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O “MUNDO” É FEITO DE COISAS OU DE PROCESSOS?

No documento Elementos para uma ontologia de estruturas (páginas 194-199)

6 ELEMENTOS PARA UMA ONTOLOGIA DE

6.3 O “MUNDO” É FEITO DE COISAS OU DE PROCESSOS?

início do século XX testemunhou uma revolução na concepção de “objeto físico”. As teorias da relatividade – especial e geral – e a mecânica quântica são unanimemente retratadas por muitos como as grandes revoluções na física do início do século passado. O que muitas vezes não é observado, sustenta Toraldo di Francia, é que uma revolução extremamente significativa ocorreu com o surgimento dessas teorias – além das advindas delas próprias –, trata-se da descoberta dos

objetos nomológicos, isto é, objetos dados por leis físicas (TORALDO

DI FRANCIA, 1978).

Segundo Toraldo di Francia, objetos nomológicos teriam massas, cargas, momentos angulares (spin) etc. determinados. Alguns deles, como fótons e neutrinos, teriam até uma velocidade bem determinada. Objetos nomológicos seriam, portanto, “prescritos” por leis físicas; ou, talvez, cada uma de suas classes representaria uma lei física. Assim, por exemplo, alguém pode formular a lei onde a massa m = 9,1 × 10-23 g deve sempre ser acompanhada por uma carga elétrica e = ± 4,8 × 10-10

e.s.u., por um spin h/2 etc. (ibid.). Com essa concepção de lei física,

Toraldo di Francia reconhece que todos os objetos físicos seriam, na verdade, mais ou menos nomológicos. A diferença com o caso da mecânica quântica seria a de que o objeto estaria “submetido” a uma

espécie (kind), no sentido de que um elétron, por exemplo, é definido ser

aquela espécie de coisa que tem uma massa m = 9,1 × 10-23 g, uma carga elétrica e = ± 4,8 × 10-10 e.s.u. etc., e qualquer coisa que tenha essa coleção – definida – de propriedades deve ser um elétron. A conjunção dessas propriedades (e eventualmente outras) daria a intensão do conceito “elétron”, ou seja, sua definição (ibid.).

Se uma partícula sempre é determinada por suas propriedades, resta-nos descobrir o que seriam essas propriedades. Mencionamos

      

242 O “homeomorfismo” parece ser a relação mais adequada devido às considerações da seção

5.2. Chamo aqui as estruturas dos “dados empíricos” de “modelos de dados”, mas não quero comprometer-me necessariamente com o sentido que Suppes dá a essa expressão.

acima apenas propriedades intrínsecas do elétron. De fato há outros tipos de propriedades, como as que são dependentes de estado (físico) ou mesmo gerais, por exemplo, “ser uma partícula elementar”, “pertencer à família dos férmions”, “pertencer ao grupo dos léptons”, “ter sido descoberto experimentalmente por J. J. Thomson em 1897” etc. Mesmo que essas propriedades caracterizem de certa maneira o elétron, elas não são essenciais para a sua definição física. Se tomarmos uma propriedade intrínseca como massa, temos que algo só pode ser considerado um elétron se tiver m = 9,1 × 10-23 g; qualquer coisa que tenha todas as propriedades intrínsecas idênticas a do elétron, exceto que possua mais ou menos massa, não será considerada pelos físicos um elétron.

O importante aqui é observar que, ao que tudo indica, a postura adotada na física do século XX – e certamente do XXI – de fato se diferencia daquela adotada pela física clássica. Nessa, os objetos geralmente são descritos por uma teoria: posso descrever uma bola de bilhar, por exemplo, identificando seu tamanho, massa, velocidade etc. Neste sentido, o objeto é dado antes da descrição – afinal, geralmente se supõe que sempre descrevemos “algo”. No caso da física contemporânea, aparentemente não representamos o “objeto”, na teoria, através de suas características, mas apresentamo-lo. Essa apresentação é “fixa” – no sentido de que as características do “objeto” apresentado são fixas –, dada através da teoria, e é isso que Toraldo di Francia quer dizer com “objeto nomológico”.243

