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3 TRANÇADOS TEÓRICO-CONCEITUAIS

3.2 MULTI E INTERCULTURALIDADE: DO RECONHECIMENTO AO

3.2.1 Multiculturalidade: o reconhecimento necessário

Tratando da temática multicultural, Vera Maria Candau9 e seu grupo de pesquisa vem se dedicando aos estudos sobre educação e cultura, abordando em suas pesquisas aspectos que vão desde as dinâmicas escolares até as políticas públicas, dialogando com estudos, experiências e autores de diferentes países da América Latina, coloca-nos diante do seguinte contexto

Na América Latina e, particularmente, no Brasil a questão multicultural apresenta uma configuração própria. Nosso continente é um continente construído com uma base multicultural muito forte, onde as relações interétnicas têm sido uma constante através de toda sua história, uma história dolorosa e trágica principalmente no que diz respeito aos grupos indígenas e afrodescendentes (CANDAU, Vera, 2008, p. 17).

Reinaldo Matias Fleuri (2001) afirma que a abordagem multicultural “reconhece que cada povo e cada grupo social desenvolve historicamente uma identidade e uma cultura

9 Coordenadora do Grupo de Estudos Cotidiano, Educação e Cultura(s) (GECEC), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Rio, com estudos e pesquisas iniciadas desde o ano de 1996.

própria” (ibid., p. 48), e completa: “considera que cada cultura é válida em si mesma, na medida em que corresponde às necessidades e às opções de uma coletividade” (ibid., loc. cit.). Esse reconhecimento a partir de uma perspectiva multicultural, como dito por Vera Candau e Fleuri, é importante por promover outras discussões acerca de novas questões para o ambiente escolar, que se projetam também para o espaço universitário, no qual não podemos ignorar ou minimizar a constituição de uma sociedade caracterizada pela pluralidade étnico-cultural.

Vera Candau (2008) aponta como característica das questões multiculturais o fato de atravessarem os âmbitos acadêmico e social, da produção de conhecimento, da militância e também das políticas públicas. Entretanto sublinha que o que constitui a produção da multiculturalidade foram e são as lutas dos grupos sociais discriminados e excluídos, dos movimentos sociais, especificamente os relacionados às questões étnicas e às identidades negras.

Portanto, diferente do contexto europeu e norte americano, “o debate multicultural na América Latina nos coloca diante da nossa própria formação histórica, da pergunta sobre como nos construímos socioculturalmente, o que negamos e silenciamos, o que afirmamos, valorizamos e integramos na cultura hegemônica” (ibid., p. 17).

Nota-se que o tema multicultural pode descortinar as contradições de uma sociedade que se diz universalista e igualitária, mas que, quando diante de questionamentos multiculturais se vê monocultural, homogeneizadora e cheia de desigualdades sociais, políticas, econômicas, culturais e informacionais, se observado a partir do ponto de vista crítico (ibid.).

Chamando a atenção para a necessidade de cuidado no uso do termo multicultural, Antonio García Gutiérrez destaca que, dependendo de sua abordagem, pode trazer o significado de reafirmação de um segregacionismo, separatismo ou “uma forma de racismo negada” (2008, p. 75). Fleuri (2001) também ressalta que este termo pode ser uma justificativa para a fragmentação ou criação de guetos culturais, que acabam por ser reprodutores das desigualdades e discriminações sociais.

Então, em função da polissemia de sentidos atribuídos ao termo multiculturalismo10, em seus estudos, Vera Candau (2016) apresenta três abordagens para a questão multicultural: o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista

10 Desde o início dos estudos sobre o multiculturalismo, surgiram diversas interpretações e tendências sobre o tema, dentre as quais emergiram expressões como multiculturalismo conservador, liberal, celebratório, crítico, emancipador e revolucionário (CANDAU, Vera, 2008).

ou monocultural plural e o multiculturalismo interativo (também denominado de interculturalidade). Sendo está última, a perspectiva que norteia os estudos e pesquisas da autora e seu grupo de pesquisa, por considerar a que mais se adequa à construção de sociedades democráticas, pluralistas e inclusivas, articulando políticas de igualdades com políticas de identidade (ibid.).

Discorrendo sobre cada uma dessas abordagens, temos na primeira, a abordagem assimilacionista, o reconhecimento que vivemos em uma sociedade multicultural, constituía por atores plurais, porém sem uma igualdade de oportunidades para todos(as), e enquanto política essa abordagem “estimula a integração de todos na sua dinâmica, favorecendo à sua incorporação à cultura hegemônica” (ibid., p. 80).

Partindo da crítica a esta abordagem, que acaba por negar a diferença em uma sociedade, seja silenciando ou invisibilizando a pluralidade, o multiculturalismo diferencialista ou monocultural plural “propõe então colocar a ênfase no reconhecimento das diferenças e, para promover a expressão das diversas identidades culturais presentes num determinado contexto, procura garantir espaços em que estas possam se manifestar” (ibid. loc. cit.). Vera Candau (2016) afirma que nas sociedades atuais, que assumem essa posição acabam tendo uma visão essencialista da constituição das identidades culturais, privilegiando a formação de comunidades culturais consideradas “homogêneas”, com uma organização própria, o que na realidade, favorece o surgimento de “verdadeiros apartheids socioculturais”

Como já dito, é na terceira perspectiva que se situa os estudos da autora e seu grupo: um multiculturalismo interativo, que evidencia a interculturalidade, uma vez que este “quer promover uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais” (CANDAU, Vera, 2008, p. 23), e complementa afirmando ser tal abordagem

Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades, e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas (ibid., loc. cit.).

Observar que a multiculturalidade tem um grande desafio político-cultural – a simples promoção de uma justiça social e de igualdade entre grupos de uma dada sociedade seria reduzir muito sua questão –, vemos que esta traz igualmente um desafio teórico- conceitual: entender e refletir, a partir do pensamento da diferença é um incentivo a se pensar em uma nova postura epistêmica. Este aspecto, tem sido debatido em diversos eventos e

suscitado discussões por diversos autores sobre a pós-colonialidade ou de(s)colonialidade, o que está imbricado nos estudos interculturais, como veremos na seção seguinte.

Percebe-se que abordar a questão da diferença traz ao campo da CI um conjunto de novos e instigantes questionamentos, que em sociedades plurais e heterogêneas como a nossa não podem ser deixados de lado. Por esse aspecto, traz para a Universidade e a Biblioteca constantes provocações, quando de fato reconhece e se propõe aberta ao diálogo com sua comunidade multicultural, para (re)pensar sua estrutura, suas práticas, suas políticas e ações, bem como as assimetrias nas relações de poder.

Após esse breve entendimento acerca da multiculturalidade, nosso próximo caminho segue para a interculturalidade, seus usos, sentidos e perspectivas, sem esgotá-lo, mas encontrar a compreensão que mais se relaciona ao estudo.