No esteio da recuperação do ensino de Aristóteles nas universidades europeias através de suas obras reintroduzidas na Europa pela via das invasões árabes, objetos que escapavam ao dualismo cristão/pagão, sagrado, profano segundo o esquema de classificação católico e que, segundo Pomian (1977-1984/1984) eram considerados “desperdícios,” passam a ser considerados como algo digno de interesse. Pomian coloca os primórdios desta mudança de atitude na segunda metade do século XIV, época em que “começam a surgir na Europa ocidental novas atitudes no que respeita ao invisível, e especialmente ao passado, às partes conhecidas do espaço terrestre, à natureza.”25 Eram objetos – naturais ou não – que estavam, até então, à margem de qualquer esquema de observação e classificação. A mudança na metafísica influente passou a tornar novamente plausível voltar os olhos para outros fenômenos que não somente os religiosos. Consequentemente na Europa passaram a ser estimulados levantamentos e pesquisas de manuscritos que tratavam de obras antigas, descobertas em bibliotecas e arquivos de monastérios e palácios. Esses manuscritos eram copiados e recopiados inúmeras vezes até serem publicados; esta [tendência] fazia também com que se recolhessem inscrições antigas e moedas, se desenterrassem obras de arte e todos os outros vestígios da Antiguidade26.”
25
(POMIAN 1984, 75)
26 (REYNOLDS E WILSON 1968; WEISS 1969 apud POMIAN 1977-1984/1984, 76). Em maio de 2000,
participando de uma conferência no Museu do Louvre em Paris, tive a oportunidade de assistir a um debate acalorado entre um historiador da arte sentado a plateia e a palestrante que discorria sobre a restauração de antiguidades gregas. Segundo ela, era um hábito comum o enterro de estátuas ao redor dos templos durante períodos de guerras ou mesmo de sua renovação. Algumas dessas estátuas jamais foram desenterradas até o início das escavações modernas. Voltando à polêmica, esta se deu porque a
pesquisadora apresentou resultados que apontavam vestígios de pigmentos de cores vivas em estátuas recém desenterradas, o que levou à conclusão científica de que elas eram coloridas. Esta revelação provocou a polêmica com o historiador, cujas convicções que provavelmente tinham sua raiz no século
O fenômeno merece atenção, pois passa-se algo de muito interessante: os desperdícios transformam-se em semióforo. Com efeito, os vestígios da antiguidade tiveram durante séculos o caráter de desperdícios: salvo as peças excepcionais que, tidas em geral por relíquias, encontraram abrigo nos tesouros das igrejas ou dos príncipes (como, por exemplo, as gemas e os camafeus antigos), estes vestígios não tinham significado nem utilidade e não circulavam entre os homens, que não os procuravam. (POMIAN 1977- 1984/1984, 76)
Outra categoria de semióforo que tem fundamental interesse para nossa pesquisa são as pinturas e a arte que
acede a partir do século XV a uma dignidade que não tinha antes, é constituída por quadros e geralmente por obras de arte modernas. O novo estatudo das obras de arte baseia-se na vinculação à natureza concebida como fonte de beleza, e portanto, como única capaz de dar a um objeto produzido pelos homens os traços que lhe permitem durar: com efeito as obras dos antigos que sobreviveram aos estragos do tempo não podem ser devedoras senão da natureza.
...
Mas, qualquer que seja a maneira em que se a conceba [a natureza], e quaisquer que fossem as divergências sobre o papel da arte (que, segundo uns, deve aplicar-se apenas a visualizar o invisível, enquanto que, segundo outros, pode simplesmente representar aquilo que se vê), estava entendido que apenas a arte permite transformar o transitório em durável. Noutros termos: o que se representa tornar-se-á mais cedo ou mais tarde invisível, enquanto a imagem, essa permanecerá. O artista aparece então como um personagem privilegiado na medida em que é capaz de vencer o tempo, não mediante um salto para a eternidade, mas no interior do próprio mundo profano, estando na origem de obras que são simultaneamente visíveis e duráveis, contanto que estejam de acordo com a natureza. (POMIAN 1977-1984/1984, 77)27
XVI, de que antiguidades clássicas estavam ligadas às esculturas de mármore branco sem nenhuma
policromia.
27Pomian utiliza aqui o termo “artista” no sentido moderno, como um produtor autônomo de obras de
arte. Para um resumo da evolução do papel desse personagem na sociedade, consultar A sociologia da arte de Nathalie Heinich (2001/2008, 58-59). Estudando a passagem “do pintor a artista” a autora
“reconstitui as mutações do status do artista entre a Renascença e o século 19, em função de três tipos de
regime de atividade que se sucederam e, por vezes, se sobrepuseram: o regime artesanal do ofício, que dominou até a renascença; o regime acadêmico da profissão, que reinou do Absolutismo à época impressionista; e o regime artístico da vocação, que surgiu na primeira metade do século 19 para
Prosseguindo em seu raciocínio, Pomian coloca o artista como importante instrumento dos soberanos e dos indivíduos situados no alto da hierarquia do poder que aspiram “não só à vida eterna, mas também à glória, isto é, uma fama duradoura cá embaixo, entre os homens.” As guerras e suas conquistas, deixadas por sua conta podem desaparecer. É mister registrar os feitos de maneira visível e durável.
Figura 12 Árvore da família Babenberg. Hans Part, 1492. Klosterneuburg, Áustria. Detalhe: Adalberto na batalha contra os húngaros, com Melk ao fundo. © IMAREAL, ÖAW Fonte: http://geschichte.landesmuseum.net/get_Bild.asp?ID=26291250&art=Original
Na Abadia de Klosterneuburg, Áustria, está o tríptico pintado entre 1489 e 1492 por Hans Part. Em seu painel central está representada a árvore genealógica com cenas de todos os homens da família Babenberg. Uma dessas cenas “retrata” a batalha que o
Marquês Adalberto travou contra os húngaros no século XI (Figura 12). Pintada com quase 500 anos de diferença entre o ocorrido e sua representação, a cena insere-se no contexto maior de ressaltar os grandes feitos de cada um dos marqueses desde a fundação da dinastia no início do século IX. Os temas sacros com a representação de cenas da vida dos apóstolos e santos, neste exemplo, cedem lugar às realizações do homem. Para assegurar essa representação, passa a ser um dever dos príncipes, principalmente daqueles que aspiram a uma verdadeira glória, a proteção das artes. “Por isto, os príncipes tornam-se mecenas e, portanto, colecionadores28; o lugar que ocupam obriga-os a ter gosto, a atrair artistas às suas cortes, a rodearem-se de obras de arte.”29 Mas não só o príncipe desempenha esta função. Ela também passa a ser exercida por toda a alta hierarquia do poder.
De qualquer modo, para bem desempenhar o papel que lhe cabe, o indivíduo com um alto lugar na hierarquia do poder deve participar numa corrida à melhor oferta, cujos objetos são tanto os próprios artistas como as obras que produzem, e cuja aposta é uma superioridade no plano do significado que se garante ligando a si os primeiros e rodeando-se das segundas. (POMIAN 1977-1984/1984, 78)
As coleções de obras de arte como as entendemos desde o século XVI serão tratadas a partir das coleções da Idade Moderna.