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2. CAPÍTULO 2: DELINEANDOO CÉU DE SUELY E CHAVES DE LEITURA

2.2 C HAVES DE LEITURA

2.2.3 A Mulher

Outra chave de leitura que usaremos para analisar a paisagem nordestina em O Céu de

Suely é a mulher. Dentro da ideia de explicitar modificações e possibilidades de diferentes

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personagem principal de maneira central na narrativa, mostrando uma migrante que retorna para o Nordeste. Essa escolha de colocá-la como protagonista, em um ambiente marcado no filme por personagens femininas, permite perceber a importância que as mulheres tiveram para o desenvolvimento da região Nordeste, especialmente em localidades em que a presença masculina não perdurava nas casas, seja pelo índice de migração de homens em direção aos centros maiores, seja pela viuvez em razão da maior longevidade que alcançam as mulheres, ou por abandono do lar por motivos afetivos.

Assim, optamos por fazer a escolha de um elemento humano para compor a terceira chave de leitura (diferente das duas chaves anteriores mais ligadas ao espaço físico), pois entendemos que no filme selecionado para análise, o aspecto feminino tem bastante influência na forma escolhida pelo diretor para construir as paisagens cinemáticas sobre o nordeste, sendo, portanto, um aspecto com grande potencial simbolizar a maneira como se estruturam e organizam essas espacialidades. Além disso, é importante frisar mais uma vez que os seres humanos são componentes importantes na construção de muitas paisagens, sendo até mesmo difícil imaginar, a título de exemplo, uma paisagem carnavalesca sem os seus foliões, ou a paisagem da praia de Ipanema sem seus banhistas.

A mulher na paisagem nordestina geralmente aparece dentro de uma postura subalterna e dependente do homem, sendo esse um traço do patriarcado que se reproduz nas produções cinematográficas. A esse respeito, Paiva (2014, p.17) analisou a representação feminina no cinema e esclarece sobre a função da mulher nessas obras:

[...] suas principais atividades seriam, basicamente, ajudar os maridos e/ou filhos a lutarem pela sobrevivência requerida no nordeste devido, principalmente, ao clima seco, sem chuvas e à situação econômica precária, ancoradas na religiosidade e na passividade. Essas representações do universo feminino seriam produzidas, segundo as teorias feministas, a partir de um “olhar masculino” que reforça a existência de uma postura patriarcal no cinema - repetição de esquemas estáticos e de estereótipos femininos. Assim, O Céu de Suely diferencia-se de grande parte dos filmes do cinema contemporâneo, pois apesar de ter sido dirigido por um homem, propõe-se a referenciar toda a história a partir do olhar de uma personagem feminina. Essa intenção se evidencia, por exemplo, em recursos técnicos relacionados ao processo de edição e fotografia do filme, quando a personagem principal direciona o olhar do espectador para as paisagens do filme por meio de dois atos: primeiro é focalizada a reação e interação de Hermila frente ao ambiente (sem necessariamente mostrá-lo), logo em seguida a paisagem é exposta de forma ampla para o espectador, em planos de longa duração, os quais sugerem a contemplação desses espaços, conforme explica Cunha (2013, p. 79):

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Essa estratégia sugere que a protagonista feminina é também portadora do olhar. Os enquadramentos do seu rosto e dos seus olhos fazem dela o agente que conduz o olhar do espectador pelas paisagens. Em vez de identificar-se com o olhar masculino, o ponto de vista da edição aqui se alinha com o da protagonista, cujo olhar em torno produz e enquadra as paisagens.

O Céu de Suely traz ainda Hermila na figura do migrante (em contraponto aos

estereótipos de fragilidade e passividade da mulher em relação ao próprio destino), mostrando sua determinação e força para alcançar seus objetivos ante diferentes sistemas normativos que desmerecem sua condição de mulher. A esse respeito trazemos também Sandra Souza (2011, p. 152-153):

Certamente, a proposta dos produtores e do diretor deste filme traduz-se na valorização positiva da representação da mulher nordestina e pobre, que em meio às dificuldades constantes em que está imersa, busca saídas ousadas, anticonvencionais, com muita coragem, enfrentando o poder normativo, desfazendo enlaces, relações familiares, fraturando identidades, deslocando- se de territórios conhecidos.

