• Nenhum resultado encontrado

Nação e escravidão: um projeto sem futuro

No documento Experiências Históricas Afro-Brasileiras (páginas 91-99)

A obra do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816- 1878), nascido em Sorocaba, apesar de ser, hoje, relativamente conhecida por boa parte daqueles que se dedicam aos estudos de história da historiografia brasileira, por sua amplitude quan- titativa e qualitativa, já possui um histórico próprio de leituras. As maneiras como tal conjunto de textos foi tratado, por exem- plo, desde as reflexões seminais de Manoel Salgado Guimarães e Arno Wehling, apresentaram uma variedade de temas e de

abordagens realmente impressionante, quando comparada às interpretações anteriores (GUIMARÃES, 2011; WEHLING, 1999) 1.

De modo geral, até bem recentemente, Varnhagen teve sua obra investigada em uma perspectiva eivada de ideias pre-con- cebidas que impediam, por assim dizer, a problematização de determinadas questões de fundamental relevância para o conhe- cimento acerca da historiografia do século XIX. Ele não foi apenas o autor da primeira Historia geral do Brazil (VARNHAGEN, 1854- 1857) escrita por um brasileiro, mas um prolífico pesquisador e, principalmente, um dos letrados que mais ajudou a construir o incipiente ofício de historiador em moldes modernos, em seu país de origem. Viveu pouco tempo nesse país, mas, desde cedo, interessou-se pelos assuntos da jovem nação onde nascera. Por sua experiência portuguesa, acabou vindo a ser uma das princi- pais pontes entre os acervos europeus sobre o Brasil e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838, no Rio

1 No que se refere a Manoel Salgado Guimarães, é relevante precisar que foi a partir de seu conhecido artigo publicado na revista Estudos Históricos, em 1988, que essa nova forma de trabalho com a produção dos letrados oitocentistas ligados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em geral, e com os escritos de Varnhagen, em particu- lar, tornou-se conhecida. Sua tese de doutoramento, defendida no ano de 1987, na Universidade Livre de Berlim, apenas ganhou versão em português postumamente, em 2011. Ver GUIMARÃES (1988). Em tempo, não creio ser aqui lugar para balanço ou listagem dos estu- dos dedicados à obra varnhagueniana, considerando as dimensões previstas para este capítulo. No entanto, buscarei o diálogo com as contribuições que se destacaram no decorrer da presente análise, respeitando os limites de seu objetivo.

de Janeiro, marca do início de uma historiografia disciplinar por aqui (GUIMARÃES, 1995).

Michel Foucault chamou a atenção dos historiadores para o fato de que os marcos fundadores são sempre suspeitos e que as disciplinas são, no mais das vezes, espaços de restrição e de coerção (FOUCAULT, 2010, p. 29-36). Sendo assim, repensar cons- tantemente os lugares institucionais de produção e de desenvol- vimento disciplinar constitui um dos objetos centrais da história da historiografia. Nessa área de estudos específica, foi Manoel Salgado Guimarães quem, no Brasil, destacou tal aspecto:

Trazer também a própria prática do ofício que exercemos ao mundo histórico, reconhecendo-o como parte das inúmeras frentes de batalha travadas para dar significação ao mundo em que vivemos, tornando-o dotado de finalidades e valores, que antes são os dos homens vivendo e não os de uma história alçada à entidade supra-humana (GUIMARÃES, 2003, p. 22).

A operação historiográfica realizada por Varnhagen permite a observação dos mecanismos que, pouco a pouco, vieram a construir o discurso histórico sobre o Brasil, mas, também, a constituição de própria autoridade e legitimida- de desse discurso. No entanto, a forma como seus escritos foram recebidos é bastante diversificada e o fato de se atentar (ou não) aos aspectos que particularizaram o discurso histórico, em perspectiva geral, determinam o tratamento dado a sua obra.

Nesse sentido, o problema da escravidão, apreendido em suas dimensões política e/ou historiográfica, corrobora a neces- sidade da observação dos aspectos apontados acima a partir do que argumenta Guimarães. Em primeiro lugar, pelo restri- to espaço que o estudo da cultura africana recebeu no vasto

conjunto de escritos de Varnhagen, o historiador reconhecia as limitações de seu conhecimento sobre o assunto, chegando a apontar a pertinência de novas pesquisas. A escravidão, contudo, não foi concebida como um objeto de análise pelo historiador. Em seus textos históricos, as menções são esporádicas e superfi- ciais, ainda que presentes, porquanto inevitáveis, tendo em conta os diferentes aspectos que serão comentados mais adiante.

