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3. A Rua em Movimento

3.1 Movimentos sociais: considerações gerais

“O desenvolvimento explorador e espoliativo do capitalismo, a massificação das relações sociais, o descompasso entre o alto desenvolvimento tecnológico e a miséria social de milhões de pessoas, as frustrações com os resultados do consumo insaciável de bens e produtos, o desrespeito à dignidade humana de categorias sociais tratadas como peças ou engrenagens de uma máquina, o desencanto com a destruição gerada pela febre de lucro capitalista etc., são todos elementos de um cenário que cria um novo ator histórico enquanto agente de mobilização e pressão por mudanças sociais: os movimentos sociais” (Gohn, 1988, como citada em Gohn, 2012, p. 20).

Existem diversos movimentos sociais, cada qual com suas características, podendo

ser semelhantes ou não entre si. Grupos movidos por ideais específicos, alguns temporários,

outros duradouros, alguns compostos por grupos pequenos, outros por milhões de pessoas;

há movimentos reivindicatórios, culturais, religiosos, políticos, de classe, dentre outros

(Giddens, 2013). Os movimentos sociais surgem com o objetivo de trazer à tona

determinado tema ou assunto de interesse público. Lutam por transformações e pelo

reconhecimento político de causas específicas. Constituem-se em ações coletivas

organizadas, que podem gerar na sociedade, a longo prazo, alterações políticas e mudanças

culturais e legislativas, em um determinado contexto histórico. Giddens (2013) traz

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aprovação da legislação que ilegalizou a segregação racial em escolas e locais públicos, bem

como os movimentos LGBT ou LGBTTT16 que apresentam como pauta a luta contra a homofobia, e o reconhecimento legal da união entre pessoas do mesmo sexo.

Há objetivos e ideais de determinados grupos que não podem ser alcançados, ou

então são claramente inviabilizados por meio da estrutura política de seus países, em um

determinado tempo e contexto histórico. Dessa forma, a mudança política e social só pode

ter lugar através do recurso às formas de ação política não ortodoxas, como as revoluções

ou os movimentos sociais (Giddens, 2013). Sendo assim, alguns grupos da sociedade civil

organizam-se através dos movimentos em busca da cidadania coletiva. Assim sendo, os

movimentos sociais surgem como organização de esforços coletivos para reivindicar um

interesse ou defender um objetivo comum, fora da esfera das instituições estabelecidas. É

necessário demarcar, também, que os movimentos sociais são mecanismos de reivindicação

popular que devem estar endereçados a um projeto de transformação da sociedade pois a

fim de não se constituírem como instrumentos de reificação da sociedade burguesa. Para

tanto, deve-se levar em consideração que o horizonte de qualquer movimento social anti-

capitalista é a supressão da sociedade burguesa e não a busca de ajustes que conformem a

classe trabalhadora à ordem do capital. Neste sentido, o horizonte tático dos movimentos

sociais deve buscar atender demandas imediatas da classe trabalhadora, de modo que estas

possibilitem reformas sociais que, de algum modo, possam criar bases para processos

maiores de transformação.

16 Sigla abreviatura de: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Movimento Social que luta pelos direitos civis dessa população.

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Para Gohn (2012), os movimentos sociais estão diretamente relacionados aos

processos de mudança e transformação da sociedade, e relacionam-se também à questão da

cidadania e à noção dos direitos. Dito isso:

A cidadania coletiva se constrói no cotidiano, através do processo de identidade

político-cultural que as lutas cotidianas geram. À medida que o capitalismo se

consolida, as lutas sociais vão deixando de ser apenas pela subsistência e surgem

concepções alternativas dos direitos (Gohn, 2012, p. 21).

A noção de cidadania trazida pela a autora exerce o sentido de obrigação moral, de

disciplinamento, para o convívio social harmônico entre todos os cidadãos. Por sua vez, a

pessoa civilizada corresponde justamente a que exerce domínio de si na convivência grupal,

sendo capaz de viver harmoniosamente na sociedade. A construção da cidadania coletiva se

realiza quando, identificado os interesses opostos ao do grupo estabelecido, parte-se para a

elaboração de estratégias de formulação de demandas e táticas de enfretamento dos

oponentes (Gohn, 2012). A definição de “direito”, também mencionada, pode ser

compreendida através de diversos conceitos. No dicionário17, a palavra é explicada como o conjunto de normas/leis estabelecidas por um poder soberano, que disciplinam a vida social

de um povo. Além desse, há também outros dois conceitos: o direito natural e o direito

positivo.

Nader (2017) define como direito natural aquele que se origina na natureza social do

homem, não sendo definido pelo Estado, tampouco criado pela sociedade; refere-se ao

direito espontâneo como o direito à vida, à liberdade. Para o autor, são princípios

fundamentais de proteção ao homem que estão contemplados na legislação, a fim de que se

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tenha um ordenamento jurídico minimamente justo no país. O segundo conceito, o do direito

positivo, refere-se àquele institucionalizado pelo Estado, é a ordem jurídica obrigatória em

determinado tempo e lugar, como por exemplo, o Código Civil e o Código Penal. O direito

positivo está subordinado ao direito natural. Essa relação pode ser compreendida através da

seguinte hipótese: se usássemos a lei que caracteriza o homicídio como crime, partindo do

preceito real de que a vida humana é um bem, veríamos, portanto, que a lei positiva

corrobora e afirma o direito natural da vida (Nader, 2017).

