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N ORMALIZAÇÃO DOS CUIDADOS E VALORIZAÇÃO DA ENFERMAGEM

2. TRAJECTÓRIAS IDENTITÁRIAS EM ENFERMAGEM

2.5. N ORMALIZAÇÃO DOS CUIDADOS E VALORIZAÇÃO DA ENFERMAGEM

As despesas crescentes com o Serviço Nacional de Saúde, quer por via do aumento da acessibilidade da população, quer por via de um cada vez maior recurso à tecnologia, tornaram os custos da saúde uma preocupação. A eficácia e eficiência do SNS de saúde foram questionadas a partir da ideia generalizada de que o estado estava a gastar mal e que era necessário pôr cobro a um despesismo descontrolado. As perspectivas oriundas da gestão empresarial surgiram como uma forma de controlar e racionalizar as despesas com a saúde. Os debates sobre a gestão hospitalar e a necessidade de encontrar novas formas de gerir as instituições ganharam adeptos. Surgiram os primeiros hospitais privados. Esta década caracterizou-se pelas discussões em torno do sistema público e do sistema privado na saúde. Na crença de que a gestão privada dos hospitais poderia travar os elevados gastos com a saúde investiu-se na empresarialização dos hospitais. A gestão hospitalar introduziu a avaliação e a definição de indicadores que justificassem as despesas em termos de ganhos em saúde. Neste contexto, a missão hospitalar começa a transformar-se no sentido de assumir fundamentalmente o tratamento da doença aguda e a investigação, transferindo para as comunidades e para o cidadão a responsabilidade assistencial.

Em 1993, o decreto-lei nº11/93 de 15 de Janeiro que aprovou o estatuto do Serviço Nacional de Saúde estabeleceu o conceito de unidades integradas de cuidados de saúde. A necessidade de projectar intervenções concertadas, onde a rentabilização dos recursos se reafirma, evidência a emergência do reconhecimento da complexidade dos problemas no campo da saúde, a urgência de diversificar repostas e de articular a intervenção. Esta preocupação que vinha sendo expressa desde os

anos 40 e que foi reafirmada no decreto de 1971, assumia agora, por influência das organizações internacionais, uma premência significativa. O decreto-lei 156/99 de 10 de Maio que estabelece o regime dos Sistemas Locais de Saúde espelha bem esta perspectiva no seu preâmbulo:

“Na verdade, reconhece o Governo que, tendo em vista uma maior acessibilidade à prestação de cuidados, bem como a garantia da sua efectiva continuidade, técnica e social, o conceito de unidade funcional de saúde deve evoluir no sentido de serem criados mecanismos, de convergência de recursos, de participação activa e co- responsabilização de outros serviços e instituições, públicos e privados, que, numa determinada área geográfica, desenvolvam actividades na área da saúde, ou com ela estreitamente conexas, nomeadamente as autarquias locais e instituições do sector social.”

Esperava-se dos profissionais que, mais do que o cumprir normas ou regras, assegurassem a produção de resultados consistentes com as metas definidas em termos de ganhos em saúde. Os novos modelos de gestão fazem estremecer a velha cultura subjacente ao programa institucional. A homogeneidade do grupo é artificialmente mantida pelo topo da hierarquia que procura adequar os novos discursos sobre a enfermagem e os cuidados centrados no doente à orientação institucional. Como refere Dubet (2002): “A identidade dos enfermeiros decompõe-se

e não se reconstitui se não de forma parcial em função dos serviços e dos ajustamentos mais ou menos felizes entre os serviços e as diferentes representações da profissão” (p.324).

O acto médico permanece como referência central e os diversos profissionais de saúde continuam a organizar-se no hospital em ordem a ele, sendo o trabalho dos enfermeiros valorizado na medida em que contribui para o sucesso da medicina. A desvalorização da missão assistencial e o investimento no tratamento da doença não favoreceu a expansão, em contexto hospitalar, dos discursos sobre os cuidados de enfermagem como acompanhamento à pessoa doente.

Paralelamente, o saber oriundo da medicina perdeu a exclusividade numa época em que, por um lado se vulgariza, e por outro se confronta com uma multiplicidade de outros sistemas explicativos, com origem nas designadas medicinas paralelas ou

alternativas, que ganham cada vez mais adeptos. Apesar da adesão crescente, da população em geral e de muito enfermeiros em particular, a estas perspectivas elas desenvolveram-se à margem das estruturas do sistema nacional de saúde.