Para situar adequadamente o que foi dito até aqui, impor- ta destacar que Varnhagen não foi apenas um historiador. Foi antes um militar e atuou, sobremaneira, como diplomata. Foi um servidor público do Império do Brasil e, unificando essas atuações, teria sido o historiador do “Tempo Saquarema”, para citar outro trabalho fundamental aos estudos de história da historiografia brasileira, de meados dos anos 1980 (MATTOS, 2004, p. 298)2. A tarefa de dissociar a construção crítica da histó-

ria, entendida como disciplina, de seus usos políticos torna- -se profundamente delicada pelo efeito determinante que o discurso sobre a nação terá ao longo do período imperial – e esse impasse não parece ter sido solucionado com a proclama- ção da República (GOMES, 2009). Aqueles que se encontravam ocupados com o exame do passado do país estavam urgidos pela perspectiva nacional (PALTI, 2006). Essa pode ser, inclusive, uma das hipóteses de leitura para a limitada participação do tema da cultura africana nos trabalhos de Varnhagen. Os africanos, por definição, seriam sequer vistos como um elemento anexo à nação, algo quase estranho ao projeto nacional brasileiro.

Entretanto, três séculos de sequestro e de comércio de escravos não poderiam ser ignorados. O IHGB buscava, desde

2 Para uma abordagem bastante completa e interessante da biografia de Varnhagen ver Cezar (2007).

a sua fundação, o sentido para a história de um povo pouco ou nada homogêneo, experiência singular entre os Estados nacionais oitocentistas, aporia que atravessaria o século entre os historiadores (OLIVEIRA, 2009, p. 43-64). O próprio Estado, desde o primeiro reinado, portanto, encontrava dificuldades em elaborar a condição brasileira: ser uma nação ocidental moder- na e escravista. As características da formação burocrática do Estado patrimonial no país, inclusive, podem ser vistas como índices do dilema na articulação entre os princípios dos movi- mentos liberais e a desigualdade na qual se baseava a compo- sição da sociedade (URICOECHEA, 1978)3. Como se posicionava

Varnhagen em relação à questão?

A leitura mais incisiva do historiador oitocentista sobre a escravidão apareceu entre 1849 e 1850, não por acaso, perío- do crítico da discussão sobre o tráfico no segundo reinado (SCHWARCZ, 1998, p. 101-124). Não se tratava de um trabalho propriamente historiográfico, mas de um texto de proposi- ções políticas e administrativas intitulado Memorial Orgânico. No entanto, esse gênero de distinção entre os escritos de Varnhagen, bem como de qualquer outro autor, deve ser mati- zado. Tal argumento, apresentado em estudo anterior, mais amplo, busca evitar leituras excessivamente esquemáticas que acabam por empobrecer o exame dos textos historiográficos, garantindo certa supremacia do “contexto” (termo aqui enten- dido como ideias gerais acerca de determinada época ou perío- do), em detrimento das concepções desenvolvidas no conjunto de uma obra ou mesmo em reuniões de textos heterogêneos

3 A remissão à clássica obra de Sérgio Buarque de Holanda é, neste assunto, oportuna (HOLANDA, 1995, p. 139-151). Ver também o balan- ço mais geral de Schiavinatto (2009).

de contemporâneos (SANTOS, 2014, p. 17-22). Importa ressaltar que, no tocante a tal perspectiva, não é intuito desconsiderar a consecução de uma escrita histórica com definições particu- lares e que, pouco a pouco, foi construída, efetivamente, uma autonomia discursiva. Explorar a depuração desse discurso é no que consiste, afinal, parte dos esforços da história da histo- riografia. Busca-se, outrossim, não negligenciar o conjunto das ideias que podem vir a esclarecer aspectos menos evidentes na obra de Varnhagen, como é o caso do tópico da escravidão e da cultura africana. Evita-se, portanto, expectativas que emer- gem da diferença entre as experiências de ontem e a de hoje, por vezes, sinalizadas em algumas análises (RODRIGUES, 1988; ODÁLIA, 1997). Por assim dizer, é desse diálogo entre tempora- lidades e diferenças que se torna possível restituir o sentido do passado para um determinado presente que se quer díspar.

