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N O E STADO : P ODER L OCAL , R EFORMAS E E SPAÇOS P ÚBLICOS

NOTAS SOBRE A CENA DOS ANOS

N O E STADO : P ODER L OCAL , R EFORMAS E E SPAÇOS P ÚBLICOS

Sobre o Estado e seus aparelhos de produção e regulação de serviços, que visam ao bem estar social, incluído o acesso à moradia, três fatores devem ser anotados: a idéia de Poder Local131; as Reformas132 empreendidas de

meados ao fim dos anos 90; e os espaços de participação sociopolítica e controle social133. Tais fatores têm especial relevância para a instituição e

consolidação do programa de mutirão e da presença dos Movimentos no espaço público. Mais uma vez, cada um desses temas é objeto de estudos e bibliografia específicos, cabendo aqui nada mais que um esforço audacioso de apresentá-los panoramicamente na cena dos anos 90.

130 “O resultado disso é que o dia-a-dia do FNRU acaba ficando bastante circunscrito à sua coordenação... há uma dificuldade interna de formular propostas para ativar essas relações entre o FNRU e os movimentos locais...”. Carla A. Silva, 2002, op. cit.

131 Celso Daniel. “Poder local no Brasil urbano”. In. Espaço e debates, ano VIII, n. 24, 1988;

Celso Daniel et. al. Poder local e socialismo. São Paulo: Fund. Perseu Abramo, 2002; Francisco de Oliveira. Aproximações ao enigma: o que quer dizer desenvolvimento local.

São Paulo: Polis; Progr. Gestão Pública e Cidadania EAESP/FGV, 2001.

132 MARE (Min. da Adm. e da Reforma do Estado). Plano Diretor da reforma do

aparelho do Estado. Brasília, 1995 (mímeo); L. C. Bresser Pereira e Peter Spink (org.). Reforma do Estado e administração pública gerencial. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. Eli

Diniz. Crise, Reforma do Estado e Governabilidade: Brasil, 1985-95. Rio de Janeiro: Ed. FGV,

1997.

133 Maria da Glória Gohn. Conselhos gestores e participação sociopolítica. São Paulo: Cortez, 2001; Renato Cymbalista e Tomás Moreira. O Conselho Municipal de Habitação

Desde o início dos anos 80, no caso particular das políticas habitacionais, as soluções locais para resolução desse problema vão ganhando visibilidade, diante da incapacidade das políticas centralizadas do BNH em atender às demandas mais carentes, segundo as críticas a esse sistema. É o momento em que é criado o FUNAPS (1979) em São Paulo e quando as experiências de mutirão começam a aparecer.

A defesa da descentralização, nesse momento, aparece misturada a tantas outras bandeiras que as organizações sociais de resistência ao Estado autoritário empunhavam na luta pela democratização do país134. Como um dos

resultados desse embate, a Constituição Federal de 1988 passa a conferir maior importância para as esferas de governo sub-nacionais, ou seja, estados e municípios, tanto em relação a atribuições quanto em relação a repasses de recursos orçamentários. Não é à toa que o FUNAPS, durante a gestão Erundina (imediatamente depois de aprovada a “constituição cidadã”, portanto), tem um sensível aumento de arrecadação, fruto exatamente do aumento de repasse instituído pela nova Carta. Os autores que estudaram o Fundo não negligenciam esse fato como determinante para operacionalização da política habitacional do município nesse período.

O Poder Local torna-se uma instância fundamental e chega a ser estudado como uma categoria analítica em ciência política. Não se restringe ao poder político local, ou ao governo local, mas amplia-se para as forças econômicas e sociais que atuam localmente. Costuma-se dizer que a “pessoa não vive no país ou no estado... vive na cidade” e uma vez que a menor unidade político-administrativa dessa “cidade” é o município, é nele que as condições de participação da população seriam mais propícias.

Outra referência fundamental em relação ao Estado está nas

Reformas empreendidas nos anos 90. Esse assunto é abordado, mesmo que

de maneira tangencial, em praticamente toda a literatura consultada sobre esse período. A proposta de reforma gerencial se baseia num diagnóstico da crise do setor público nos anos 70 e 80 sob a ótica fiscal da perda do crédito;

134 “Ressalte-se que, devido à tradição fortemente centralista do período militar, criou-se, nos primeiros anos da Nova República, um mito a respeito do processo de descentralização em políticas públicas, que passou a ser visto quase como um sinônimo de gestão democrática, sendo considerado a priori como desejável e capaz de proporcionar maior eficiência na prestação de serviços”. Sérgio Azevedo. “Planejamento, cidade e democracia: reflexões sobre o papel dos

no esgotamento das estratégias estatizantes em nível mundial; e nos problemas da administração pública burocrática. As respostas históricas à crise foram, de acordo com o diagnóstico: ignorá-la num primeiro momento; a resposta neoliberal de um Estado mínimo; e nos anos 90, a reforma ou reconstrução do Estado, que deveria redefinir seu papel de “responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços para se fortalecer na função de promotor e regulador desses serviços”. O Estado reformado, segundo modelo da administração pública gerencial, ao abandonar as funções diretas de execução, transfere “para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado”, o que se dá através da liberalização comercial (abandono das estratégias protecionistas de substituição das importações); de um programa de privatizações que “transfere para o setor privado a tarefa da produção, que, em princípio, este realiza de forma mais eficiente” e; em destaque, de um programa de publicização, que “transfere para o setor público não-estatal a produção dos serviços competitivos ou não-exclusivos do Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle”135. O modelo da administração pública gerencial traz perspectivas

desenvolvidas na administração de empresas para lograr uma prestação de serviços de qualidade aos “cidadãos-clientes”, baseada na eficiência e superando, assim, os modelos burocrático e patrimonialista que foram empreendidos no país.

