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Parte III Resistência numa escola

1. O desafio etnográfico

O presente estudo etnográfico desenvolveu-se a partir de uma década de experiência no âmbito de docência no 1.º ciclo do ensino básico enquanto investigadora. Mas o interesse pelas questões políticas, sociais e económicas mais amplas, iniciou-se muito antes, desde os anos de licenciatura, enquanto participante em projetos organizados pela junta de freguesia e pela câmara municipal em bairros na periferia de Lisboa. Nesta altura, foram sendo cada vez mais evidentes as formas do poder exercer a sua influência e a presença de injustiças no mundo das crianças daqueles bairros, refletidas também nas estruturas institucionais que as mediavam.

Nestes vários projetos que não estavam diretamente organizados pela escola, esta instituição afigurava-se-me como um local que, de alguma forma, se afastava dos interesses e das expetativas que aqueles grupos de crianças manifestavam. A escola, naquela altura, começava a apresentar-se-me como um local onde as transformações pareciam urgir e as estruturas dominantes devessem ser questionadas. Mais tarde, enquanto estagiária, dentro de escolas muito diferentes entre si, questionava as atuações dos professores que observava e refletia sobre as minhas prestações enquanto atuava dentro de uma sala de aula. Eram experiências muito profícuas, pois os desafios à transformação eram constantes e todo o processo de resistência dentro de uma escola permitia sobretudo uma autoemancipação social. Mas nesta dinâmica de estágio, identificava muitas contradições nas estruturas de poder, enquanto definia a função de educadora dentro de uma escola. As brincadeiras com as crianças nos recreios, por exemplo, a jogar com elas, traziam depois alguma necessidade de ajustar a relação quando se entrava na sala de aula. Nestes conflitos, que representavam grandes desafios enquanto professora que ambicionava ser, foram sendo ajustados, encaixando-me num caminho que desejava seguir.

Nos primeiros oito anos de prática docente em duas escolas privadas, resisti nestas instituição dentro de dois sistemas sociais, económicos e políticos muito diferentes, refletindo sobre o papel de educadora que queria desempenhar dentro das funções de professora. Os desafios à transformação persistiam e reconhecia cada vez mais a

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necessidade de questionar um sistema que, por um lado não oferecia soluções e, por outro não permitia que eu as oferecesse. O maior desafio era conseguir que todos tivessem boas notas e para esse fim, a luta era constante.

Quando nos últimos dois anos tive a oportunidade de conhecer a realidade do ensino público, enquanto professora de apoio, reconheci os mesmos desafios das escolas do ensino privado e outros ainda se emergiam. No primeiro ano, a convivência com professoras que manifestavam dificuldades em resistir numa escola de um bairro da periferia de Lisboa, fez-me refletir sobre as formas que a resistência pode assumir dentro de uma escola e sobre a necessidade de encontrar o papel de um professor face aos desafios que urgem transformação. Algumas destas professoras, apresentaram baixas médicas e depressões devido, segundo as próprias, à dificuldade de assumir as suas funções de docência numa turma naquele contexto. No entanto, havia várias professoras que não as manifestavam. Então colocaram-se-me questões relacionadas com a resistência. Será que as professoras que não manifestavam dificuldades eram mais resistentes ou seriam as que menos resistiam? E haverá formas de resistir melhor na escola dos nossos tempos?

À data de ingresso na docência em escolas públicas, tive a oportunidade de ser mãe e, neste âmbito, uma série de reflexões sobre a educação me circundavam, concomitantemente com a minha atividade profissional. Nesse ano, passei a frequentar as aulas curriculares do mestrado e o meu interesse por estas temáticas foi determinando a temática deste estudo.

De acordo com o modelo de etnografia crítica de Carspecken (1996), citado por Mainardes & Marcondes (2011), antes de qualquer estudo deste cariz deveria ter-se interesse por um local ou problema social e, de acordo com o exposto anteriormente, a temática da resistência e do papel do educador/professor dentro de uma escola foi sendo estruturante ao longo dos tempos. Com a exploração deste universo de conceitos, refletia sobre os meus próprios valores, enquanto experiência de filha, aluna e em simultâneo, mãe, professora, educanda e educadora. Deveria assumir uma posição mais dominante, opressora sobre as crianças que lecionava, mantendo uma educação bancária, ou devia sujeitar-me a uma posição oprimida, dominada por um contexto escolar com uma cultura própria que já existia muito antes do meu ingresso. A luta pelo equilíbrio destas forças, o equilíbrio entre resistência e poder sempre esteve presente ao longo deste estudo.

61 No decorrer dos primeiros meses na escola onde se realiza o presente estudo, no qual me tentava adaptar a esta nova escola como professora contratada, aconteciam algumas conversas informais com as mais diversas pessoas: alunos e suas famílias, professores, auxiliares e outros técnicos como psicólogos e professores de ensino especial. Assumindo uma posição de investigadora participante, fui registando em diário de bordo algumas dessas conversas. Só assim começava a compreender um pouco da dinâmica cultural desta instituição, mas sobretudo da dinâmica deste contexto escolar, familiar, social e político. E foi também nestas conversas informais que comecei a fazer o levantamento do universo vocabular destes professores, que me foi útil aquando da programação do instrumento dos círculos de estudo.

Esta escola, destacava-se logo à partida das restantes escolas que já tive oportunidade de conhecer, porque tinha um grande número de professores que lecionavam há bastante tempo. O grupo de professores parecia mais coeso e mais sólido do que nas outras escolas, pois dava a entender que se conheciam todos muito bem. Apesar de haver professores mais novos, estes, quando desabafavam as suas angústias, eram acolhidos por todos que tentavam auxiliar com algumas palavras solidárias, como por exemplo, “Deixa lá, eu também tenho lá na sala um caso desses…”.

Eram estes professores mais antigos que pareciam dar estrutura a toda a escola e, sobre eles pairava um clima de respeito, de confiança, de reconhecimento de saber, que os destacava dos restantes professores. Quando havia alguma dúvida sobre um exercício do manual dos alunos, perguntava-se à professora mais antiga. Quando havia um caso de aluno mais difícil de lidar, recorria-se à opinião dos professores mais antigos. Quando por vezes se falava de um determinado aluno entre professores, eles pareciam conhecer algum aspeto mais concreto do percurso desse aluno. Mas esta relação entre professores, também se alimentava das novas ideias e boa disposição que aparecia do lado dos professores mais novos. Esta estrutura que este grupo de professores concedia a esta escola interessava-me, e parecia-me cada vez mais pertinente um estudo no sentido de compreender a forma como estes professores resistem na escola de uma forma tão fluída, tão natural. Estas eram formas de resistência que se revelavam, mas haveria outras por descobrir, por investigar… Numa oportunidade de divulgar a outros professores para que consigam igualmente resistir na escola com alegria.

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Por outras escolas onde tive a oportunidade de conhecer e lecionar, não conhecera um grupo de professores tão numeroso e, ao mesmo tempo, coeso. Nas escolas que conheci, quando havia professores mais antigos, estes não dialogavam entre si, não se relacionavam e, principalmente, não partilhavam a sua vida. Entendendo estes professores como um grupo que partilha, há alguns anos, a mesma realidade escolar e, por vezes, circunstâncias e desafios em comum, concebi uma investigação capaz de descobrir algumas formas que a resistência pode assumir.

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