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2. CAPÍTULO 2: DELINEANDOO CÉU DE SUELY E CHAVES DE LEITURA

2.2 C HAVES DE LEITURA

2.2.2 O Sertão

A paisagem externada no filme objeto desta pesquisa está bastante ligada à concepção de um Nordeste revisto dentro do contexto contemporâneo, o qual admite outras possibilidades além da imagem estereotipada de uma região arcaica e avessa a qualquer traço de modernidade. Nesse sentido, essa região é exposta como um espaço atravessado por diversas camadas, que o transformam em um ambiente que abriga diferentes possibilidades culturais de construções espaciais, formando faixas de significação que se misturam e se sobrepõem. Assim, aproximar essa leitura da ideia de paisagem transcultural nos auxiliou nesse trajeto, permitindo “ver as conexões mais inesperadas até nos locais mais aparentemente distantes de todos os centros” (LOPES, 2012, p. 21), adentrando nas possibilidades de um sertão que mantém muitas de suas características já sacramentadas, mas que se conecta para receber as influências de um mundo globalizado. Essa forma de ver e entender o sertão se alia ao que Lopes (2012, p. 22) chama de desejo “cosmopolita de estar no mundo sem deixar de estar no local”, e na sua forma entender as paisagens transculturais.

Dessa maneira, a abordagem que propomos da paisagem nordestina não se limita a apresentar os elementos da paisagem natural (ligados à seca e a pobreza) para qualificar a região, mas abre o leque da análise da paisagem procurando focalizar seus elementos humanos, as atividades cotidianas, mostrando os trabalhos do dia a dia, as maneiras de consumir e ocupar o tempo, seja por meio do lazer, de festas ou perambulando pela cidade como faz Hermila. A esse respeito Dídimo e Lima (2014, p. 5) esclarecem ao comentar O

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A imagem que se vai buscar desse novo Sertão já não é dos galhos retorcidos, dos mandacarus e xique-xiques: a cidade é vista em seu comércio diário e em suas festas, e a câmera ocupa o interior das casas, onde as pessoas simplesmente conversam, almoçam, discutem e eventualmente usam drogas.

Esse olhar que se volta para a comunidade e para o local tem também ligação com as concepções de Appadurai (2004, p.51), que esclarece sobre as dimensões culturais da globalização ao trabalhar as etnopaisagens no mundo contemporâneo:

Estes termos com paisagem como sufixo comum indicam também que essas não são relações objectivamente dadas que parecem o mesmo de todos os ângulos de visão, são construções perspectivadas pela localização histórica, linguística e política de diferentes tipos de actores: Estados-nações, empresas multinacionais, comunidades da diáspora, bem como grupos e movimentos subnacionais [...] e mesmo de grupos próximos como aldeias bairros e famílias. Com efeito, o indivíduo actuante é o último locus deste conjunto perspectivado de paisagens.

Ou seja, este é um olhar para as paisagens que permite identificar no “indivíduo atuante” do sertão nordestino de que forma ele é permeável a essa influência transcultural, a qual pode se mostrar em nível internacional pela invasão de produtos de diferentes partes do mundo que chegam às cidades de interior, a exemplo de Iguatu; ou ainda em nível de movimentos subnacionais, caso em que podemos tomar em consideração a influência da região Sudeste do país na construção de espacialidades e do imaginário das outras regiões do país a ela interligadas e consideradas periféricas.

Essa possibilidade de deslocamentos e influxos simbólicos nos permite evocar também a análise em torno da paisagem sonora nessas espacialidades, as quais se tornam local e global ao mesmo tempo. Dessa forma, em O Céu de Suely é feita uma alusão a essa maneira de erigir a paisagem sonora composta pelas músicas de Diana, Tudo que eu tenho de 1975 e pela música Somebody told me, de Lawrence – um DJ da cena tecno minimalista da Alemanha, composta em 2003. Além dessas duas trilhas extradiegéticas (ou não diegéticas)32, que tematizam a personagem Hermila, há também outras músicas que aparecem no decorrer do filme e que são versões de músicas estrangeiras que se popularizaram, sendo tocadas em ritmo

32 A respeito dos sons diegéticos e não diegéticos trazemos os esclarecimentos de Álvaro Barbosa (2001, p. 02): "

enquadramento visual da cena ou (on screen / off screen).

