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INTRODUÇÃO

A transformação ambiental, tal como definiu Angelo Panebianco (2005), é um fator fundamental para a mudança organizativa dos partidos políticos, que promovem alterações na sua linha política original, e renovam sua elite dirigente - ou sua ―coalizão dominante‖, nos termos daquele autor -, visando uma adaptação estratégica a um novo ambiente político, institucional, econômico, cultural, e/ou social. Partindo desta perspectiva, podemos compreender como os partidos políticos têm contribuído para o reposicionamento do panorama ideológico contemporâneo, impactando a tradicional clivagem política ―esquerda-direita‖. As transformações no campo das ideologias, portanto, sob uma perspectiva dos partidos políticos, devem ser entendidas como uma tentativa de adequação estratégica a uma precedente transformação estrutural.

Nas últimas décadas, temos assistido a transformações estruturais radicais. Alteram-se a organização econômica, a institucionalidade política, as formas de comunicação, o comportamento e os valores individuais e coletivos, ao tempo que surgem novos grupos e desenrolam-se interesses e problemas originais. Como sempre na história da humanidade, o desenvolvimento de um novo paradigma tecnológico, o da micro-informática digital, tem sido um importante vetor para estas transformações amplas, mesmo sem desconsiderarmos a importância e autonomia das variáveis políticas. Correndo certo risco, poderíamos afirmar que a sensação corrente é de que a ―história se acelerou‖, aproximando pessoas e realidades sociais díspares e, até, milenarmente excludentes. Por vivermos agora em uma ―aldeia global‖ - tese tão contestada quão popular -, as transformações estruturais têm avançado a passos largos, e o mundo contemporâneo seria inimaginável para qualquer observador que ousasse, há três ou quatro décadas, imaginar o futuro sem abrir mão dos seus olhos de ―personagem da Guerra Fria‖. Sobre o Estado-nação, a forma típica de organização política da modernidade, os impactos globalizantes desta nova ordem social se fazem evidentes, já que boa parte dos novos problemas vivenciados pela humanidade contemporânea tem dimensão global – por exemplo, a questão ecológica, os direitos humanos e, até mesmo,

86 a economia e as relações de trabalho. Da mesma forma, estes problemas impactam a democracia, ao mesmo tempo, um regime político e um projeto de sociedade fundado em bases nacionais. No plano global, onde se situam as novas relações sociais e onde emerge uma pungente ―sociedade civil‖ (o que, também há algumas décadas, pareceria conceitualmente contraditório para as ciências sociais, que opunham dicotomicamente ―sociedade civil‖ a ―Estado‖), há um déficit tremendo de mecanismos de governança democrática.

No campo da política propriamente dita, e dentro do mesmo processo social, assistimos a um momento de profunda redefinição. Há 20 anos, testemunhamos a falência do paradigma clássico da esquerda do século XX, originário na União Soviética, e fundado no controle central da economia e da sociedade. A ineficiência, a falta de participação democrática, de possibilidades de escolha individual e de competição e, até, a corrupção, qualificativos associados ao modelo econômico do ―socialismo real‖ (NOVE: 1989; SINGER: 1998), são incompatíveis com a flexibilidade e a inovação permanente características deste novo paradigma tecnológico. Da mesma forma, o controle central da informação, do pensamento e da atividade política e cultural, típicas do ―socialismo real‖, são praticamente impossíveis em épocas de internet e de cultura digital, com suas redes sociais virtuais de alcance inimaginável e improvável. Considerando-se a outra forte tradição da esquerda do século passado, a social-democracia européia ocidental, sua crise está associada à crise do keynesianismo, paradigma econômico que também se baseia na forte intervenção do Estado-nacional na economia, mesmo que sem o grau de controle que se assistia no caso soviético. Tudo isto pôs em cheque a esquerda política, que teve que se reinventar no final do século XX, buscando incorporar estas demandas democráticas e globalizantes, bem como as novas temáticas valóricas que inspiraram os chamados ―novos movimentos sociais‖, como os direitos humanos, o feminismo e a ecologia.

Na União Soviética, o aparecimento de uma nova coalizão dominante, liderada por Mikhail Gorbatchev, disposta a radicalizar no processo de glasnost, foi fundamental para a definição dos caminhos percorridos pelo trem da história mundial nos últimos vinte e cinco anos. Igualmente, na China pós-maoista, o aparecimento de uma coalizão dominante disposta a radicalizar na perestroika, associando-se ao livre mercado global de acordo com seus interesses nacionais, e sem abrir mão do controle político da sociedade, contribuiu decisivamente para dar o tom dos novos tempos. O que hoje assistimos na Rússia pós-soviética, na China pós-maoista e, inclusive, na Cuba de Raul

87 Castro, está longe de representar o clássico paradigma do socialismo real do século XX no seu conjunto.

Por outro lado, a resposta que a direita procurou dar à crise da esquerda - o neoliberalismo que, associado à democracia liberal ―clássica‖, desprovida de obrigações sociais, resultou na filosofia hobbesiana do ―fim da História‖ - entrou em crise neste final da primeira década do século XXI. A tese do ―fim da História‖ entra em crise após se fazer hegemônica por três décadas, incorporando, inclusive, parte significativa da esquerda que, como veremos, surfou nesta onda e passou a fazer do livre mercado sua orientação estratégica. Nos dois últimos anos, estamos vivenciando uma crise econômica de proporção global, cujo epicentro foi o sistema financeiro dos países hegemônicos do sistema capitalista – justo o setor da economia que os experimentos neoliberais, desde Thatcher e Reagan, esforçaram-se por desregulamentar, criando um novo ambiente econômico virtual que, agora, se mostra completamente etéreo, mas que tem imposto conseqüências profundas no mundo da economia ―real‖, o setor produtivo. Como conseqüência desta crise econômica, a produção e o consumo se desaceleraram, e aumentaram ainda mais os níveis de desemprego, que já eram altos desde o começo da onda neoliberal. Surpreendentemente, como resposta à crise, ressurgem as políticas keynesianas, as estatizações e o protecionismo nacional – justo elas que tanto a direita como as esquerdas (desde a ―nova social-democracia‖, como diz Giddens, aos remanescentes do marxismo, como Negri e Meszáros) proclamavam como mortas e enterradas.

A compreensão deste cenário global de transformações é fundamental para o bom entendimento, portanto, das mudanças organizativas (PANEBIANCO: 2005) que vêm enfrentando os partidos políticos. Para os partidos políticos da esquerda contemporânea, portanto, enfrentar os dilemas impostos pela globalização e pela democracia é o ponto central para sua renovação. Neste capítulo, portanto, vamos fazer uma apreciação do atual estágio do debate teórico sobre estes dois temas. Julgamos esta tarefa fundamental para nossa tentativa de compreensão da esquerda contemporânea.

3.1 - A TEORIA DEMOCRÁTICA E OS DILEMAS CONTEMPORÂNEOS

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