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6. AS MISERÁVEIS

6.2. A MULHER NA FRANÇA DO SÉCULO XIX

A vida da mulher em Paris durante o século XIX, como mencionado, era mais marcada pelo estabelecimento da moda e dos costumes, pelo entretenimento em salões e a vida doméstica246.

Juliette Recamier é exemplo do papel feminino nas recepções e entretenimento de convidados, arte a ser treinada até a perfeição – e havia um padrão de perfeição – pelas mulheres da França oitocentista. Juliette, casada aos dezesseis com um banqueiro muito mais velho que ela era conhecida por seu recato e seus bons modos, tão difundido era seu pudor que a sociedade perguntava-se se a moça teria relações sexuais sequer mesmo com seu marido247. A própria preocupação social já demonstra aquilo que Hunt248 fala sobre a reserva à mulher do espaço privado, apenas, uma vez que o público é dado apenas aos homens.

Alastair Horne, ao tratar do estilo francês durante a época Napoleônica cita por diversas veses Joséphine, muitas vezes obrigada a adequar suas vestimentas – Napoleão determinava, por exemplo, que todos os que o rodeavam vestissem apenas tecidos franceses, embora por vezes Joséphine tenha desobedecido à ordem, ou exigia roupas mais modestas:

Em 1804, na distribuição da Legião de Honra, Josefina apareceu num ousado traje de tule cor-de-rosa com bordado de estrelas prateadas, os cabelos “coroados com dezenas de espigas de trigo de diamantes”. Houve quem achasse um pouco demais; no ano seguinte, depois de Austerlitz, como Josefina continuasse ostentando os mais profundos décolletés, Napoleão podia, caso os considerasse indecentes, arrancá-los simplesmente e atirá-los no fogo. Ela não protestava: limitava-se a “calmamente mandar buscar outro, pois tinha centenas”, esclarece Evangeline Bruce. Em outra ocasião, para não ter de tolerar de novo determinado lamê de rosa prateado, Napoleão derramou nele o conteúdo de um tinteiro, embora Josefina já estivesse pronta para uma recepção. Ela tinha muito o que aguentar da parte de Napoleão.249

246 VÈZE, Raoul. La Parisienne. In: SIMOND, Charles. Les Centennales Parisiennes: Panorame de la vie de Paris a travers le XIXème siècle. Paris: Plon-Nourrit Et Cie Imprimeurs-Éditeurs, 1903. p. 76-90.

247 HORNE, Alastair. A Era de Napoleão: o homem que reinventou a França. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

248 HUNT, Lynn. Revolução Francesa e Vida Privada. In: PERROT, Michelle. História da Vida

Privada: da revolução francesa à primeira guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.

18-45.

249 HORNE, Alastair. A Era de Napoleão: o homem que reinventou a França. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 113.

O papel da mulher, então, começando com Joséphine Bonaparte, nada mais era que ditar o estilo e a moda da França napoleônica, estabelecer os modos, e mesmo a medida do pudor era ditada pelo imperador.

Peter Burke, ao tratar da questão feminina na história, afirma a impossibilidade de se traçar algo mais que as representações masculinas sobre a vida das mulheres nesta época, por uma questão de prova, ou de ausência delas: as mulheres, sem voz, pelo menos até o período oitocentista, onde se encerra o empreendimento do historiador, não tinham como relatar, por si, suas vidas, de modo que o que resta de indícios são produções masculinas e, portanto, indiretas acerca da condição feminina250.

O papel da mulher dentro de casa, a mulher em submissão ao homem se evidencia também em Hunt quando a autora trata da revolução francesa e a vida privada. Lembra a autora, conforme mencionado, que aos homens ficou reservado o espaço público – com uma publicização até excessiva do indivíduo – e às mulheres, o espaço privado, o espaço da casa, o papel de mãe e irmã. Lembra a historiadora que, mesmo em Sade, em cujos escritos a sexualização é exacerbada, o papel feminino é de objeto de submissão ao homem251.

Também este papel doméstico fica claro, como já tratado anteriormente, na literatura e nos posicionamentos de Hugo acerca das mulheres, cuja representação máxima e veneração é direcionada ao papel da mãe, representado em Fantine, especialmente, e mesmo na Sra. Thénardier, cujo cuidado para com as filhas poderia mesmo ser considerado exagerado252.

O que se tem, então, no século XIX, é a mulher dentro de casa, com o papel de geradora e criadora das próximas gerações, em posição de submissão ao homem – Cosette, por exemplo, jamais chega a qualquer extremo em seus desafios ao protetor, seus protestos tem como limite a desobediência253 – e, no máximo, uma influência em termos de moda e de modos femininos de se portar, de organização e decoração do ambiente doméstico.

250 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Tradução: Denise Bottmsnn. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

251 HUNT, Lynn. Revolução Francesa e Vida Privada. In: PERROT, Michelle. História da Vida

Privada: da revolução francesa à primeira guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.

18-45.

252 HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

A afirmação de Beauvoir é bem verdade para o século XX como para o XIX: “A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo.”254, a mulher é sempre colocada “em relação”, e também o é por Hugo, enquanto a mulher mãe, a mulher que merece autonomia civil em razão de seu papel importantíssimo na família é também uma mulher em relação ao homem, em papel de coadjuvante, de apoio à construção da família.

É no século XIX que se iniciam, na França, os primeiros movimentos das mulheres por sua emancipação255, impedidas de participar politicamente na Revolução, não cessam de comparecer às audiências públicas realizadas, ou de reivindicar seus direitos por meio de manifestações textuais em jornais e manifestos – isto se vê no capítulo 4.1. do presente trabalho, quando se faz referência a Olympe de Gouges e sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã256.

Exemplo disso é a Sociedade para a Melhora das Condições das Mulheres, que enviou carta a Victor Hugo pedindo que este falasse em defesa do direito de voto das mulheres257. Ainda assim, os movimentos femininos, como se vê, dependiam de um porta-voz masculino dentro da política.

Trata-se de momento importantíssimo, mesmo com a dominação masculina ainda plenamente em voga, em que se passa a questionar a condição feminina na sociedade e os direitos da mulher.

254 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2009. 2v. p. 10.

255 OZOUF, Mona. Les Mots de Femmes: Essai sur la singularité française. Paris: Gallimard, 1999. Tradução Livre.

256 MOUSSET, Sophie. Olympe de Gouges et les droits de la femme. Paris: Le Félin-kiron, 2007.

257 VICTOR Hugo on Women's Rights. The New York Times. New York, p. 1-1. 18 abr. 1875. Disponível em: <http://query.nytimes.com/mem/archive-free/pdf?res=9407EED61439E43BBC4052DFB266838E669FDE>. Acesso em: 03 mar. 2017. Tradução Livre.