, mas que t .

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de forró ou tecnobrega, fato bastante recorrente em várias partes do Nordeste brasileiro. Ainda quanto à paisagem sonora, Schafer, (1997, p. 23) ressalta que o ambiente acústico se constitui em uma ferramenta interpretativa proficiente, pois conforme o autor, “o ambiente acústico geral de uma sociedade pode ser lido como um indicador das condições sociais que o produzem e nos contar muita coisa a respeito das tendências e evolução da sociedade”.

Outro enfoque que nos interessa sobre o sertão como chave de leitura é o deslocamento, pois a partir dele pudemos analisar a constituição dos não lugares e migrações, percebendo as interferências nos elementos humanos que compõem essas paisagens e de que maneira essas temáticas se transformam em forças de movimento e fixação nas paisagens criadas em O Céu de Suely.

Conforme relata Andrea França (2003, p.19), ao discorrer sobre as produções do início deste século: “O que se vê, nestas novas narrativas, são deslocamentos contínuos, um estado de nomadismo e de estrangeiridade que faz ressoar um desejo de futuro, de novos traçados de vida, de esperança”. A autora enfatiza que a diluição de fronteiras nacionais, culturais, étnicas, ideológicas e linguísticas geradas pelo processo de internacionalização se tornaram presentes no cinema contemporâneo em diferentes partes do mundo,33 gerando personagens que assumem as figura de refugiados, imigrantes, sobreviventes e estrangeiros que se deslocam espacialmente em busca de novas possibilidades (FRANÇA, 2003, p. 13).

Em O Céu de Suely, a cidade nordestina de Iguatu implica em movimentos de deslocamento e fixação que espelham os estados de espírito de Hermila, primeiro no sentido de retorno às origens, depois a desilusão afetiva em razão da ausência de Matheus, que proporciona um outro movimento subjetivo para Hermila, modificando a experiência que a personagem passa a ter com a paisagem de Iguatu. Ela continua a tentar formas de se adaptar, tanto materialmente (quando procura trabalho lavando carros) como afetivamente (ao se reaproximar do antigo namorado), mas não se sente satisfeita nem adequada à cidade, gerando a busca por novos deslocamentos. Essa particularidade da exploração do deslocamento enquanto potência no filme foi bem percebida por Dídimo e Lira (2014, p.6):

Daí em diante, passamos a acompanhar os movimentos do corpo da personagem, perambulações pelo espaço e também reverberações das forças do mundo no corpo dela. É que no filme de Aïnouz, esse deslocamento não é o constante trânsito de uma cidade a outra, é muito mais expresso como inquietação de um corpo na própria cidade, um movimento em potência ao longo de boa parte do filme, concretizado, sobretudo, na sequência final,

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Nesse sentido Andrea França (2003, p. 17) explica ainda que leva em “perspectiva o cinema iraniano, iuguslavo e brasileiro, para além das suas diferenças culturais, históricas estéticas e políticas", para analisar “como eles operam imaginariamente com as ideias de terra e fronteira, semelhança e diferença”.

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quando a cidade de Iguatu fica para trás e a placa na estrada indica o início de uma saudade, a despedida de um lugar.

Assim, começa a ficar mais claro que a paisagem em O Céu de Suely não tem a função de mero cenário, mas ganha maior importância simbólica e narrativa no decorrer da história, tendo características que em alguns momentos a aproximam da importância de um personagem que antagoniza34 as ações de Hermila. Tal concepção do espaço que sobrepõe dimensões significativas é uma das singularidades da paisagem apresentada nesse filme e tem relação com o entendimento sobre as representações do espaço literário de Luís Brandão (2013, p. 59), ao discorrer que há:

[...] tendências naturalizantes, as quais atribuem ao espaço características físicas, concretas. Aqui se entende espaço como ‘cenário’[...] recurso de contextualização da ação. Mas há também significados tidos como traslados. ‘O espaço social’ é tomado como sinônimos de conjuntura histórica, econômica, cultural e ideológica [...]. Já o ‘espaço psicológico’ abarca as atmosferas, as projeções sobre o entorno, de sensações, expectativas, vontades, afetos de personagens e narradores, segundo linhagens variadas de abordagem da subjetividade.