A preocupação dos enfermeiros com a humanização dos serviços hospitalares ganhou um forte impulso nos anos 90. A ideia que a imagem “fria” da tecnologização crescente comportava, favoreceu o desenvolvimento das preocupações com a humanização dos serviços e permitiu reforçar os discursos sobre o cuidar em enfermagem. As direcções de enfermagem definiram como meta a ser alcançada a melhoria do “Acolhimento ao utente”. O forte apelo que esta meta permitia fazer à dimensão mais relacional e mais autónoma da profissão contribuía para afirmar a enfermagem enquanto profissão de cuidar e ao mesmo tempo responder aos novos modelos de gestão que previam a definição de objectivos que norteassem a actividade dos profissionais.

As dificuldades em desenvolver este programa no quadro da lógica burocrática e administrativa que ainda caracterizava a dinâmica interna, traduziu-se mais na definição de padrões de funcionamento a ser cumpridos pelos enfermeiros, do que no questionamento das práticas e na formalização de saberes transformados em conhecimento partilhável.

A estandardização dos procedimentos respondia às exigências de uma gestão por objectivos ao eliminar tanto quanto possível o imponderável. Os guiões de acolhimento, as “guidelines” para situações tipificadas que pretendiam, em certa medida, padronizar a acção generalizaram-se. Nas unidades de cuidados intensivos, nas situações de urgência e de emergência estabeleceram-se os protocolos de intervenção que possibilitaram a intervenção “autónoma” dos enfermeiros.

A autonomia profissional parece ter saído reforçada pelo aparente ganho da liberdade de agir, muito embora o seja de acordo com o protocolado. De facto os protocolos e as “guidelines” revelaram-se, nestas situações, de extrema importância em termos dos ganhos em saúde. A sua aplicação implicava para além de um conhecimento específico, capacidade de avaliação das situações, que careciam de

respostas imediatas, para além do evidente domínio das técnicas correspondentes. A tomada de decisão profissional é simplificada a favor da garantia de sucesso, mas ganha igualmente relevância pelos saberes que obriga a mobilizar. A relação com o médico na luta pela cura estreita-se no encontro pelo salvar vidas. A subordinação do enfermeiro tende a diluir-se nestes contextos e a negociação torna-se uma estratégia central na relação profissional.

Paralelamente, a precarização dos vínculos às instituições com a generalização dos contratos a recibos verdes, associada a uma reconhecida carência de enfermeiros, possibilitou a mudança frequente de local de trabalho e reduziu significativamente a força da ligação à instituição. Muitos jovens profissionais recusaram então aceitar as condições de trabalho impostas em determinados serviços e ou a colocação em áreas que não eram da sua preferência, recorrendo à mudança de instituição. Atrever-se a afirmar o direito de fazer o seu percurso profissional, num contexto que lhe permitisse desenvolver-se de acordo com os seus interesses, constituía uma novidade que transportava consigo a recusa de aceitar passivamente a realização de projectos que não eram os seus.

A enorme carência de enfermeiros desencadeou um forte investimento na formação com a duplicação do número de estudantes a serem admitidos em duas épocas, uma normal e outra especial. A procura sempre muito superior à oferta, fez subir as classificações de entrada e revelava o curso de enfermagem como sendo positivamente considerado na sociedade.

Ao nível das comunidades a preocupação emergente foi garantir num 1º momento que os centros de saúde e as estruturas de apoio social se organizassem de modo a providenciar o apoio aos doentes transferidos dos hospitais para casa das famílias. A contenção das despesas exigia que os doentes não permanecessem internados mais do que o tempo estritamente necessário à prestação de cuidados médicos em situações de crise. Neste contexto, foi criado o projecto de Cuidados Continuados que se propunha investir na formação dos profissionais dos centros de saúde, tendo em vista a sua preparação para o apoio domiciliário a pessoas com doenças crónicas

e ou terminais. O direito a morrer em casa emerge como um valor a ser promovido e organizam-se as primeiras equipas de cuidados paliativos. Nasceu nesta altura a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (DR III série nº 223 de 26 de Setembro de 1995).

