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2. BREVE HISTÓRICO SOBRE A MULHER NO BRASIL: EMANCIPAÇÃO,

2.4 MULHER E VIOLÊNCIA NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Compreendemos os meios de comunicação como um ambiente de construção, representação e mediação de valores e visões de mundo. A mídia, vista como um palco de visibilidade pública é também um espaço de disputa de valores, agendamento de temas para o debate público e, também, consolidação e violação de direitos (FERREIRA et al., 2011). Do mesmo modo, o seu discurso, inserido em determinado contexto histórico, cultural e político produz e legitima relações desiguais de poder, como discutimos anteriormente.

Conforme destacado pela pesquisadora Tânia Cordeiro (2001), ao construir determinado discurso sobre a violência, o jornalismo atualiza o próprio significado da violência, mobilizando determinados valores e práticas que delimitam o que deve ser considerado como crime, suas causas e suas soluções. Também posiciona os próprios cidadãos enquanto vítimas, agressores ou agentes da lei no interior da narrativa. São capazes de transmitir normas de conduta e de relação entre os indivíduos e as instituições (CORDEIRO, 2001). Nesse contexto, através da adoção de determinadas estratégias discursivas sobre a violência, os veículos buscam, por um lado, conquistar a confiança do leitor, mostrado que são capazes de colher os fatos de maior relevância, bem como de explicá- lo. Trata-se, portanto, de uma relação contratual (CHARAUDEAU, 2010; VERÓN, 2004), que busca captar a audiência, manter uma relação de cumplicidade, e atualizar o contrato caso seja necessário. Segundo Cordeiro (2001), é nesse espaço das estratégias discursivas que está inscrito o modo como a violência é apresentada, contribuindo para a construção de determinadas representações sociais sobre o crime, as pessoas envolvidas em sua prática e a sua coibição.

Entretanto, não é apenas na cobertura jornalística da violência em si que os meios de comunicação são capazes de legitimar a violência contra a mulher. Como discutido ao longo deste capítulo, é a construção simbólica que, por exemplo, posiciona as mulheres como objeto no interior das relações de gênero, que alimenta a situação de violência. Embora não tenha sido foco desde trabalho, é importante observar não somente a cobertura do tema em si

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Autores como Eliseo Verón (2004) e Patrick Charaudeau (2010) trabalham com o conceito de “contrato” na análise do discurso dos meios de comunicação. Segundo esta perspectiva teórica, a comunicação midiática põe em relação de cooperação duas instâncias – a de produção e a de recepção. O contrato pressupõe limitações – coerentes com o pacto com o público - e estratégias que visam à conquista de credibilidade junto ao público.

(violência) pela mídia, mas os modelos e representações que são construídos e reforçados em toda a programação ou na cobertura de outros assuntos pelos veículos.

Depois de um breve levantamento34 em veículos de circulação nacional como a Folha de S. Paulo e de outras publicações como a Última Hora e a Revista Cruzeiro que estão disponíveis na internet, pudemos perceber que os casos de violência contra a mulher estiveram presentes em suas páginas ao longo do tempo – identificamos matérias desde a década de 1920 no acervo da Folha de S. Paulo, sobretudo nas notas policiais. A repercussão era maior quando se tratava de personalidades conhecidas na época – como no caso do Jóquei Claudio Ferreira, em 1930 (FOLHA DA MANHÃ, 23/5/1930) – ou em casos envolvendo toda a família (ver Figura 02), nos quais os crimes eram vistos como injustificáveis. O subtítulo da matéria explica o porquê de o caso ter se tornado “o maior crime dos últimos tempos em S. Paulo”: o próprio “chefe da casa”, de quem se espera proteção, assassinou toda a família “a golpes de punhal”. É esse deslocamento que trouxe a repercussão ao caso. O discurso se apoia no tensionamento entre o assassinato da família e o papel de proteção articulado ao signo “chefe da casa”.

Figura 02 – Título da matéria de Folha da Manhã de 01 de outubro de 1940, p.7.

Justamente pelo contexto conservador, no qual às mulheres cabia permanecer em casa, submissas ao marido ou ao pai, os casos de violência que envolviam mulheres que não se enquadrassem no padrão vigente eram quase que explicitamente justificados. O assassinato de uma adolescente de 15 anos, vítima de estrangulamento, no Rio de Janeiro, em 1956, publicado no jornal Última Hora, ilustra bem este discurso que determina o comportamento da vítima como causadora de sua morte. O enunciador posiciona Cidinéia como sujeito: ela é a culpada pelo assassinato, causado por seu “temperamento impulsivo” ou por se “perder com desocupados”. Ao posicionar a vítima como responsável, é construída, paralelamente, a própria causa da violência – o comportamento inapropriado, que demanda uma solução

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É importante ressaltar que não fizemos um levantamento rígido, seguindo critérios de pesquisa de análise conteúdo. Apenas identificamos alguns casos que poderiam servir de ilustração para o presente trabalho.

apenas individual. Também é apagado da narrativa o papel do agressor – como se este fosse o fim natural para alguém que mantinha “uma vida irregular”.