Conforme dito anteriormente, Varnhagen admitia seu desconhecimento no que se referia à cultura africana. Nesse horizonte, a presença das etnias que, no Brasil, viviam em função do tráfico, em suas obras, era restrita. Foi, porém, assunto de importância na discussão apresentada no Memorial

Orgânico. Esse texto fora analisado em suas particularidades

em dois trabalhos recentes, aos quais se remete de imediato. Primeiramente, na dissertação de mestrado de Leandro Macedo Janke, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da PUC-Rio ( JANKE, 2009). Posteriormente, Arno Wehling apresen- tou comentário que serve de introdução à edição do documen- to em livro, resultado do projeto mais amplo, Coleção Memória

do Saber, organizado por Raquel Glezer e Lúcia Guimarães

É patente, no Memorial, a contrariedade de Varnhagen no que diz respeito ao tráfico de escravos:

A escravatura dos africanos torna o país escravo de si próprio; pois como diz o M. de Maricá: o cativeiro apostema e tortura os escravos e seus senhores. É urgentíssimo impedir-se que entrem mais; e antes pedirmos todos amanhã esmolas e andar- mos descalços que ver o belo e risonho Brasil, a nossa pátria convertida numa catinguenta Guiné (VARNHAGEN, 1849, p. 8)4.

Olhando para um país escravista, Varnhagen atentava para o problema da formação da população. A evidente xeno- fobia, em relação aos africanos trazidos à força para o Brasil, expressava-se pelo fato de confrontar a perspectiva europeia que ele concebia, compreendendo o país onde nasceu como uma continuidade de Portugal, como já foi observado em variadas análises de sua obra. Além disso, percebe-se em Varnhagen o embate entre o antigo e o moderno, no que se refere ao trabalho escravo. Ao mesmo tempo em que o recrimina como mácula a ferir o desenvolvimento da população nacional, mantém a hierarquia estabelecida pelos europeus, de maneira geral, no que toca à ideia de civilização, fundante da lógica da constitui- ção das nações naquele continente (JANKE, 2009, p. 105).

4 A ortografia original das fontes oitocentistas aqui citadas foi atua- lizada. Cabe destacar que, a despeito de ser contrário ao tráfico de africanos, a escravidão era tida por Varnhagen como prática lícita, inclusive com justificativa religiosa, conceito comum à época. Cf. Rodrigues (1983, p. 205), Carvalho (2001, p. 49-51) e Narita (2014).

Pode-se observar o dilema da manutenção escravista em uma sociedade que se quer moderna. Na segunda parte do documento, Varnhagen retoma Aristóteles e Cícero com o objetivo de evidenciar os riscos que as sublevações de escravos poderiam representar no futuro e, por meio do prisma teleo- lógico de seu tempo, propõe a superação do modelo na mesma lógica da transição medieval.

Tratemos pois de ir suavizando, sem lesar os proprietá- rios e as indústrias do país, os vexames que sofrem os nossos escravos, que contra sua vontade nos trouxe d’além dos mares a cobiça, privando-os dos agradáveis laços de família, os quais estamos vendendo como brutos, às vezes quando acabam de criar na casa do senhor novas afeições. Imitemos os povos da Idade Média no modo como procederam pouco a pouco a tal respeito; comecemos, como eles começaram, a melhorar a condição dos escravos que estavam então, como os nossos hoje, sujeitos à legislação do paganismo romano. O que na Idade Média fizeram os concílios, em proveito do cristianismo, façam hoje os nossos corpos colegisladores a bem do país e das insti- tuições (VARNHAGEN, 1850, p. 8).

No âmbito das propostas políticas alicerçadas pela história e expostas por Varnhagen, um projeto de nação para o Brasil padecia de um mal crônico: como justificar a união de um povo abissalmente heterogêneo? Parcela significativa da população não nascera e nem mesmo ocupava lugar no territó- rio por vontade própria. Eram excluídos em todos os sentidos. Que futuro é possível perante a exclusão?

Percursos africanos na

No documento Experiências Históricas Afro-Brasileiras (páginas 91-99)