando situações que põe em evidência a imagem que faz de si próprio e que os outros têm dele. Num contexto de aprendizagem e partilha mantém aberta e flexível a sua consciência, disposto a conceber outras formas novas de atuação.

De acordo com Canário (2006), o professor na escola atual, encontra-se na luta pela libertação de uma crise de identidade que assolou o sistema educativo desde a década de 70. Segundo este autor, a queda de algumas crenças fundadoras do sistema escolar, a escolarização massiva e o aumento do número de professores, e a liberalização tendencial da profissão, desenvolveram em muitos professores uma desmotivação, uma falta de investimento profissional e um aumento de doenças ocupacionais nesta área laboral (Canário, 2006). Para estes professores, sob os quais esta crise se assolou, urge o desenvolvimento de um processo de resistência, como meio de emancipação, capaz de desenvolver uma conscientização crítica e uma atuação intercultural.

41 Ao refletir sobre as suas práticas, o professor pode vir a desenvolver uma práxis, tal como Freire (1968/2007) refere, reflexão e ação sobre o mundo para o transformar. Neste diálogo, os participantes perspetivam ações de uma forma objetiva, concebendo as injustiças como desafios e não apenas estímulos. Trata-se de uma forma de resistir às injustiças do poder, através da abolição de outras formas de poder, criando novos espaços (Žižek, 2007). Neste processo de luta permanente pela sua libertação, sentem-se comprometidos e consequentemente engajados (Freire, 1968/2007).

Na praxis, o diálogo, enquanto “encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo” (Freire, 1968/2007, p. 91), é um ato de coragem, de amor. Constatando que qualquer ser é imperfeito, leva-os a uma busca eterna, num movimento de esperança explícito nos diálogos, mas também nos atos: “movo-me na esperança enquanto luto e, se luto com esperança, espero” (Freire, 1968/2007, p.95).

Tanto Freire (1967/1975, 1968/2007) como Pacheco (2010) desenvolveram algumas pesquisas com metodologias baseadas numa organização em “círculos”, fomentando o diálogo entre os participantes e a sua emancipação. No Brasil, em 1994, Paulo Freire concebeu a criação de “círculos de cultura” como método de alfabetização de adultos, no entanto a aplicação deste método remota ao início do século XIX, desde 1902, nos países nórdicos, nomeadamente na Suécia, através dos “círculos de estudo” (Pacheco, 2010). Nestes países, a organização destes círculos está associada ao desenvolvimento de uma democracia mais participada, discutindo problemas culturais, sociais e políticos (Pacheco, 2010). Em Portugal, em 1970, José Pacheco (2010) também concebeu o Projeto da Escola da Ponte, definindo de entre os objetivos, “operar transformações nas estruturas de comunicação e intensificar a colaboração entre agentes educativos e locais” (Pacheco, 2010, p. 12).

Como o papel de um educador se relaciona com o papel de um professor, as transformações que se podem desenvolver dentro de uma dinâmica de escola parecem ser emergentes numa sociedade em constante modificação, mas terão de ser analisados face às estruturas de poder. A própria organização de círculos prevê “o esclarecimento do modo como se opera a politização da cultura: o sistema de relações que se estabelece entre política, cultura e ideologia permite um re-situar permanente face ao social” (Pacheco, 2010, p. 121). Esta compreensão possibilita ao professor um posicionamento mais coerente e

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consciente face à complexa e imprevisível instabilidade característica dos fenómenos educativos.

Como Pacheco refere, num círculo “lida-se com dependências assumidas e problematizadas; não se alienam as estruturas profundas de desenvolvimento individual no quadro do coletivo, antes se agudizam os conflitos para, através destes, se testar as aparências da autonomia” (Pacheco, 2010, p. 117). Nesta oscilação, o professor que procura a sua emancipação vai (re)definindo o seu próprio conceito de educação, a perceção do seu papel como agente de transformação e da imagem de si mesmo e dos serviços de gestão: “Há professores que parecem pouco preocupados com a degradação da formação e das práticas, enquanto outros se insurgem e constroem verdadeiras culturas de resistência” (Pacheco, 2010, p.36).