Mas o que seria uma característica como “massa”? O físico Max Jammer (1997, 2000), por exemplo, mostra uma evolução histórica desse conceito, mostrando sua interpretação na física clássica e contemporânea – relatividade especial e geral e “modelo padrão”. Jammer destaca a importância da equivalência estabelecida por Einstein entre massa e energia na famosa equação E = mc2, e lembra que o “modelo padrão” da física quântica segue em grande medida essa equação (JAMMER, 2000, § 3 e 5). Isso parece reforçar a ideia de Toraldo di Francia de que partículas elementares como o elétron sejam estruturas relacionais estabelecidas, apresentadas, por leis físicas, e que essas leis por sua vez envolvem relações de algum tipo. Sendo assim, aparentemente o que nos restaria seriam relações de algum tipo, e dependendo de como elas são “arranjadas” – definidas – numa estrutura teríamos diferentes partículas, cujo comportamento é descrito,

      

representado, por equações físicas, que podem ser vistas também como estruturas (cf. seção 5.3.1).244

De um ponto de vista filosófico, e seguindo a ideia dos objetos nomológicos, restaria mostrar que a expressão “estrutura do elétron”, por exemplo, não tem apenas um sentido metafórico, mas ontológico ou metafísico. Na verdade, talvez o mais adequado seria dizer que as partículas elementares são estruturas, e não que elas possuem uma estrutura, já que esta segunda opção aparentemente sugere que haja algo “além” da estrutura, o que vem sendo negado por alguns filósofos. Sabemos que essa é a proposta do realismo estrutural ontológico.

Vimos na seção 3.2 que Ladyman e Ross defendem uma metafísica naturalista que não aceita o conceito de “causa” – segundo eles, por esse não ser científico – nem a estratificação do “mundo” em níveis de realidade sobre a qual ele é baseado. Para eles, a metafísica naturalista também não concebe o “mundo” como sendo “feito” de algo. Isso significa, segundo os autores, que a física não modela o “mundo” em termos de tipos objetos (LADYMAN; ROSS, pp. 4-5). Mas se não é de objetos, do que ele é feito? Eles dirão que a física modela o mundo através de estruturas.

Um importante físico da atualidade, Lee Smolin, em seu livro

Três caminhos para a gravidade quântica, difere de Ladyman e Ross

quanto à legitimidade das relações causais245, mas também defende que o “mundo” não é feito de objetos; para ele, o “mundo” é feito de processos. Segundo ele,

[...] é por causa da avassaladora importância das relações causais na estrutura de nosso mundo que as histórias são muito mais informativas que as descrições. [...] Portanto, parece que há duas espécies de coisas no mundo. Existem objetos como as rochas e os abridores de latas, que simplesmente existem e podem ser completamente explicados por uma lista de suas propriedades. E existem coisas que somente podem ser compreendidas como processos, somente podem ser explicadas contando uma história. Para as

      

244 A teoria dos objetos nomológicos não se restringe ao mundo subatômico. Toraldo di Francia

defende que ela também se aplica à cosmologia (TORALDO DI FRANCIA, 1978). Na verdade, como ele diz, “[s]er dado por-lei (law-likeness) é uma propriedade que tem diferentes graus. Todos os objetos da física são mais ou menos nomológicos (op. cit., p. 63)”.

245 Não vou entrar aqui na discussão sobre quem está com a razão em relação à causalidade.

coisas do segundo tipo, uma simples descrição nunca é suficiente. Uma história é a única descrição adequada para elas [...] (SMOLIN, 2002, p. 60).

Logo mais à frente, Smolin complementa dizendo que:

[...] Nem toda a habilidade do artista pode transformar um processo em uma coisa, pois não existem coisas, apenas processos que parecem mudar lentamente segundo nossas escalas de tempo humanas. [...] Portanto, não existem de fato duas categorias de coisas no mundo: objetos e processos. O que há são processos relativamente rápidos e processos relativamente lentos. E uma história pode ser curta ou longa, mas é a única explicação realmente adequada para um processo (op. cit., p. 61).