O assunto da reforma estatal é bastante rico e possibilita comentários analíticos de diversas ordens. Evitando-se repetir passagens anteriores deste trabalho sobre as críticas que se pautam pela negação de direitos que esse modelo, traz como conseqüência quando colocado em prática, vale apenas salientar que esta reforma foi formulada teoricamente no âmbito do governo federal, mas, tanto o diagnóstico da crise do setor público, quanto a idéia de descentralização ou quanto a crença na “sociedade civil”, foram plenamente

governos locais nos anos 90”. In. O Brasil no rastro da crise: partidos sindicatos, movimentos

sociais, Estado e cidadania no curso dos anos 90. São Paulo: ANPOCS: Hucitec: IPEA, 1994.

135 “Deste modo o Estado reduz seu papel de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se entretanto no papel de regulador e provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços sociais como educação e saúde, que são essenciais para o desenvolvimento, na medida em que envolvem investimento em capital humano; para a democracia, na medida em que promovem cidadãos; e para uma distribuição de renda mais justa que o mercado é incapaz de garantir, dada a oferta muito superior de mão-de-obra não-especializada. Como promotor desses serviços o Estado continuará a subsidiá-los, buscando, ao mesmo tempo, o controle social

absorvidos – senão construídas com a mesma matéria-prima – por outros níveis de governo e por correntes políticas da direita à esquerda. Afinal, é essa “sociedade civil” fortalecida nos anos 80 que constitui a “esfera pública não- estatal”, capaz de dar soluções adequadas para os problemas locais, garantindo eficiência, economia e agilidade, através de parcerias com o setor público... E está feita a cama do programa de mutirão com autogestão.

Resta ainda comentar um outro aspecto determinante da cena dos anos 90, que também já foi pontuado anteriormente. Não se trata exatamente de um aspecto de âmbito estatal, mas são espaços institucionais que propiciam o encontro da sociedade civil, com as estruturas oficiais de decisão, ampliando a noção da democracia para o exercício direto, já que a forma representativa não dá conta da complexidade da sociedade atual. Em meados da década, as Câmaras Setoriais foram uma importante referência desses espaços de negociação e concertação públicas, tendo sido objeto de alguns estudos136. As

experiências com mais visibilidade atualmente são os Orçamentos Participativos (OPs) e os Conselhos Gestores. Os primeiros tendem a provocar a participação de maneira que as escolhas populares intermedeiem os aspectos legislativos presentes no processo orçamentário com a execução. Ressalta-se ainda seu caráter “pedagógico”, no momento em que a população é levada a entender alguns meandros, limites e dificuldades da administração. O debate sobre os OPs é complexo, mas vale ressaltar que o caráter “pedagógico”, ou a utilização desse espaço para prestação de contas sobre as realizações municipais não podem superar a real função do OP, que é a decisão sobre os investimentos na cidade. E o percentual do orçamento em que cabe “participação” acaba por limitar a abrangência dessa decisão.

Os Conselhos, em razão de sua popularidade e obrigatoriedade para alguns setores garantirem repasses de recursos para os governos sub- nacionais, fazem parte das novidades instauradas pela Constituição de 1988. Também são assunto profícuo para a literatura por possibilitarem o encontro

direto e a participação da sociedade”. Trecho extraído do Plano Diretor da reforma do aparelho

do Estado, (1995, op. cit), como os demais entre aspas no corpo do texto.

136 Francisco de Oliveira. “Quanto melhor, melhor: o acordo das montadoras”. In Novos

Estudos, n. 36, jul., 1993; sobre a câmara do setor da construção civil, ver Ana Amélia da

de diferentes agentes envolvidos em temáticas urbanas e, assim, pretenderem ultrapassar os mecanismos da reivindicação, dos acordos e dos conchavos para instaurarem a negociação pública. Os Conselhos permitem ampliar a participação, principalmente quando têm caráter deliberativo (em relação aos de caráter meramente consultivos), onde os agentes podem formular, aprovar ou vetar políticas. Os limites, porém, concentram-se justamente nesse aspecto do caráter da participação. Os Conselhos correm o risco de se transformarem em instâncias onde apenas se referendam as propostas do executivo, ao que se somam os desequilíbrios dos diversos participantes em relação à capacitação para compreensão de questões técnicas, ou mesmo às condições pessoais de participação. Dado que não é permitido remunerar conselheiros, as representações setoriais dos Movimentos Populares findam restritas, porque são baseadas, mais uma vez, no voluntarismo – já que os representantes do poder público têm a participação no Conselho como parte de suas atribuições cotidianas no exercício do cargo público e que representantes empresariais, por sua vez, costumam ser remunerados pelos setores que os elegem.

Seja em relação aos espaços institucionais de participação (Conselhos e Orçamentos Participativos), seja em relação aos fóruns temáticos, seja em relação às articulações mais abrangentes, o avanço dos Movimentos na luta por direitos não pode prescindir da “pressão” popular. Quer dizer, as “articulações por cima” (cada vez mais evidentes) requerem representatividade e legitimidade das lideranças, sob o risco de que esses próprios espaços percam a razão que os instituíram: a luta pela democratização, pelos direitos e pela justiça social.

no rastro da crise: partidos sindicatos, movimentos sociais, Estado e cidadania no curso dos anos 90. São Paulo: ANPOCS: Hucitec: IPEA, 1994.

Capítulo 4