Essa percepção, sob outro prisma se torna interessante para expor as marcas da ausência masculina nessa região, as quais influenciaram diretamente no comportamento feminino e como seus corpos passam a ocupar essas paisagens nordestinas. Há nesse sentido referências aos reflexos impostos por essa situação no sistema de trabalho feminino e na forma como as mulheres acabam assumindo papéis masculinos, os quais são trazidos do ponto de vista histórico por Albuquerque (2013, p. 225):

As chamadas ‘viúvas das secas’ teriam que saber circular pelo universo masculino se quisessem sobreviver na ausência de seu homem, ausência às vezes muito prolongada e até definitiva. O embrutecimento das mulheres durante os períodos de seca e a necessidade de se masculinizarem é um tema presente na literatura regionalista, desde pelo menos o final do século XIX. Percebemos em O Céu de Suely grande ênfase nas relações de trabalho que as mulheres assumem ao longo do filme. A precarização do trabalho é explorada e as mulheres aparecem enfrentando todas as dificuldades pertinentes a esses contextos (a avó trabalha em um restaurante, a tia é mototaxista, Hermila vende rifas e depois passa a lavar carros). Inclusive sob o ponto de vista dos papeis de gênero predefinidos socialmente para profissões de homens e mulheres, Hermila chega a ser chamada a atenção em tom de brincadeira por Georgina, que afirma ser “a primeira vez que vejo uma mulher lavando carro”. Sendo essa uma forma sutil usada no filme para demonstrar os efeitos da ausência da figura “do pai e do marido sem recorrer a discursos ideológicos previsíveis”, conforme destacado por Cunha (2013, p. 77).

Essa abordagem do machismo no filme também se faz presente por meio do questionamento da exploração do corpo feminino no cinema. Segundo Laura Mulvey (1983 p.

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444), ao discorrer sobre o prazer visual e a narrativa no cinema, as “mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua aparência codificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual de forma a que se possa dizer que conota a sua condição de ‘para ser olhada’”. No filme objeto de análise dessa pesquisa, a ênfase no corpo de Hermila, tem a função de conduzir o olhar do espectador para as paisagens (conforme mencionado anteriormente) e colocar o corpo de Hermila/Suely em evidência para mostrar como a submissão imposta pelos homens afeta o corpo feminino – por meio da prostituição e outros tipos de violência – em lugares como Iguatu.

Figura 11 - Imagens do filme Gabriela (1983) – sendo um exemplo de filme que enfatiza o aspecto erótico da figura feminina na condição de objeto sexual, submetida ao olhar masculino.

Sobre a prostituição, podem ser enumeradas inúmeras situações de perigos, além dos evidentes problemas de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), HIV-AIDS e hepatites virais e condições de saúde, as quais são explicadas em cartilhas para as mulheres nessa condição conforme encontramos na cartilha da Sempreviva Organização Feminista –SOF (2014):

Os perigos que as mulheres enfrentam são externos e internos. Como perigos externos destacamos a violência sexista (agressões, estupros, assédio sexual), as diferentes formas de prepotência masculina de muitos homens, a exigência de práticas sexuais não desejadas pelas mulheres. Entre os perigos internos destacamos a interiorizarão que as mulheres fazem da feminilidade tradicional, que contribui para que vivam a sexualidade como algo perigoso. O aspecto da violência ligada à prostituição tem maior destaque no filme principalmente a partir do momento em que Hermila decide rifar seu corpo, criando a identidade de Suely. É interessante notar que a personagem usa justamente o corpo que normalmente é explorado e submetido aos caprichos da vontade masculina (tanto nas paisagens nordestinas da realidade concreta, como nas telas de cinema), para conseguir uma estratégia que lhe permite ultrapassar as condições materiais e sociais que lhe afligem. É, portanto, através do corpo que Hermila consegue vender as rifas e parte em busca de seus

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objetivos para alcançar o seu céu. Mas será que ela alcança? A análise fílmica apresentada no próximo capítulo nos colocará mais próximo desse processo vivido por Hermila em meio à paisagem nordestina.

Assim, o percurso que fizemos até aqui ajuda a entender como se formou o olhar e o imaginário do diretor, apresentando informações e perspectivas sobre como ele conseguiu trazer imagens e sons para a representação da paisagem do filme, que indicam no universo do sertão elementos ligados à globalização, à presença feminina, às suas relações afetivas, ao consumo e ao cotidiano. No próximo capítulo analisaremos com maior detalhamento como esses elementos tomam forma na paisagem do filme objeto de nossa pesquisa.

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