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Movimentos espontâneos versus condicionamentos motores

No documento lailahgarberodearagao (páginas 101-103)

1 ELEMENTOS TEÓRICOS PARA A COMPREENSÃO DO ESTRANHAMENTO

4.2 A TÉCNICA APLICADA AO CORPO CONTEMPORÂNEO

4.2.4 Movimentos espontâneos versus condicionamentos motores

O último elemento que integra a constituição da técnica do ATS, são os folclores árabes, estando presentes na musicalidade, nos figurinos e no toque dos instrumentos percussivos de dedos chamados Snujs. O ATS possui dois repertórios de passos a serem executados quando a condução musical é lenta ou rápida, sendo que a influência folclórica sobre os movimentos no repertório rápido é bastante presente, refletindo expressões de alegria e espontaneidade, enquanto o lento transmite uma possibilidade dramatúrgica maior.

É um fator marcante nas danças folclóricas os elementos de espontaneidade e alegria, sendo uma reação expressiva do corpo ante as questões vivenciadas por determinada sociabilidade. Um exemplo dessa resposta corporal ao cotidiano se expressa no folclore libanês Dabke, onde os homens começaram a ritmar o trabalho de “bater laje” com os pés, surgindo uma estética própria que se aprimorou com os anos de tradição, sendo hoje em dia dançado em casamentos, celebrações e festas de família. Outro exemplo são as danças derivadas de povos ciganos que, de modo a festejar a alegria em grupo, batem palmas, rodam saias, etc. Assim, surgiram inspirações motoras que, com o passar do tempo, foram transformadas em técnicas ensinadas em salas de aula.

O processo de uma formação de técnica de dança não se dá diante de uma folha em branco, mas sim, a partir de experimentações corporais, espontaneidade, emoções e subjetividades impressas nos movimentos, compondo, assim, uma

estética artística. Cada dança age como transmissora de uma situação social em que foi originada. A partir do conhecimento comum, por exemplo, o samba representa a expressão da dança da sociedade brasileira e o flamenco uma dança que provém da Espanha. Tais danças, que hoje possuem suas respectivas técnicas de ensino, foram criadas a partir de um momento social que desponta de uma espontaneidade onde tais linguagens artísticas dialogam com os processos societários que ocorriam concomitantemente.

Dessa forma, trazer o contato de elementos do folclore árabe para alunas que estão aprendendo a expressar uma nova dinâmica motora para o corpo, é propor a aproximação de um agir distinto pautado em ações autênticas e orgânicas, diferente das repetições não-artísticas nem tampouco realizadas com espontaneidade, mas sim, através de um comportamento de automação.

Tais alunas enquanto sujeitos sociais estão submetidas cotidianamente a necessidades de adequação às dinâmicas do capital que se sobrepõem as vontades humanas. Assim, deparam-se com um corpo que responde a determinados condicionamentos que limitam a espontaneidade, iniciamos um processo de consciência e desconstrução de tais limitações. Os depoimentos narrados ao longo das aulas mencionam as tensões musculares como um dos maiores sintomas de restrição dos movimentos autênticos, pois a movimentação dinâmica e realizada a partir da liberdade da intenção junto ao movimento, não encontra caminhos quando tais tensionamentos representam bloqueios na motricidade.

Entretanto, é possível resgatar um movimento orgânico e autêntico diante das proposições de jogos corporais e dinâmicas de criatividade para se chegar a técnica. Não aponto nesse estudo que a técnica, junto a consciência histórica que possui, seja suficiente para transformar a constituição corporal e o esquema de movimentos que uma pessoa possui. Os caminhos didáticos como instrumentos que auxiliam a apropriação anatômica e criativa do corpo, permitem um horizonte de ruptura com as restrições advindas dos condicionamentos da sociabilidade do capital e apresentam dimensões inusitadas e desconhecidas da personalidade no que se refere ao aspecto da corporalidade. Ao fim, diante do aprendizado técnico, a improvisação coordenada emerge como possibilidade de surgir uma dança única e espontânea, independente de coreografias para que se desenvolvam movimentações em grupo.

Finalmente, as quatro bases constitutivas do ATS representam elementos que se fundem de modo a proporcionar, não somente um contato com movimentos novos, mas sim, influxos de outras formas de visualizarem seus corpos realizando posturas e passos que não condizem com o desenvolvimento de um corpo perante as limitações próprias da sociabilidade do capital.

Assim, todas essas intersecções étnicas quando transmitidas para as alunas sob a forma de movimentos técnicos, são trazidos por mim a partir de atividades que os antecedem, tendo em vista que são uma configuração corporal, também. Partimos de um corpo configurado pela sociabilidade do modo de produção capitalista e, ainda que as configurações advindas do ATS proporcionem uma forma mais satisfatória de relacionamento com as possibilidades corporais, também se apresentam como um sistema. Compreendo que se faz muito importante apresentar um processo de desconstrução das limitações motoras advindas da sociabilidade que estamos inseridos, dentro do que é possível em duas horas semanais de aula, para, em seguida, apresentar a estética do movimento que se distancia com muita profundidade das capacidades corporais disponíveis no momento do aprendizado.

É importante mencionar que são muito recorrentes depoimentos de alunas que procuram as aulas dizendo que querem dançar, mas que nunca irão conseguir realizar os movimentos como a professora faz porque são “duras” e “desajeitadas”. Entretanto, tal julgamento decorre de um cotidiano escasso de alternativas para que elas se percebam de outra maneira. Assim, ao longo do desenvolvimento das aulas, os caminhos pedagógicos desafiam a restrição interposta pela sociabilidade e apresentam novas possibilidades, que se manifestam de modo a desestranhar a dimensão corporal daquelas alunas.

No documento lailahgarberodearagao (páginas 101-103)