O que se sabe em torno de Cidinéa é que foi criada em companhia de seus avós quase septuagenários e, portanto, incapazes de controlar o temperamento impulsivo da mocinha que acabou se perdendo com desocupados nas imediações da casa em que aqueles moram [...]. Isso aconteceu depois de ter ela fugido do Serviço de Assistência a Menores, pois passou a ter uma vida irregular, sendo vista em companhia de vários desclassificados com os quais mantinha relações amorosas (ÚLTIMA HORA, 02/ 7/1956, p.6).

Discurso diametralmente oposto ao anterior é assumido pela revista O Cruzeiro, ao cobrir o assassinato da jovem Aída Cúri, em 1960, também na capital carioca. Entretanto, a lógica permanece a mesma: a memória de Aída merecia ser defendida naquele contexto, por ela se enquadrar nos padrões morais vigentes. Na noite de 14 de julho de l958, a jovem de 18 anos foi jogada de um prédio de 12 andares, em Copacabana. A revista dedicou várias páginas à cobertura das investigações, assumindo um posicionamento explícito contra os acusados. Na edição de 30 de maio de 195935, o jornal defendera uma “cruzada pela impunidade”, dedicando a reportagem às “mocinhas, mesmo às mais sensatas, lembrando que a virtude precisa ser protegida” (NASSER, 1959, s./p.).

A violência, o latrocínio, a morte fria campeiam impunemente pela cidade - e não se vê uma atitude decisiva, um grito de advertência, como se estivéssemos acostumados a isto, como se tudo fôsse natural. A impunidade forja os maus exemplos. Novos bandidos surgem. Novas quadrilhas de marginais se formam - e a impunidade continua. O Chefe de Polícia pode fazer justiça, fazer limpeza, livrar a cidade de assassinos irrecuperáveis - mas, apenas os assassinos que vieram dos morros, que vieram da sarjeta, que vieram do SAM desaparecem. Os abastados ficam. Os mocinhos, filhos de pais ricos, que se divertem com a honra das meninas inexperientes, que se valem do dinheiro dos pais, do dinheiro que lhes dará a impunidade quando se tornar necessário. (E quase nunca se torna necessário, a não ser quando as coisas se agravam, como no caso Aída Cúri.) (NASSER, 30/5/1959, s./p.).

Após julgamento em 1960, um dos principais suspeitos do crime – que envolveu quatro pessoas – foi absolvido, gerando protestos. O posicionamento explícito de defesa da vítima se dá, justamente, por se tratar de uma jovem religiosa, “de família”, que possuía um trabalho após retornar de anos no internato.

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Aída Cúri morreu duas vêzes. A primeira foi há 20 meses, quando os monstros curradores a atiraram do alto do Edifício Rio Nobre à calçada. A segunda foi agora, quando o júri espezinhou a sua memória, absolvendo um criminoso da laia de Ronaldo Guilherme de Souza Castro. O júri salvou o tarado currador, mas, ao mesmo tempo, morreu no conceito público como instituição de justiça. A absolvição dêsse asqueroso Ronaldo veio demonstrar que justiça nesta terra parece que ainda tem de ser feita com as próprias mãos (O CRUZEIRO, 2/4/1960).

Foi recorrente a culpabilização da vítima, sobretudo, através do argumento da traição como causa do assassinato de mulheres por seus maridos. É o caso do assassinato de Eloísa Balesteros, em 1980 – um dos crimes que motivou a criação de organizações de combate à violência contra a mulher em Minas Gerais36. O Jornal do Brasil deu destaque ao caso – foi publicada uma sequência de matérias sobre a investigação, mesmo antes de o marido se entregar à polícia. A matéria publicada no dia 01 de agosto de 1980, com as declarações do marido sobre as causas do crime, é bem ilustrativa. O título “Marido diz em Minas que matou a mulher porque ela o traía” (JORNAL DO BRASIL, 01/08/1980, p.14) e a fotografia com o choro do autor do crime durante seu depoimento (ver Anexo G) constroem uma imagem humanizada do assassino, num processo quase de solidariedade – não foi um crime “sem explicação”, já que “ela o traía”; ele está sofrendo: “chorando em todo instante em que lembrava da mulher e dos filhos”.

Podemos verificar também, na atualidade, na cobertura da violência contra a mulher, um posicionamento que também atribui à vítima a culpa pelo ocorrido – dedicaremos os próximos capítulos para a análise dos discursos atuais. Entretanto, o contexto sócio-histórico atual dificulta um posicionamento tão explícito quanto o que identificamos na nota da Última Hora de 02 de julho de 1956. Por um lado, o próprio jornalismo se transformou enquanto campo, adotando textos menos opinativos. Houve certa evolução discursiva na cobertura da violência pelos meios de comunicação – os posicionamentos, antes explícitos, tornaram-se mais sutis, entretanto ainda ocorrem situações nas quais os veículos reforçam implicitamente a violência de gênero, atribuem culpa à vítima, apresentam causas que supostamente justificariam as ações de violência.

A culpabilização da vítima pelos discursos dos meios de comunicação pode ser vista como uma violação de direitos, por representar uma forma de violência simbólica. É preciso avançar, entretanto, na conceituação do que seria a violência simbólica, questão que merece ser tratada em estudo posterior. No próximo capítulo, traremos os principais operadores da

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Análise dos Discursos que irão fundamentar este estudo que tem como objeto a cobertura da violência contra a mulher nas páginas do Massa! e do A Tarde.

3. O SUPORTE DE IMPRENSA COMO OBJETO DA ANÁLISE DO DISCURSO: