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1.4 Representações Sociais: considerações sobre a teoria

1.4.3 O Núcleo Central da Representação Social

Importante contribuição dentro do estudo do processo de organização das representações sociais, a teoria do núcleo central proposta pelo pesquisador francês Jean-Claude Abric, foi apresentada inicialmente, sob a forma de uma hipótese relativa à organização interna das representações sociais. De acordo com seu autor:

A organização de uma representação apresenta uma característica particular: não apenas os elementos da representação são hierarquizados, mas além disso toda representação é organizada em torno de um núcleo central, constituído de um ou de alguns elementos que dão à representação o seu significado. (ABRIC, 2001, p. 19)

Os estudos de Abric vêm mostrando que é possível conhecer-se, de modo relativamente simples e rápido, quais são os elementos centrais de uma representação. Como visto, para Abric toda representação é estruturada em torno de um núcleo central, que segundo suas concepções:

[...] determinado, de um lado, pela natureza do objeto representado, de outro, de outro pelo tipo de relações que o grupo mantém com este objeto e, enfim, pelo sistema de valores e normas sociais que constituem o meio ambiente ideológico do momento e do grupo (ABRIC, 1998, p. 31)

O núcleo central põe em evidência os elementos mais socializados do conteúdo da representação, ou, pode-se ainda dizer, os elementos da representação que são compartilhados por uma determinada coletividade nas suas interações cotidianas. O núcleo central é o elemento básico da representação, considerando-se que ele determina, concomitantemente, a sua significação e organização. Paralelamente, tem, ainda, duas outras funções: 1) uma função geradora, posto que é o elemento pelo qual se cria, ou se transforma, a significação dos outros elementos que constituem a representação; 2) uma função de organização, pois é o núcleo central que determina a natureza dos laços que unem entre si os elementos da representação. Assim, pode-se dizer que o núcleo central é o elemento unificador

e estabilizador da representação. Orbitando este núcleo, o qual expressa os invariantes do conteúdo de uma representação, estão os elementos periféricos, os quais expressam os elementos variantes da representação, ou seja, as acentuações particulares dadas pelos indivíduos isoladamente ou por segmentos da coletividade que compartilham uma mesma leitura de um determinado objeto do mundo social.

Revendo-se o conceito de núcleo central empregado por Abric, verifica-se que ele é constituído de “um ou alguns elementos que ocupam uma posição privilegiada” no conteúdo da representação (2001, p. 73) e ainda: “ele é determinado de uma parte pela natureza do objeto representado, de outra parte pela relação que o sujeito – ou o grupo – mantém com esse objeto” (ibid, p. 23). O autor aponta também as duas dimensões que o núcleo central pode assumir:

Seja uma dimensão funcional, como por exemplo em situações com uma finalidade operatória: serão então privilegiados na representação e constituindo o seu núcleo central os elementos mais importantes para a realização da tarefa [...] seja uma dimensão normativa em todas as situações onde intervêm diretamente dimensões sócio- afetivas, sociais ou ideológicas. Nesse tipo de situações, pode-se pensar que uma norma, um esterótipo, uma atitude fortemente marcada estarão no centro da representação. (idem)

Como observa Sá, “Abric conclui que o levantamento do núcleo central é importante inclusive para conhecer o próprio objeto da representação, ou seja, para saber o que afinal de contas está sendo representado” (1996, p. 71).

Um outro aspecto destacado no estudo do núcleo central, reside no fato das representações sociais, conforme propôs Abric, apresentarem duas características que, a princípio, mostram-se contraditórias. Em primeiro lugar, o fato de serem ao mesmo tempo estáveis e móveis, rígidas e flexíveis e, em segundo, embora sejam consensuais, as representações sociais encontram-se fortemente marcadas por diferenças interindividuais.

Assim, a teoria do núcleo central, com base nessas aparentes divergências, propõe que a representação social, “conquanto uma entidade unitária, é regida por um sistema interno duplo, em que cada parte tem um papel específico mas complementar ao da outra” (SÁ, 1996, p. 73), ou seja, a representação apresenta um “sistema central”, formado por seu núcleo central e um “sistema periférico”, composto pelos elementos periféricos da representação. No QUADRO 2, registro uma síntese comparativa das características e das funções de cada um dos

sistemas que compõem a organização interna das representações sociais, conforme a concepção de Abric.

QUADRO 2

Características do sistema central e do sistema periférico de uma representação

SISTEMA CENTRAL SISTEMA PERIFÉRICO

● Ligado à memória coletiva e à história do grupo ● Permite a integração de experiências e histórias individuais

● Consensual

 define a homogeneidade do grupo

● Tolera a heterogeneidade do grupo

● Estável ● Coerente ● Rígido

●Flexível

● Tolera as contradições

● Resiste às mudanças ● Evolutivo

● Pouco sensível ao contexto imediato ● Sensível ao contexto imediato ● Funções:

 gera o significado da representação  determina sua organização

● Funções:

 permite a adaptação à realidade concreta  permite a diferença de conteúdo

Fonte: ABRIC, 1998, p. 34.

Dentro dos estudos quanto ao sistema periférico, ressaltamos a importante contribuição de Claude Flament, reconhecida pelo próprio Abric que lhe atribuiu o mérito pela complementação da teoria que desenvolvera, a partir da demonstração do importante papel desempenhado pelos elementos periféricos, isto é, não pertencentes ao núcleo central, no funcionamento da representação. Flament em suas elaborações introduziu a noção de “condicionalidade” das cognições que compõem uma representação, propondo-lhe, em primeiro lugar, um caráter descritivo ou prescritivo e, em segundo lugar, a distinção entre prescrições absolutas ou incondicionais e prescrições condicionais.

Na primeira proposição, Flament considera a premissa que uma cognição é prescritiva e/ou descritiva e aponta para o fato que:

A noção de prescrição subsume a totalidade das modalidades de que uma ação é suscetível de ser afetada: ‘é preciso fazer...; pode-se fazer...; é desejável fazer...; pode-se não fazer...; não é preciso fazer...’ etc [...] O aspecto prescritivo de uma cognição é o laço fundamental entre a cognição e as condutas que se supõe lhes corresponder [...] O aspecto descritivo de uma cognição é mais habitual: com efeito, os sujeitos, sobretudo nos estudos de representações sociais, utilizam principalmente termos descritivos – que depois o entrevistador retoma em seus questionários sistemáticos”. (FLAMENT, 1994, p. 37-38)

Assim, entendemos que a análise das representações sociais com relação a determinado objeto, pode ser realizada, essencialmente, com base nas cognições prescritivas que as compõem, considerando que, por se tratarem de formas de pensamento social prático, as descrições que apresentam do objeto representado, “implicariam sistematicamente em prescrições de algum tipo de ação por parte dos indivíduos ou grupos detentores de tais conhecimentos compartilhados” (SÁ, 1996, p. 80).

Na segunda proposição teórica, Flament apresenta uma distinção entre prescrições absolutas ou incondicionais e prescrições condicionais. Neste sentido, o autor caracteriza as prescrições condicionais utilizando-se de expressões como, por exemplo, “em tal condição, é preciso fazer isso; em tal caso particular, pode-se fazer aquilo” (1994; p. 38). Assim, Flament considera que dentro do campo das representações sociais, a maioria das prescrições são condicionais, uma idéia que decorre de uma outra proposição inovadora, qual seja, a noção de que, no nível discursivo, as prescrições apresentem uma tendência incondicional, ao passo que no nível cognitivo, mostram-se, em sua maioria, condicionais. Logo, como expõe Sá:

Isto quer dizer que, quando as pessoas emitem julgamentos aparentemente absolutos, com frequência já se encontram neles embutidos, embora não de forma manifesta, diversas alternativas condicionais consideradas legítimas ou mesmo algo como uma condicionalidade genérica ou ‘aberta’. Assim, na pesquisa das representações sociais, a quantidade e diversidade de discursos que são coletados, as diferentes respostas a situações padronizadas e mesmo as inúmeras simples associações de idéias e evocação de palavras seriam ‘maciçamente condicionais’ em sua natureza cognitiva, conquanto não necessariamente na aparência discursiva. (SÁ, 1996, p. 81)

Entretanto, Flament afirma que embora a maioria das prescrições de uma representação social seja condicional, não há impedimentos para “a idéia de que certas prescrições são absolutas” (1994, p. 43), o que significa dizer que as representações sociais contêm elementos cognitivos descritivos e prescritivos, que funcionam em termos condicionais, bem como, elementos que funcionam de forma absoluta. Essas prescrições que Flament define como absolutas, indicariam os poucos elementos que compõem o núcleo central da representação e que, efetivamente, a definem, enquanto que, as prescrições condicionais, de igual modo significativas, porém em maior quantidade de elementos, integrariam um sistema

periférico, “promovendo a interface com as questões práticas da vida cotidiana” (SÁ, 1996, p. 82). Logo, depreende-se que o núcleo central da representação é composto por prescrições absolutas, enquanto que os elementos periféricos por prescrições condicionais.

Nesta ótica, pode-se afirmar que o núcleo central possibilita a visualização da representação mais hegemônica construída acerca de um dado objeto por uma comunidade, enquanto que o sistema periférico aponta para as ressignificações desse mesmo objeto por parte dos sujeitos, isto é, o sistema periférico dá conta das particularidades que implicam nas possíveis diferenças identitárias dentro de uma mesma categoria. Logo, mesmo que o fato de “ser policial” e a violência praticada por policiais militares sejam objetos de representações sociais construídas, hegemonicamente, por soldados da PMRN, esses conteúdos são ressignificados pelos diversos sujeitos produzindo uma particularização de sentidos a qual permite um aclaramento quanto aos diferentes grupos inseridos nessas categorias, compondo um sistema daquilo que poderíamos chamar de “subcategorias”. Assim, buscaremos em seguida, aprofundar a reflexão acerca das representações sociais e seu aspecto identitário, no entanto, dentro dos propósitos do presente trabalho, limitaremos nosso estudo ao aspecto hegemônico das representações sociais construídas pelos sujeitos anteriormente referenciados tendo como objeto o “ser policial” e a violência praticada por policiais militares.