• Nenhum resultado encontrado

Em conformidade com as justificativas para os recortes temporal e espacial e, mais especificamente, com o foco na política municipal, pode-se localizar o mutirão como parte da política habitacional na gestão Luiza Erundina do Partido dos Trabalhadores (1989-92). Na literatura pesquisada, não parece haver discordância sobre o fato de que o mutirão praticado nesse período foi capaz de absorver as principais reivindicações dos Movimentos de moradia na época, aglutinar as experiências isoladas e de assessoria técnica e elaborar uma nova forma de produção habitacional, incorporada à política pública da secretaria como um todo. Essa viabilidade foi fruto do caldo das reivindicações populares, engrossado desde meados dos anos 80 pela série de ocupações de terras que vinham ocorrendo no município, mas principalmente, da ascensão da esquerda ao governo, que colocou vários daqueles professores- assessores, militantes da causa do mutirão, em cargos de decisão da SEHAB (Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo)37. Importante salientar, portanto, a imbricação dessas relações entre os

Movimentos e os técnicos, sendo que muitos deles, depois de passarem pela administração pública (e até hoje, como se verá adiante) vieram a constituir seus próprios escritórios / entidades de assessoria técnica aos mutirões autogestionários e aos poderes públicos.

Em meio à surpresa pela vitória de Luiza Erundina nas eleições (incerta até os últimos instantes do pleito), a enorme expectativa dos grupos organizados, a empolgação e o entusiasmo dos técnicos se contrapunham à situação financeira precária da prefeitura (antecedida pelo governo de Jânio

37 Vale dizer, Ermínia Maricato (professora da FAUUSP e que assessorava, por exemplo, a

ANSUR – Articulação Nacional do Solo Urbano) assumiu a secretaria; Nabil Bonduki (do LABHAB Belas Artes e do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo) a Superintendência de Habitação Popular; Reginaldo Ronconi (do LABHAB-BA) e Leonardo Pessina (que já tinha trabalhado na CDH e compunha a Equipe de Habitação da Vila Comunitária de SBC) trabalharam no FUNAPS (Fundo de Apoio à População Moradora em Habitação Subnormal); entre muitos outros.

Quadros) e ao desconhecimento das estruturas da secretaria, conforme relatam Maricato e Ronconi38. Foi elaborado um Plano de Ação Imediata,

lançado logo em fevereiro do primeiro ano da gestão, e que seguia os princípios da Reforma Urbana defendidos nas articulações dos Movimentos desde início dos anos 80. Em linhas gerais o documento propugnava: prioridade às famílias de baixa renda (1-3 SM) e à demanda organizada nos Movimentos de Moradia; novos assentamentos produzidos com acompanhamento e trabalho social, cultural e político, estimulando a participação dos moradores em todas as etapas; atendimento no primeiro ano priorizando a conclusão das obras dos conjuntos iniciados por HABI e COHAB; ações para produção de lotes urbanizados, de regularização fundiária e apoio técnico; produção de pequenos conjuntos inseridos na malha urbana e distribuídos por toda a cidade de maneira proporcional à demanda; estímulo às cooperativas de habitação ou associações comunitárias de construção geridas pelos próprios associados. Na sistematização feita por Maricato posteriormente, os objetivos centrais da administração eram “a conquista da cidadania”, “o direito à cidade” e o “direito à habitação com qualidade ambiental”. Os eixos orientadores da ação, por sua vez, eram a “democratização da gestão urbana”; “desprivatização da máquina pública”; “melhoria da qualidade ambiental”; “proteção do patrimônio construído”; “novo quadro normativo e padrão de gestão”; “reconhecimento da cidade real e produção de moradia social com novos parâmetros”.

Nesse contexto de início da gestão e baseado nesses princípios orientadores, o primeiro convênio para produção de unidades em mutirão foi assinado com a Associação Sem Terra – Leste 1 em agosto de 1989, com base em um documento de intenções (elaborado ainda antes do final do primeiro semestre de governo) para a construção de casas na gleba de São Francisco. O fundo público utilizado para lastrear a política habitacional da prefeitura e o programa de construção por mutirão foi o FUNAPS (Fundo de Atendimento à População Moradora de Habitação Subnormal), sobre o qual vale um breve olhar retrospectivo.

38 R. Ronconi. op.cit.; Ermínia Maricato. Enfrentando desafios: a política desenvolvida

pela Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo (1989- 92). São Paulo: FAUUSP (tese de livre docência), 1997.