Há, no Brasil, diversos movimentos sociais que, possivelmente, sem ter consciência

disso, reivindicam por direito natural e positivo concomitantemente. A relação existente

entre tais conceitos, nos movimentos sociais, pode ser percebida ao conhecermos

detalhadamente certos grupos, quais as premissas de organização do movimento e as pautas

de luta. É o caso do Movimento Mães de Maio, formado em 2006, após o assassinato de 564

pessoas por agentes de segurança do Estado de São Paulo. Os agentes e a própria mídia

difundiram a informação de que a ação policial na comunidade se tratava de uma resposta

aos chamados ataques da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), que acometeu 59

mortes de agentes públicos no mesmo mês. Tais ações resultaram em uma cega e desmedida

chacina, vitimando jovens ligados ou não à facção, sobretudo, jovens pobres-negros e afro-

indígena-descendentes, executados sumariamente por policiais e grupos de extermínio

ligados ao estado (Movimento Mães de Maio, 2011).

Desde a ocorrência deste lamentável episódio, o Movimento supracitado tem

protagonizado lutas políticas em busca de justiça, reivindicando a liberdade e o direito à vida

de jovens negros, pobres e provenientes das periferias. Além disso, aspiram o julgamento

dos agentes envolvidos na ação, daí o caráter do direito natural e positivo do movimento.

Infelizmente, não há sequer um caso de policiais que tenham sido devidamente investigados,

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que pese quase todas as mortes da referida chacina não terem sido esclarecidas, o

Movimento segue firme, pressionando o Estado ao longo de quatorze anos de atuação e luta,

empenhando-se pela efetivação de processos criminais devidamente reconhecidos e

julgados, divulgando informações pertinentes à sociedade, em especial às mães e familiares

das vítimas do massacre, promovendo palestras e encontros de combate aos crimes do estado

ocorridos durante o período democrático, transformando-se em referência para outras

famílias e outros segmentos do Brasil.

Assim como o Movimento Mães de Maio luta pelo fim dos ultrajes, violências e

mortes em decorrência da ação policial, o Movimento da População em Situação de Rua

também se caracteriza como organização de reivindicação por direitos naturais e positivos

– pela liberdade, pelo direito à vida, e à dignidade humana. Por isso, vem travando constantes embates sobre questões de violações de direitos sofridas pelo segmento, não

apenas através da ação de agentes do estado, como também por meio de atitudes e crimes

praticados pela própria sociedade civil. O descaso no julgamento de crimes contra a

população em situação de rua ainda é algo constante no contexto político brasileiro. Há

vários relatos e matérias disponíveis em diversos canais de informação que comprovam isso.

Não são poucos os noticiários sobre ataques ao segmento nas diversas cidades do país. Por

vezes, os crimes são simplesmente esquecidos ou tratados com pouca seriedade, e

justificados de maneira preconceituosa e desumana. Por essas e outras razões, o Movimento

tem se organizado para levar à sociedade informações acerca dessas pessoas, na tentativa de

conscientizar e de sensibilizar a todos(as) contra novos episódios de tortura e massacre do

segmento. Para além disso, ressaltam a importância da criação de políticas públicas para

efetivação dos direitos da população em situação de rua, levando em consideração o que está

previsto na Constituição Federal sobre o reconhecimento de todas as pessoas perante a lei

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Blumer (1969) acredita que qualquer tipo de movimento social é motivado pela

insatisfação, e pela procura de mudança de alguns aspectos da sociedade, na tentativa de

construir novas configurações. Este autor acredita que:

A trajetória de um movimento social representa a emergência de uma nova ordem de

vida. No início, um movimento social é amorfo, mal organizado e disforme. O

comportamento coletivo encontra-se no nível primitivo... À medida que um

movimento social se desenvolve, vai assumindo o caráter de uma sociedade, adquire

organização e forma, um corpo de costumes e tradições, uma liderança estabelecida,

uma divisão do trabalho, regras e valores sociais duradouros, em suma, uma cultura,

uma organização social e um novo sistema de vida (p. 8).

A teoria de Blumer destaca aspectos importantes sobre os movimentos sociais: a

existência de duas faces da interferência que as ações coletivas podem causar na sociedade,

podendo ser “ativas” ou “expressivas”. O autor explica que Movimentos “ativos” são

orientados para o exterior, tendo em vista a transformação da sociedade. Em contrapartida,

os movimentos “expressivos” atuam principalmente na transformação interior dos seus participantes. Nesta perspectiva, pode-se considerar que há aspectos “ativos” e

“expressivos” referentes a atuação do Movimento da População em Situação de Rua sob os militantes e ativistas envolvidos. Pois, ao promulgar pautas reivindicatórias, levando em

consideração interesses próprios do segmento, que não restringem-se, porém, apenas ao

segmento, coopera na construção de uma sociedade menos excludente e mais justa, a medida

que implica também na transformação indenitária dos militantes que passam a reconhecer-

se como sujeitos de direitos – transformando suas próprias percepções acerca de si mesmos.

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Ao longo do tempo, é esperado que o movimento social amadureça e, assim, a

dimensão da organização política do grupo seja estabelecida. Tal dimensão constrói-se por

meio da consciência adquirida, progressivamente, sobre quais são os direitos e os deveres

dos indivíduos, quais são as questões pelas quais se lutam, o que se almeja alcançar, quem

são os parceiros e os oponentes da causa. A partir desses pressupostos, o grupo fortalece

questões coletivas que orientam a atuação do movimento, disseminando uma cultura interna

entre os integrantes, que é propagada entre os que já estão, e os que chegam.