Outra abordagem dentro da chave de leitura do sertão transcultural é a questão dos lugares de passagem ou não-lugares. Os lugares de passagem são espacialidades caracterizadas pela transitoriedade das relações, tendo em vista que a principal funcionalidade atribuída a estes lugares é a de permanecer o menor tempo possível neles, adquirir o que se necessita desse lugar e depois deixá-lo. Assim, autores como Marc Augé (2005, p. 67) trabalham com a ideia de lugares de passagem, ou não-lugares, destacando esses ambientes como opostos ao lugar antropológico35.

Se um lugar se pode definir como identitário relacional e histórico, um espaço que não podes definir-se nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não lugar. A hipótese aqui defendida é que a sobremodernidade é produtora de não lugares, quer dizer de espaços que não são eles próprios lugares antropológicos, (…) um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero.

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Conforme roteirista Nunes (2009), os antagonistas não necessariamente assumem formas humanas, podendo referir-se a espacialidades ou fenômenos da natureza: “O antagonista é o personagem que representa a principal força opositora ao protagonista. Uma história pode ter vários antagonistas, obviamente, mas normalmente há um deles que se destaca pela sua importância. […] Em muitas histórias o antagonista principal não é sequer humano. Por exemplo, o Terminator ou A maior tempestade de todos os tempos”.

35 Sobre os lugares antropológicos (que Marc Augé contrapõe aos não-lugares), Teresa Sá (2006, p. 180) esclarece ainda: “Os não-lugares aparecem como o oposto, o inverso, dos lugares antropológicos. Estes correspondem a uma relação forte entre o espaço e social, que caracterizam as sociedades arcaicas e são portadores de três dimensões: são identitários, históricos e relacionais. Estes lugares acompanham a modernidade, mas com as recentes transformações da sociedade eles vão se perdendo, desaparecendo e sendo substituídos por outros a que Marc Augé vai chamar de não lugares”.

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Porém, os chamados “não-lugares” convivem simultaneamente com os lugares, pois “na realidade concreta do mundo de hoje, os lugares e os espaços, os lugares e os não-lugares, emaranham-se e interpenetram-se” (AUGÉ, 2005, p. 90). Encontramos essas duas dimensões (de lugares e não-lugares) também no sertão de Iguatu, que apresenta as características da transculturalidade no mesmo ambiente em que se expressam suas tradições. A acepção do espaço sertanejo composto de várias camadas culturais de significação sobrepostas nos permite, portanto, sob o ponto de vista das temporalidades, compactuar com a inteligibilidade de paisagem indicada como palimpsesto, de modo que consideramos esclarecedor evocar Santos (2006, p. 67) a esse respeito:

Paisagem e espaço são sempre uma espécie de palimpsesto onde, mediante acumulações e substituições, a ação das diferentes gerações se superpõe. O espaço constitui a matriz sobre a qual as novas ações substituem as ações passadas. É ele, portanto, presente, porque passado e futuro.

É, por conseguinte, a partir da sobreposição de temporalidades que entendemos e podemos aceitar sem maiores choques de interpretação a possibilidade de coexistirem na mesma paisagem, e de maneira específica, no mesmo ambiente doméstico representado pela casa da avó de Hermila – lugar normalmente ligado ao aconchego e mais próximo das tradições familiares, que possui uma máquina de costura antiga a qual remete a imagem clichê da mulher rendeira, ao lado de eletrodomésticos modernos como a geladeira nova, recém- adquirida. Sob esse prisma retomamos Lopes (2012, p. 15), ao refletir sobre a dimensão cotidiana das paisagens transculturais, em que o autor procura:

[...] pensar o cotidiano e o homem comum, o cotidiano do homem, ou simplesmente o comum como potência estética no quadro contemporâneo [...] pensar um cotidiano global, não derivado simplesmente do trânsito de mercadorias e informações, nem mesmo associado à presença de um aparato tecnológico, mas como todos estes elementos (mercadorias, informações, tecnologias) constituem o cotidiano, a experiência no dia a dia.

Assim, por meio dessa abordagem, estaremos em contato com imagens que procuram expor a paisagem nordestina em meio a um contexto contemporâneo, que vem passando por constantes atualizações, ensejando novas possibilidades de abordagens temáticas e estéticas para essas espacialidades.

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