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O multiculturalismo na sala de aula: contribuições dos estudos culturais e da educação científica

NATUREZA, CULTURA E ENSINO DE BIOLOGIA

1.2 O multiculturalismo na sala de aula: contribuições dos estudos culturais e da educação científica

“Toda educação tem uma natureza multicultural” Charbel El-Hani e Nelio Bizzo (2002)

Como amplamente discutido na literatura, cultura abarca uma infinidade de conceitos que, num processo histórico, vêm sendo debatidos e negociados. Laraia (2001) discute sobre isso e destaca importantes pensadores e estudiosos culturais e suas concepções em cada período histórico. O foco dessa seção não está, no entanto, em discutir apenas o conceito de cultura apresentado por estes autores, mas refletir sobre as ideias de estudiosos culturais e as posições de pensadores

pragmáticos do campo da educação científica, indicando contribuições de ambas as áreas para a educação científica multicultural.

Ambos os campos de estudo – educação científica e estudiosos culturais – utilizam o conceito de cultura discutido pelo antropólogo Geertz (2008), que destaca, dentre outras ideias, que a cultura é um processo formado por construções simbólicas, sendo um conceito essencialmente semiótico, que envolve interação social e está ligado a elementos como: conhecimentos, leis, crenças, visões de mundo, religião, costumes e ciência. Tal conceito é complementado e reforçado pelo especialista em educação científica e cultura Aikenhead (2001), que discute cultura enquanto as normas, valores, as opiniões, as expectativas e as ações convencionais de um grupo.

O multiculturalismo, tema de debate entre os estudiosos culturais (ver HALL, 2000, 2003; MCLAREN, 2000), concebe o ensino culturalmente orientado e socialmente pensado, atribuindo a essa prática um momento de investigação do próprio contexto escolar por parte do professor, o que pode tornar a prática docente como caminho à contra-hegemonia.

Porém, é preciso ter cuidado com as abordagens multiculturais que se concretizam nas salas de aula. O multiculturalismo que concebe uma visão apenas de valorização da diversidade, apoiando suas práticas em datas comemorativas soltas, sem um compromisso contínuo e sem uma visão crítica sobre a construção das identidades e das relações de poder envolvidas pode ser um grave empecilho às práticas educacionais transformadoras.

Canen e Oliveira (2002) destacam três perspectivas de abordagem do multiculturalismo no espaço escolar: multiculturalismo folclórico; multiculturalismo voltado para a valorização da diversidade cultural e multiculturalismo crítico. O multiculturalismo folclórico, semelhante ao multiculturalismo de valorização cultural, tem um enfoque na questão da sensibilidade para toda e qualquer forma de representação cultural, a partir da valorização das culturas no ensino, apoiando-se em apresentar o diferente, sem questionar a construção das identidades, nem os possíveis preconceitos e discriminações que estão envolvidos, além de não buscar aprofundamento nos mecanismos históricos, sociais e políticos que podem reforçar a marginalização de grupos culturais. As autoras argumentam que o

“multiculturalismo liberal ou de relações humanas, que preconiza a valorização da diversidade cultural sem questionar a construção das diferenças e estereótipos, pouco tem a contribuir para a transformação da sociedade desigual e preconceituosa em que estamos inseridos” (CANEN; OLIVEIRA, 2002, p. 63).

Como contraponto está o multiculturalismo crítico ou perspectiva intercultural (MCLAREN, 1986; CANEN; GRANT, 1999; GRANT, 2000; MCLAREN, 2000; CANEN, 1999, 2001; CANEN; MOREIRA, 2001; CANEN; OLIVEIRA, 2002), ao qual nos atemos neste trabalho, pois consideramos que não basta reconhecer e valorizar as questões culturais em sala de aula. É necessário promover uma abordagem crítica da própria construção das identidades socioculturais, propondo a reflexão sobre as relações de poder que se estabelecem nessa construção. A linha do multiculturalismo crítico, proveniente dos estudiosos culturais, concebe, portanto, o ensino numa perspectiva crítica sobre a construção dos conhecimentos/culturas e as relações de poder que estão nela envolvidas.

Nesse sentido, o professor é convidado a ir além de um olhar sobre a diversidade cultural em termos folclóricos, exóticos ou românticos, questionando a construção das diferenças e, por conseguinte, dos estereótipos e preconceitos contra aqueles percebidos como diferentes nas sociedades desiguais e excludentes (CANEN; OLIVEIRA, 2002). Essa concepção teórica é justificada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos quando enfatiza que “temos o direito de sermos iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito de sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 1999, p. 44).

Esclarecemos, no entanto, que nossa opção pela proposta multicultural crítica não significa tratar o ensino de modo unicamente político, é necessário cuidado para que a construção curricular e o ensino não se tornem apenas processos de mobilização política. Apesar de essa dimensão ser necessária, devemos dar a devida importância ao ensino dos conhecimentos científicos, de modo demarcado, através de diálogos interculturais, trabalhando-se as semelhanças e diferenças entres os conhecimentos dos estudantes e os conhecimentos que se pretende ensinar: a ciência escolar (BAPTISTA, 2010).

No campo das discussões que envolvem o ensino de ciências, as características das ciências e a diversidade cultural – complementando ou

divergindo dos estudiosos culturais – o debate está em torno de três principais linhas de pensamento: o universalismo, o multiculturalismo e o pluralismo epistemológico.