Ao nível dos cuidados de saúde primários surgem os centros de saúde de 3ª geração, no final desta década, precedidos pelo “Projecto Alfa”, que se caracterizaram pela reestruturação da organização do trabalho, que se pretendia fosse agora, da responsabilidade de equipas que assumiam os cuidados globais aos utentes. Em 1996 surgiu, na Região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, o “Projecto Alfa” que visava estimular soluções organizativas, a partir da iniciativa dos profissionais, para que estes aproveitassem melhor a capacidade e os meios existentes nos centros de saúde do Serviço Nacional de Saúde. O projecto assentava em dois princípios fundamentais, o aumento da acessibilidade e a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde. Preconizava a constituição de uma equipa multiprofissional, que através de um projecto de acção, com objectivos concretos e acordado com a administração assumia um compromisso de desenvolver as actividades necessárias para alcançar os objectivos propostos.

Para muitos enfermeiros estas propostas traduziram-se numa duplicação do seu centro de actuação. Por um lado, deviam integrar as equipas multiprofissionais e atender aos utentes na globalidade, o que era consistente com os discursos do cuidar e por outro, deviam assegurar o funcionamento das antigas “valências” que estruturavam os centros de saúde. As valências dos centros de saúde correspondiam a actividades que numa lógica funcionalista estruturavam os centros de saúde. Assim havia as pré e pós consultas de saúde materna e de saúde infantil, as salas de tratamentos e as salas de vacinação. Nalguns centros os enfermeiros permaneciam presos a uma destas actividades ao longo de vários anos e noutros rodavam por todas ou por algumas destas valências.

A participação noutras iniciativas, que obrigam à construção em situação de um saber não prescrito e onde os saberes em uso se situam muito para além do

tratamento de uma patologia, multiplica-se nesta altura. As linhas de apoio telefónico, as comissões de protecção de menores, os projectos de cuidados continuados e paliativos, os projectos de luta contra a pobreza etc., são alguns exemplos da diversificação das áreas de intervenção que exigem destes a reelaboração do acto de trabalho que é também como nos diz Barbier (1992) um processo de reconfiguração identitária.

Como resultado da integração no Sistema Educativo ao nível do Ensino Superior os professores, mas também muitos enfermeiros, acorreram aos graus académicos a que finalmente podiam aceder. Muitos optaram por outras áreas do conhecimento, uma vez que o sistema de ensino de enfermagem ainda não conferia senão o grau de licenciado e a abertura do primeiro mestrado em Enfermagem na Universidade Católica de Lisboa e no Instituto de Ciências Bio-Médicas Abel Salazar no Porto (ICBAS) eram não só muito insuficientes para o número de candidatos, como também não recolheram no imediato uma adesão generalizada. Os saberes oriundos das mais variadas áreas do conhecimento foram integrados no modo de pensar e projectar a enfermagem, contribuindo para o desenvolvimento de uma “massa crítica” que, nesta altura, reforçou a investigação em enfermagem e em muitas outras áreas do saber afins. Iniciaram-se os cursos de bacharelato em enfermagem e em menos de cinco anos a formação em enfermagem situava-se ao nível da maioria dos cursos de Ensino Superior com a atribuição do grau de licenciado em ciclo único. A produção científica cresceu exponencialmente com a afluência dos enfermeiros aos graus académicos, a noção de cuidar ganhou densidade, e os espaços de actuação dos enfermeiros diversificaram-se.

A separação do ensino de enfermagem, da dependência da influência do sistema profissional constituiu, do ponto de vista simbólico, uma ruptura entre as escolas e as instituições de saúde. A regulação do ensino dependia agora das orientações gerais do Ministério da Ciência e Ensino Superior e não podia mais ser directamente influenciada pelas exigências da maior entidade empregadora dos enfermeiros: os Hospitais.

O reconhecimento da complexidade da noção de saúde, a diversificação da oferta de cuidados, as mudanças na organização do sistema de saúde e o aumento da consciência profissional suportada agora, quer por um maior domínio do conhecimento médico, quer pela afirmação da enfermagem como uma profissão de cuidar, entre outros aspectos, abriu caminho a processos de socialização assentes na negociação de espaços e de poderes.

A carreira de Enfermagem, alterada pelo Decreto-lei nº 437/91 de 8 de Novembro, definiu três áreas de actuação: prestação de cuidados, gestão e assessoria. A carreira do ensino saiu da carreira de enfermagem e a assessoria surgiu como uma área autónoma de intervenção dos enfermeiros onde se previa, entre outros aspectos, que os enfermeiros promovessem e participassem:

“na avaliação das necessidades da população e dos recursos existentes em matéria de enfermagem”, “determinem os recursos humanos necessários em função das necessidades” e ainda que “definam critérios que permitam adequar os recursos humanos existentes às necessidades identificadas, mediante prioridades estabelecidas”.