Processos são, segundo Smolin, “coleções” de eventos; esses são a menor parte de um processo, a menor unidade de mudança. Em outras palavras, um evento é uma ocorrência de propriedades (relações) numa certa região do espaço-tempo. De acordo com Smolin, um evento não é, todavia, uma mudança que acontece em um objeto estático, mas apenas a mudança, e um universo de eventos “é um universo relacional, isto é, todas as suas propriedades são descritas em termos de relações entre os eventos. A relação mais importante que dois eventos podem ter é a

causalidade (op. cit., p. 62; itálicos no original)”. Assim, para Smolin, o

universo é um sistema de relações, e sua geometria

[..] é muito parecida com a estrutura gramatical de uma frase. Da mesma forma que uma frase não tem estrutura ou existência fora das relações entre as palavras, o espaço não tem existência fora das relações que existem entre as coisas no universo. Se modificarmos uma frase, eliminando algumas palavras ou alterando sua ordem, a estrutura gramatical da frase será diferente. Da mesma forma, a geometria do espaço se modifica quando as coisas no universo alteram as relações que têm entre si (op. cit., p. 28).

Lembrando que, para Smolin, essas “coisas” entre as quais as relações se dão são, na verdade, processos, e esses também são, por sua vez, relações.246 A visão do espaço, por exemplo, como algo que independe de quaisquer relações – um espaço absoluto, como defendia Isaac Newton – não pode mais ser sustentada, caso aceitemos a teoria da relatividade. Com respeito a essa teoria, Smolin afirma que:

Um aspecto confuso é que a teoria da relatividade geral pode descrever, de uma maneira coerente, universos que não contenham matéria. Isso poderia nos levar a acreditar que a teoria não é relacional, pois existe espaço mas não matéria, e não há relações na matéria que sejam adequadas para definir o espaço. Mas isso está errado, e o erro reside em pensar que as relações que definem o espaço devem ser relações entre partículas materiais. Sabemos, desde a metade do século XX, que o mundo não é composto só por partículas. Uma visão oposta, que caracterizou a física do século XX, é a de que o mundo é também composto por campos (op. cit., p. 30).

Por sua vez, Smolin sustenta que um “campo” sempre é definido por relações, e que “[o]s pontos do espaço não têm existência em si mesmo – o único significado que um ponto pode ter é um nome que damos a uma característica particular na rede de relações entre os três conjuntos de linhas de um campo (op. cit., p. 31). Em relação ao tempo, Smolin argumenta que ele deve ser entendido apenas em termos de mudanças na rede de relações que descreve o espaço, adquirindo também uma característica relacional.247

Tanto a teoria dos “objetos nomológicos” quanto a ideia defendida por Smolin de que o “mundo” não é composto de coisas, mas de processos – vistos como “coleções” de relações (eventos) – parecem contribuir para uma defesa do realismo estrutural ontológico. É claro que isto não quer dizer que essas teorias comprovam-no, primeiro, porque elas mesmas podem ser questionadas, segundo, insisto que o realismo estrutural ontológico é uma teoria filosófica, e não sei se ela

      

246 Por isso, sustenta Smolin, não pode haver um universo com uma única “coisa”, pois não

haveria relações para definir onde essa coisa está (ibid.).

247 Infelizmente, não há espaço aqui para discutir com detalhes a proposta de Smolin. Ela é

pode ser “comprovada” – afinal, o que significa este conceito? O máximo que podemos dizer é que, na proposta de que o realismo estrutural ontológico deva “ler” a física relevante e derivar dela consequências filosóficas, e que as duas teorias apresentadas acima parecem fazer isso, então podemos dizer que elas contribuem para a defesa desse. Em particular, elas parecem ajustar-se muito bem às O- estruturas vistas acima, afinal, a ideia de que os “objetos nomológicos” são apresentados estruturalmente e a de que os “objetos” são processos relacionais possuem em comum justamente o fato de entendê-los não como objetos individuais, mas como estruturas. O uso da palavra ‘objeto’ nestes dois casos parece mesmo inadequada; creio que tanto Toraldo di Francia quanto Smolin estariam dispostos a substituí-la pela palavra ‘estrutura’.248

No documento Elementos para uma ontologia de estruturas (páginas 194-199)

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