O FUNAPS e o FUNACOM39

O fundo foi criado em 1979, através da lei municipal 8.906 de 27de abril, assinada pelo prefeito Olavo Egydio Setúbal. Era um fundo social destinado a atender a população com renda de até 4 salários mínimos e que concedia subsídios a fundo perdido para a concretização de soluções habitacionais diversificadas a serem operacionalizadas pela Coordenadoria do Bem-estar Social – COBES. As ações municipais em habitação anteriores à criação do FUNAPS estavam ligadas à produção da COHAB – vinculada a recursos do SFH/BNH – ou a ações de remoção e transferência de favelas. O caráter social do fundo foi predominante durante o período em que o mesmo vigorou (1979-1993): ora com caráter complementar à implementação de projetos do BNH, ora como forma de atendimentos emergenciais e de risco, ora como proposta de caráter alternativo. Durante o governo do prefeito Mário Covas, o fundo se desvinculou do SFH através de sua reestruturação institucional e financeira. Neste período, apoiou desde intervenções em situações de risco à assistência técnica à construção por mutirão, passando pela aquisição de terras e ainda pela regularização jurídica de áreas ocupadas. Inclui-se aí a intervenção na favela Recanto da Alegria, já citada. Durante a gestão Jânio Quadros, o FUNAPS ganhou certa autonomia e agilidade, constituindo-se como instrumento alternativo ao SFH. Era uma espécie de autarquia municipal (autônoma e vinculada diretamente ao gabinete do prefeito), ainda que sua situação fosse irregular dada a inexistência de personalidade jurídica. Mesmo com certo aporte financeiro proveniente das Operações Interligadas (o solo criado), as intervenções se limitaram a programas de desfavelamento e atuações em situações de risco.

O estudo de Gomide e Tanaka confirma que é durante a gestão da prefeita Luiza Erundina que o fundo ganha grande aporte financeiro, fruto do aumento dos repasses aos municípios – instituído pela Constituição Federal de

39 As considerações desta passagem estão baseadas em dois trabalhos sobre o Fundo. Um mais

específico: Renata GOMIDE e Marta TANAKA. A Política Heterodoxa de Habitação

Popular Operacionalizada em São Paulo através do FUNAPS. São Paulo: FAUUSP, Cadernos

1988 – e da captação de receitas orçamentárias alternativas das Operações Interligadas. A prioridade da habitação social, já apresentada no Plano de Ação Imediata da SEHAB, encontrou nesse fundo a estrutura mais adequada para consolidar as intervenções pretendidas. Dentre os diversos programas no âmbito da gestão, e particularmente aqueles lastreados no FUNAPS – da aquisição de terras através de Decreto de Interesse Social (que se mostrou um processo dispendioso e ineficiente) à atuação em situações de risco nas favelas, passando por programa de urbanização comunitária (Urbanacom) – de fato, o programa de provisão habitacional por mutirão, chamado FUNAPS Comunitário (ou FUNACOM), foi aquele que recebeu maior destaque.

O FUNACOM estava baseado no famoso tripé: Associação de Construção Comunitária – Assessoria Técnica – Poder Público, alimentado pelos recursos do FUNAPS. Viabilizava-se operacionalmente através da assinatura de convênios com as Associações, formadas dentro de um Movimento organizado mais abrangente. À Associação, além da indicação da demanda (que era analisada por HABI), cabia a contratação de um escritório técnico cadastrado em HABI (obrigatoriamente constituído como organização sem fins lucrativos), que era responsável pela elaboração dos projetos, acompanhamento das obras e ainda pelo apoio à associação na organização dos mutirantes para o trabalho. O processo para recebimento das parcelas de financiamento era iniciado com a apresentação de um projeto e de um cronograma físico-financeiro. Quatro “grandes itens” de serviço estruturavam esse cronograma (procedimento que, basicamente, é mantido até hoje), com porcentagens referência: canteiro de obras (incluindo ferramentas), no máximo 4%; assessoria técnica (projetos e acompanhamento técnico e social das obras), no máximo 4%; mão-de-obra especializada, no máximo 10%; e material de construção, no mínimo 72%.

A primeira parcela era liberada assim que aprovados estes documentos. A obra era executada e antes do término dos recursos, apresentava-se solicitação de medição de obra e prestação de contas do emprego dos recursos do convênio. A aprovação destes documentos somada à vistoria das obras implicava na liberação da parcela seguinte, dando prosseguimento até o

comparativos ao FMH (Fundo Municipal de Habitação): Rossella Rossetto. Fundo Municipal

término do empreendimento. Ao final da gestão, quase 100 convênios haviam sido assinados para a produção de mais de 12.000 unidades habitacionais40.

O programa foi criando, dentro da estrutura da administração pública e também no âmbito do Movimento por Moradia, uma institucionalidade até então inexistente. Por parte da prefeitura, legislações e normas edilícias foram revistas e flexibilizadas, adequando-se à realidade da cidade. Uma estrutura descentralizada e autônoma foi implementada através dos escritórios regionais da HABI, espaço em que se discutiam com as famílias demandatárias as diretrizes e prioridades de intervenção. E convém apontar que essas mudanças na estrutura não se deram sem conflitos e criaram uma série de dificuldades de adaptação por parte dos técnicos da administração. Por parte do Movimento, além da organização para disputa pelo orçamento como um todo – que gerou polêmica de troca de favores com grupos mais ou menos ligados ao partido da situação na época –, foi necessário estruturar uma forma de seleção das famílias e dos grupos de base organizados nos bairros de origem para composição da associação, com quem seria firmado o convênio. O critério do Movimento era respeitado por HABI. Instituiu-se, enfim, um sistema baseado na “autogestão”. A polêmica em torno do termo autogestão é um caso à parte. Por hora, prefere-se mantê-lo em razão da força explicativa e da própria nomeação do programa41.