Conforme El-Hani e Mortimer (2007) os universalistas epistemológicos, como Matthews, Williams e Siegel, defendem a ciência tanto como uma atividade quanto um conhecimento de caráter universal e, assim, consideram que ela não pode ser ensinada em termos multiculturais. Essa linha de pensamento defende que o respeito à diversidade cultural não pode ter como consequência a inclusão de outras formas de conhecer na educação científica e, apesar de se reconhecer a influência do contexto sociocultural na ciência, descarta qualquer influência que ele pode ter sobre a veracidade das afirmações científicas, alegando que as considerações culturais não determinam a verdade da ciência.

El-Hani e Mortimer (2007) elucidam acerca do multiculturalismo, defendido por Hodson, Ogawa e Snively, que envolve uma ideia contrária à posição universalista, discutindo que tal posição é dominante nos currículos atuais de ciências e, além de apoiar uma política de exclusão, é incoerente nas perspectivas filosóficas e morais. O argumento principal do multiculturalismo é de que a educação científica não deve negar as crenças dos estudantes que não compartilham a visão de mundo baseada nos conhecimentos científicos. Nesse sentido, os multiculturalistas criticam os currículos de ciências que têm uma mensagem implícita de que apenas a ciência é um conhecimento válido, tendo como principal estratégia a ampliação de conhecimento, a partir da inclusão de outras formas de saber nos currículos de ciências, o que indica uma posição de relativismo epistemológico.

Já o pluralismo epistemológico, apoiado principalmente nas ideias de Cobern e Loving (2001), evita o cientificismo e reconhece a variedade de formas de conhecer, a partir das diferentes visões de mundo. A meta de tal posição é tornar o ensino de ciências culturalmente sensível às diversidades culturais presentes nas salas de aula. Para estes autores, a inclusão de outras formas de conhecer no currículo, como concebem os multiculturalistas da área da educação científica, a partir de um conceito amplo da ciência, resulta na desvalorização de formas outras de conhecer, já que as formas de construção e os critérios de validação da ciência são diferentes e, assim, as outras formas de conhecer podem não ser valorizadas por seus próprios méritos. O pluralismo epistemológico propõe, portanto, uma

educação científica que valorize outras formas de conhecimento, porém que realize o ensino de modo sistemático, sem perder de vista os objetivos da educação científica. Nessa perspectiva, os conhecimentos culturais dos estudantes devem ser utilizados nos momentos de ensino, de forma dialógica, e com o propósito de ampliar as suas visões (COBERN; LOVING, 2001).

Destacamos nossa escolha pelo pluralismo epistemológico por ser uma posição da educação científica que, além de respeitar as outras formas de conhecer, privilegia o ensino sistemático da ciência escolar, abrindo possibilidades de diálogos entres os saberes em sala de aula. Nesse sentido, Baptista (2010) destaca a importância do reconhecimento e respeito pela diversidade cultural no ensino de ciências, mas com demarcação dos diferentes saberes em distintos domínios das práticas humanas e um reconhecimento explícito de sua construção em condições socioculturais também diferentes.

O multiculturalismo crítico dos estudiosos culturais (MCLAREN, 1986, 2000) parece divergir do pluralismo epistemológico formulado no campo do ensino de ciências. Há diferenças no sentido de que o pluralismo epistemológico propõe a demarcação, do ponto de vista epistemológico, entre diferentes saberes e suas origens, enquanto que a abordagem multicultural crítica busca promover aproximações e hibridizações entre diferentes saberes. Porém, encontramos convergências, no sentido de que ambos estão preocupados com um trabalho didático sensível aos conhecimentos outros que os alunos trazem consigo para as salas de aula. Nesse sentido, reiteramos a possibilidade de se trabalhar perspectivas presentes em ideias dos estudiosos culturais aliadas às ideias dos especialistas em educação científica e cultura já que, conforme explicitado, elas podem se complementar e contribuir para a formação qualificada na educação em ciências. Ressaltamos que utilizamos a base epistemológica da multirreferencialidade (MACEDO, 2004) que nos permitiu mergulhar em referenciais teóricos diversos, nos autorizando a enfrentar essas relações, utilizar conceitos que se aproximam, se complementam ou se distanciam, e explicitar suas diferenças.

O cientificismo promove a padronização dos critérios de validade dos saberes e a superioridade dos conhecimentos científicos, diminuindo o valor de outros saberes. Ensinar ciências como única forma de ver o mundo, desprezando saberes

outros, sem uma crítica às construções humanas não nos parece ser o melhor caminho para uma formação qualificada. A visão puramente científica numa abordagem didática deve ser evitada, já que muitas pessoas, grupos e sociedades não têm a ciência como conhecimento base de suas vidas e atividades cotidianas. E mesmo para sociedades cujas vidas se pautam de forma mais marcante na ciência, é importante estimular uma visão pluralista. Nossas escolhas, portanto, justificam-se ao se entender o próprio objetivo da educação científica, no que se refere principalmente ao preparo em habilidades argumentativas e formação de pensamento crítico.

Ressaltamos nossas opções para este estudo pelas bases epistemológicas do multiculturalismo crítico de McLaren (1986), da demarcação do ensino de ciências em relação a outras formas de conhecimento do pluralismo epistemológico de Cobern e Loving (2001), associado ao construtivismo contextual dos mesmos autores, e a partir das discussões sobre diálogo intercultural de Baptista (2007).

1.3 Educação escolar, formação e ensino de biologia: olhares atentos às