A construção de uma cultura de resistência, no seio de um grupo de professores, permite-lhes descobrir a visibilidade das suas ações, enquanto seres humanos que lutam pela sua sobrevivência. Ao considerar o processo de produção de conhecimento numa perspetiva dinâmica, deve privilegiar-se a procura da objetividade social de um contexto. A produção do conhecimento não pode ser considerada estática, como se de uma fotografia se tratasse que estaria acima das ações do ser humano e dos seus ecossistemas (Mesquita et. al, 2011). Cada fato social deve ser compreendido com uma vertente de utilidade para a sociedade e para o indivíduo.

O fato de reconhecer, validar e tornar compatível todo o conhecimento (Mesquita, 2013), facilita o processo de resistência, neste caso, de professores, numa escola. As ações que se desenvolvem num “círculo de estudo” entre professores, implicam ouvir o que sabem e perceber o que fazem, tornando-os participantes num processo de transformação do conhecimento, respeitando a sua dinâmica:

Both human thought and the human capacity to think need to be respected and free. The degrees of freedom in this capacity are restricted by the extent that one’s wishes are in accordance with the wishes of others, and by the constraints of the ecosystem. Wishes are movements of knowledge production that involve all living species of the social world (Mesquita et. al, 2011, p. 46).

De acordo com Canário (2006), os professores numa escola deveriam fundar uma “comunidade de artistas” (Canário, 2006, p. 24), na medida em que constroem competências e reinventam práticas em contexto de trabalho. Para este autor, se fizermos tudo de acordo com as normas recomendadas pelas instâncias de trabalho, produz-se um

43 bloqueio dos processos de trabalho (Canário, 2006). Destaca então a possibilidade de os trabalhadores aceitarem beneficiar o trabalho com a sua inteligência individual e coletiva, “a partir de uma atitude de infração às normas estabelecidas” (Canário, 2006, p. 65). Numa dinâmica de formação na ação, os professores encontram-se a colocar em interação direta contrários, transformando as suas experiências vividas no cotidiano em aprendizagens.

A existência de movimentos de resistência de um professor justifica-se pelo desejo de se libertar de uma realidade que o condiciona, libertar de um regime de verdade que cria representações coletivas. Este é o desejo que procura a emancipação, como forma de libertação, na busca de uma transformação social:

The conditions of existence which are to be transformed are woven from the same cloth as the practice of transformation itself; that they are of the order of an “action upon an action”, and form part of an infinite network of “asymmetrical relations” between various powers, between dominations and resistances (Balibar, 2012, p. 15).

Esta possibilidade de transformação, implica a desestruturação e reestrutruração dos universos simbólicos dos professores. O universo simbólico do professor pode ser modificado quando este percecione, objetivamente, o que, para si, vale a pena transformar nas estruturas de dominação. Trata-se da reflexão sobre o regime de verdade de Foucault (2004), procedendo a uma análise crítica de todo o processo de enculturação. Tal como Popkewitz (2011) refere “é através da localização das mudanças nas regras da razão que podemos pensar sobre a mudança” (Popkewitz, 2011, p. 203).

Numa construção permanente do seu foreground, o professor, em busca da sua emancipação, conduz as suas ações apesar das incertezas e imprevisibilidades na (re)criação do seu universo simbólico. Neste processo de resistência corajoso, promove-se a transformação permanente de quem observa os professores e dos professores que são observados.

Considerando que os padrões de progresso nas escolas ainda estão por definir, “a mudança está na interrupção ou na perturbação (…) das formas de raciocínio e identidades [que] consolidam e ocultam relações de poder” (Popkewitz, 2011, p.203). O professor resistente, que vislumbra a sua emancipação e a emancipação social, orienta os seus movimentos numa procura constante dos desafios a transformar e, consciente da existência do poder, cria oportunidades de resistência.

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