Antevê-se pela primeira vez, numa carreira, a participação dos enfermeiros na definição de políticas para a área de enfermagem a nível regional e nacional, em consonância com os novos projectos para a área da saúde e do seu sistema.

O Sistema Profissional consolidou-se em 1998 com a criação da Ordem dos Enfermeiros (DL 104/98, de 21 de Abril) que definiu o código deontológico da profissão e confirmou o Regulamento do Exercício Profissional (REP - Decreto-Lei n.º 161/96, de 4 de Setembro, alterado pelo Decreto-lei n.º 104/98, de 21 de Abril). A Ordem dos Enfermeiros conceptualiza a profissão em torno da noção de “cuidados

de enfermagem” que define “por foco de atenção a promoção de projectos de saúde que cada pessoa vive e persegue” numa perspectiva que se afasta de uma concepção

centrada exclusivamente na cura e afirma a individualidade e a singularidade da pessoa cujo projecto de saúde se assume como referência. Para tal propõe que:

promover os processos de readaptação, procura-se a satisfação das necessidades humanas fundamentais e a máxima independência na realização das actividades de vida, procura-se a adaptação funcional aos défices e a adaptação a múltiplos factores – frequentemente através de processos de aprendizagem do cliente” (OE, 2003, p.5).

O acompanhamento e a construção colectiva de um projecto de saúde pretendem ser agora uma noção central do conceito de cuidar em enfermagem.

A relação dos utentes com os profissionais de saúde e com a medicina alteram-se. A responsabilização crescente do cidadão pelo seu processo de saúde apela ao domínio de conhecimentos do campo da medicina que se cruzam com as medicinas alternativas, desafiando os profissionais a negociar esquemas alternativos aos inicialmente previstos. Os discursos sobre a saúde saíram do campo fechado dos técnicos e chegam cada vez mais facilmente ao cidadão comum que se capacita cada vez mais para participar de forma activa no seu processo de saúde.

A função educativa na saúde cresceu e os enfermeiros desenvolveram e aprofundaram o seu investimento neste domínio. A preponderância de uma lógica presa à racionalidade técnica, que durante anos influenciou o modo de pensar o ensino aos doentes gerou dificuldades ao desenvolvimento desta função educativa, transformando-a muitas vezes num simples processo de transmissão de informação estruturada, que se revelou pouco eficaz na mudança de comportamentos. A crítica que tem vindo a ser feita a uma concepção normativa da saúde que externa aos sujeitos lhes era imposta, contribuiu para reequacionar a educação em saúde. Também o perspectivá-la no quadro de um projecto de saúde de cada um, que a enfermagem assume agora como sendo o seu foco de atenção, centra na relação entre os dois intervenientes a negociação em torno desse projecto retirando-lhe qualquer possibilidade de prescrição prévia. A pessoa e o profissional são um só e este confronta-se, em situação, com a necessidade de mobilizar uma multiplicidade de competências relacionais no quadro de uma acção estratégica para chegar a acordo com o doente, utente, cliente.

vocação definida por um quadro de valores homogéneo, mas na forma de competências que cada um deve desenvolver à medida das necessidades dos diferentes contextos. Este processo comporta uma transformação identitária que se diversifica por via das exigências de uma realidade social em profunda transfiguração e pelo modo como os enfermeiros se organizam e se agrupam para participar nas transformações em curso.

A experiência social designa as condutas individuais e colectivas dominadas pela heterogeneidade dos seus princípios constitutivos, e pela actividade dos indivíduos que devem construir o sentido das suas práticas. Esta caracteriza-se, de acordo, com Dubet (1996): pela “heterogeneidade dos princípios culturais e sociais que organizam

as condutas” (p.15), e pela distância subjectiva que os indivíduos mantêm face ao

sistema. A experiência social requer que o actor seja capaz de gerir diferentes lógicas de acção, e é neste processo de combinação de diferentes lógicas que a acção perde o seu centro e o seu carácter pré-construído. Para que seja possível aos actores perspectivar, de facto, a sua acção, é fundamental que esta se insira num processo de tomada de consciência, quer dos aparelhos conceptuais que lhe subjazem, quer das condições institucionais em que se concretiza, e ainda da natureza das relações que mantêm com outros segmentos da sua própria profissão, assim como de outras profissões.

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