40 Os dados relativos ao número de unidades produzidas em mutirão durante a gestão Erundina, apesar de muito próximos, variam ligeiramente dependendo da fonte. Em Ronconi,

1995. op cit, fala-se de 93 convênios e 12.351 unidades, dados repetidos em Ângela Amaral.

Habitação na cidade de São Paulo. 2a. ed. revisada, São Paulo: Polis / PUC-SP, 2002

(Observatório dos Direitos do Cidadão: acompanhamento e análise das políticas públicas da

cidade de São Paulo, n.4) e separados em 7.167 unidades concluídas e 5.184 iniciadas;

Maricato, 1997. op. cit, dá conta de 12.222 unidades construídas em mutirão, 654 concluídas e

11.568 em andamento. Na verdade, a dificuldade em precisar tais dados reside no fato de os empreendimentos terem sido paralisados antes do término das obras. Assim, as unidades de um empreendimento se apresentavam em estágios diferentes: podiam estar concluídas, parcialmente executadas ou apenas conveniadas. Como se verá adiante, na abordagem sobre a paralisação das obras, o próprio conceito de unidade concluída também pode ser considerado relativo.

41 Para Ronconi, trata-se de uma questão de foco; isto é sob o ponto de vista da associação e do Movimento o processo pode ser lido como autogestão, enquanto para a prefeitura é gestão, sem maiores adjetivações, já que cabe a ela a decisão sobre a aprovação ou não do financiamento: “A gestão foi sem sombra de dúvida o desafio mais importante enfrentado pelas associações. Mas foi resolvido. E não há dúvidas de que as associações realizaram esse processo em autogestão. Em alguns momentos, a discussão sobre a caracterização do processo de gestão nega a autogestão e propõe a co-gestão, confusão que dificultou as relações e complicou o entendimento de uma questão, a meu ver, simples, uma questão de foco.” R. Ronconi, 1995,

op. cit., p. 54. Esse trecho está transcrito também em Felipe, 1997, op. cit, no capítulo

conclusivo, inserido em discussão sobre o assunto. Também Royer, 2002, op. cit passa pela ambigüidade do conceito, abordando as acepções da CDHU e das lideranças dos Movimentos. Outra boa referência sobre autogestão encontra-se em Roberto Venosa (org.) e outros

Essa relação estreita, não por isso sem conflitos, ao contrário, entre o governo e os Movimentos de Moradia cumpriu um papel fundamental de estruturação do Movimento de Moradia em São Paulo. Difícil imaginar o que seria da UMM (União de Movimentos de Moradia) sem a experiência do programa de mutirão com autogestão. Pode-se aferir que o programa foi responsável por uma sensível ampliação de sua base social e, a partir daí, um fortalecimento de suas articulações em nível estadual e nacional, com maior influência e interferência nas instâncias de poder. Os relatos do início da gestão (repetidos na pesquisa de campo em alguns depoimentos dos mutirantes de primeira geração) apontam, inclusive, que a principal reivindicação dos Movimentos era “mil lotes em cada região”, sem a clareza da possibilidade de operar os fundos públicos e organizar o gerenciamento dos empreendimentos. Em contraposição à situação de embate com o Estado autoritário e negador (explícito) de direitos foi surgindo outra, de relação, negociação, criação de espaços públicos e institucionais de participação. O Estado cumpriu, naquele momento, um papel que até então não lhe era peculiar: o de fortalecer e apoiar a ação dos Movimentos Sociais, que apareceram na arena pública, publicizando carências e instituindo-as como direitos de caráter coletivo e difuso.

Quanto às assessorias técnicas, assunto que será retomado adiante com maior especialidade, estas também passaram a ter no programa um campo de trabalho inexistente até então. A despeito de suas diferenças, novas formas de relação de trabalho foram construídas, correspondentes a um (pretenso) modo diferente (ou pouco conhecido) de produzir arquitetura para a cidade real, baseada (em tese e discurso) na discussão e decisão coletiva dos projetos, na interdisciplinaridade (teórica), na consideração das condições materiais locais, na aproximação do desenho e do canteiro, na criação de instrumentos para minimizar a exploração do trabalho no canteiro. Nesse aspecto, o Estado passou a cumprir também um papel de apoio a organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos e que eram capazes de suportar os Movimentos tecnicamente, contrariando a histórica relação com as empreiteiras financiadas pelo BNH.

1987. Sem esquecer que a autogestão é tema caro ao pensamento anarquista, destaco um debate contemporâneo presente em Albert, M., Chomsky, N., Ortellado, P., Bookchin, M. e

Guillén, A. Autogestão hoje: teorias e práticas contemporâneas. São Paulo: Faísca

PERÍODO INFÉRTIL E SEGUNDA GERAÇÃO: O PROGRAMA DE MUTIRÃO